Quem já conhece Paula Foschia do universo virtual — sim, ela é uma blogueira — pode se surpreender com seu livro de estréia, Primavera eterna. Ao mesmo tempo em que passa o tempo em seu blog escrevendo pilhas de bobagens, dando pitaco sobre tudo e exercitando seu exibicionismo — em que certamente conta com uma gama vasta de admiradores, que praticam ali, por sua vez, seu secreto voyeurismo —, a marca de Primavera eterna é uma inesperada despretensão.
Dizer que essa é uma estréia totalmente despretensiosa, contudo, é um exagero. Se não, grande equívoco. O problema está na orelha, método sempre eficiente de nos apresentar o texto; a orelha, como se sabe, é um perfeito cartão de visitas e pode dizer muito sobre a obra e seu criador.
Não é o caso, porém, da novela de Paula Foschia, cuja orelha (do livro, não a dela) faz, de saída, o leitor de boa vontade torcer o nariz e sentir um arrepio da base da coluna até a nuca. Um arrepio de medo. A autora carioca escreve uma novela que se auto-intitula uma síntese da “literatura feminina” ou, ainda mais pretensiosamente, rotula-se como sendo algo entre o “lirismo” de Lygia Fagundes Telles e a “reflexão” de Clarice Lispector — palavras que constam expressamente da edição. Para os benévolos leitores, quiçá, esse cotejo apontado na orelha da obra possa soar como uma provocação, uma opinião revolucionária ou até uma proposição descabida; é quando, então, corroídos pela curiosidade, procuramos a voz de autoridade que garante tão gloriosas comparações, que cercam uma, lembremos, estreante. Nada mais enobrecedor. Contudo, todas as buscas são infrutíferas, e a voz que glorifica a escritora parece partir do além, ou do aquém…
Então não seria um equívoco muito grande supor que foi a própria autora quem assim entendeu seu trabalho ou, quem sabe, algum editor da Candide, casa editorial pela qual o texto foi publicado. Uma rápida busca, virtual como o blog de Paula, entretanto, denuncia: ela mesma é a proprietária da editora, o que aponta para a primeira hipótese. O fato mais curioso e que é digno de nota, repise-se, é a desmesurada pretensão de quem ao estrear não se constrange em comparar-se a musas da literatura brasileira.
Apenas rápidos comentários sobre a questão da “literatura feminina” — sem a intenção de esgotar o assunto, porque ainda daria certo pano para manga. Uma simples pergunta fica no ar: O que é literatura feminina? Pode-se afirmar que é aquela assinada por uma pessoa cuja voz é estridente, para quem as unhas são importantes demais (e sempre quebram nos piores momentos) e em um certo período do mês conhece os infernos da TPM. Se essa for a resposta certa, lamento, mas haverá uma infinidade de textos que jamais poderiam ser aproximados por quaisquer outros motivos, e não seria justo identificá-los, assim, tão marcadamente, pelo fato de terem sido escritos por mulheres. Contudo, se entende por “literatura feminina” aquela que é capaz de tratar de questões da feminilidade como nenhuma outra, aí poderíamos nos deparar com um peito cabeludo tocando o coração de moçoilas e chamado de “Robertão, o ás da literatura feminina”. Fica então a questão, para que esses axiomas possam ser medidos e não reproduzidos sem uma significação delimitada. A questão do gênero vai mais longe do que pode parecer à primeira vista e dogmas já não são bem-vindos.
A autora chama sua obra de romance. Parece, pois, não haver mais fôlego do que para uma novela. Isso não representa qualquer demérito. Aliás, ter o traquejo para passear por entre os gêneros é sempre uma virtude, e nessa missão Paula se sai muito bem. O texto é leve, quase palpável, sem chegar perto do fácil ou do pobre. Há, na simplicidade, muita sofisticação. Mas, ao mesmo tempo, a simplicidade carrega um permanente risco de que qualquer tensão mal resolvido ou um peso maior aqui ou ali comprometam a qualidade do texto.
O argumento, a trama, é simples: Maia, a protagonista, é uma mulher que busca o amor e, para isso, larga sua vidinha “normal” rumo a Nova York no intuito de encontrar Diogo, um menino que conhecera na infância. Depois do encontro, 13 anos mais tarde, algo se revela para aquela mulher.
É nesse momento de epifania que Maia se torna uma mulher, que se conhece profundamente, que é capaz de tomar decisões e escolher o seu destino. A protagonista alcança sua liberdade ao ressuscitar um amor da infância, puro e profundo, e conseguir heroicamente sublimá-lo, transformando-o em uma espécie de talismã da sorte, que não pode ter nenhuma significação objetiva em sua vida, mas pode, no plano do simbólico, resolver todas as questões de ordem subjetiva. É certo que quando parte ao encontro de Diogo, Maia deseja encontrar-se a si mesma, e é exatamente isso o que acontece.
As reminiscências de Maia da época em que conheceu Diogo são o ponto alto do texto. É, sim, muito rico em imagens, que são muito bem construídas, carregadas de lirismo e de beleza. Além disso, a mescla entre os cenários urbano e bucólico aliada à mistura entre infância e vida adulta acolhe uma multiplicidade de sensações, cheiros, memórias, que estabelecem uma relação de identidade com o leitor: “O casarão era uma espécie de depósito de tudo aquilo que não queríamos mais em nossas casas de verdade, e ao mesmo tempo não tínhamos coragem de jogar fora. Éramos fiéis representantes da classe média, com uma propriedade no interior herdada de algum antepassado que eu não conhecera”.
A sensibilidade da narradora é fina, sutil, deliciosa. O humor que mais parece mau humor e a mania de depreciar-se por tempo integral dizem muito da protagonista e lhe conferem uma verticalidade interessante. Mas o que merece ser louvado sem economias é o ritmo do texto. Uma linguagem breve, enxuta, que constrói quase uma música. O texto merece ser lido de uma só vez, sem interrupções, para que a cadência dessa prosa musical reverbere por muito tempo. Recuperando a velha metáfora: uma sinfonia, que depende da harmonia entre os instrumentistas para crescer tomando todo o espaço possível e depois minguar lentamente. Mas, assim como na obra musical, um desarranjo pode ser fatal e o limite entre o sucesso e o fracasso é tênue demais.
A novela da advogada carioca caminha na corda bamba — sua singeleza pode pôr tudo a perder conforme um olhar mais ou menos atento do leitor. Mas o texto mantém-se há muitos palmos do chão. Pode ser que lá em cima titubeie, mas daqui de baixo só conseguimos assistir a um belo espetáculo, pelo qual devemos, pois, nos levantar para o aplauso final.