A convicção de Estela

Romance de Natália Zuccala apresenta personagem complexa em meio a certezas fáceis
Natália Zuccala, autora de “Estela a esta hora”
01/05/2024

Em Estela a esta hora, Natália Zuccala se vale da ficção para explorar alguns temas muito caros para a sociedade brasileira. Com a literatura, a autora apresenta uma protagonista, que dá nome ao romance, explorando as suas certezas enquanto residente em medicina, egressa de uma prestigiada universidade pública de São Paulo. Assim, descreve o seu dia a dia no hospital e no quarto onde vive.

Avançando na leitura, nos damos conta de que Estela tem uma origem simples. Ela deixou o interior do estado para estudar, morando agora em uma pensão, onde passa grande parte do tempo. Natália se esmera na descrição de seu quarto. Logo, a sua rotina funciona como um guia para o leitor dimensionar o temperamento da personagem.

Estando na residência em medicina em um dos principais hospitais da maior cidade do país, superando dificuldades sociais e financeiras, Natália nos traz uma protagonista repleta de certezas — aliás, nada mais coerente com os dias de hoje. Ela tem falas e convicções quanto à sua atuação pessoal e profissional que são, progressivamente, contestadas, porém, não abaladas.

Isso é importante por dimensionar a rigidez de Estela. A faculdade de medicina é a sua grande oportunidade. Na ausência de pormenores de sua pobreza, ela não se transforma em algo exótico. Contrariamente, mostra-se comum. Direcionamos o olhar, então, para as justificativas quanto à sofreguidão nos estudos.

Para ser ainda mais claro, Estela está engessada em suas convicções — e a medicina, bem como o papel dos médicos, é uma delas. Algo a marcar a sua personalidade, interferindo em aspectos centrais, como no caso das relações sociais. Códigos básicos do convívio encontram-se comprometidos por essa forma de ser excessivamente fechada.

Diálogo com Clarice
Não há como desconsiderar o paralelo de Estela a esta hora com outra grande obra da literatura brasileira. Em A hora da estrela, de Clarice Lispector, há Macabéa, imigrante alagoana no Rio de Janeiro, vivendo praticamente isolada em uma pensão, com um histórico de carências materiais e afetivas.

Macabéa é humilhada pelo patrão e namorado. Estela, pelo preceptor da residência. Macabéa se tranca no quarto de pensão por falta de opção. Estela, pelos estudos em medicina. Macabéa é resignada com o seu destino no Rio. Estela, com o seu em São Paulo. Ambas autoras nos prendem no cotidiano das personagens a tal ponto que deixamos o seu futuro de lado. Para Macabéa ele é trágico pela sua ingenuidade ante uma cartomante. Para Estela, por sua convicção na medicina.

Este quadro de analogias me deixou preocupado. Temi que Natália não conseguisse manter o fôlego, de modo a sustentar a sua narrativa com elementos próprios, descolando-se de Clarice — algo natural na literatura. Nenhum problema em um escritor se inspirar em outro. Mas, quando isso fica muito evidente, há o risco de prejudicar a construção de uma identidade própria na escrita, de modo a se tornar um escritor autônomo. Enfim, corria o risco de querer ser uma nova Clarice.

Em Estela a esta hora isso não acontece. Natália logra um caminho particular. Ela está muito mais para uma continuidade de Clarice, a continuidade que Clarice faria a partir de uma leitura de nossa atualidade.

Não há, no livro de Natália, uma estetização da pobreza — não que isso ocorra em A hora da estrela. Descrevê-la em pormenores — como quando Macabéa sente vontade de comer o hidratante ao assistir ao comercial na TV — não é uma opção. Por isso o temperamento de Estela se torna o orientador de nosso entendimento quanto a sua condição social. É a sua angústia pelos estudos, a única alternativa de vida — e isso já é um traço da violência da desigualdade, essa falta de opção —, que nos conduz a isso. Tudo tem que dar certo para Estela, pois inexiste outro caminho.

Enquanto o bolo tomava forma, surgiu e cresceu, até se tornar cristalino, o contorno de mulheres conhecidas. Na carcaça de Ana, a ossada da minha família: minha mãe nas suas rugas, minha tia no seu nariz, minha avó na sua pele manchada de sol. Uma versão um pouco mais eloquente e urbana dessas mulheres das quais eu fugi, mas não escapei. Pelo menos às minhas mãos eu dei outro destino: enquanto elas limpam merda em privada alheia, eu limpo as tripas que as fabricam.

Ao se fechar tanto em si, Estela desconhece a singularidade de sua vizinha trans. Não consegue dimensionar o peso que há no fato de a única amiga ser sugar baby (amiga pela qual existe uma admiração velada, mas jamais admitida). Se escandaliza com as insinuações de relações sexuais entre o preceptor e a colega de residência. E por aí vai. A cada dado, uma parede moral é erguida ao ponto de questionar e julgar.

Não há edificação da pobreza. Estela não é um case de sucesso a desfilar os frutos de seu empenho. Tampouco tem epifanias de sua condição. Pelo contrário: torna-se alguém a guardar para si, cada vez mais, a certeza de uma conduta que pessoas como ela, de origem muito simples, devem ter. Não há brechas para outros caminhos, independentemente do que o desejo lhe diz. E represando progressivamente este desejo é que ele se torna mais violento.

A acuidade visual de Estela fica tão comprometida — até mais do que a simplória e sonhadora Macabéa — ao ponto de fazê-la conseguir enxergar apenas uma coisa à sua frente: a medicina. Convicção e ingenuidade caminham de mãos dadas. Ambas resultam em uma violência simbólica impressionante. Eis a humilhação sofrida e, pior, admitida como normal. Não há questionamento quanto à interpretação feita de seus eventuais erros. Tampouco exalta os acertos na atuação como residente. A medicina acima de tudo. E, claro, o médico acima de todos.

[…] não é justamente a iniquidade do mundo que a medicina corrige?

— Todo mundo erra.

— Não nós.

Em paralelo, aqui estão importantes pistas para entendermos o crescimento do conservadorismo em determinados setores da sociedade, sobretudo aqueles mais fragilizados, diretamente atingidos pela pobreza. Nem mesmo o conhecimento adquirido em uma formação como a da medicina, tão ampla e complexa nos termos de uma sociedade ocidental moderna, é suficiente para superar alguns obstáculos. Pelo contrário, pode alimentar convicções, independentemente de quais sejam.

Livros de autores como Clarice Lispector costumam ficar guardados nas prateleiras mais altas de minha estante. Foram lidos várias vezes ao longo da vida. Com tramas consolidadas em nosso imaginário, cheguei a decorar passagens. Deixo as prateleiras mais acessíveis para aquelas outras que estou conhecendo agora, que provavelmente terei de recorrer com alguma frequência para exemplos ou indicações para terceiros.

Estela a esta hora abalou as minhas convicções quanto a um clássico, fazendo-me pegar um banquinho para alcançar essas prateleiras superiores, onde se encontra Clarice. Não bastava o que eu tinha em mente. Precisei relê-la pela enésima vez para escrever esta resenha. E um novo livro me foi apresentado. Somente uma grande escritora seria capaz de nos fazer revisitar de modo tão profundo um clássico. Creio que em algum momento terei de subir com Clarice e Natália para as prateleiras superiores.

Estela a esta hora
Natália Zuccala
Todavia
174 págs.
Natália Zuccala
Escritora, professora e psicanalista, nasceu em São Paulo (SP), em 1990. É Formada em Letras e publicou Todo mundo quer ver o morto (2017), além de Cheia (2021), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.
Faustino Rodrigues

Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).

Rascunho