“Sem a amizade a vida seria um erro”, escreveu Aristóteles. Uma conclusão definitiva, mas que, assim isolada, sem dúvida necessita de algumas justificativas, possíveis de serem encontradas no romance O último amigo, do marroquino Tahar Ben Jelloun, publicado pela Editora Bertrand Brasil. O livro, no entanto, não nos oferece uma resposta fácil e não tem qualquer compromisso no sentido de demonstrar a veracidade dessa proposição. Ao contrário, mergulhando nas vias sinuosas de uma amizade estreitamente ligada às oscilações políticas e sociais do Marrocos, o autor nos oferece o primado da dúvida, alertando-nos para a suspeita de que a conclusão de Aristóteles talvez não passe de uma invencionice.
A assertiva aristotélica, presente, pelo que me lembro, na Ética a Nicômaco, coloca a amizade acima de todas as outras formas de relacionamento, concedendo a esse tipo tão raro de amor — raridade que a vida contemporânea, marcada, entre outras mazelas, pelo superficialismo das relações, só faz aumentar — a condição de algo essencial. Tal status não será contestado, certamente, pelas raríssimas pessoas que já o experimentaram, mas mesmo em relação a elas é possível questionarmos se o que viveram foi, de fato, uma amizade, e não uma experiência unilateral, maquiada pelo idealismo ou, ainda pior, exagerada por uma imaginação refém de certas carências afetivas.
Esse é o questionamento que se intromete, sem qualquer trégua, em todas as páginas de O último amigo: a idéia de que o Outro, o nosso semelhante, longe de nos completar, apenas nos esgota, nos exaure. O animal humano só seria realmente inteiro, ou seja, pleno, ao assumir o gregarismo que a natureza incutiu em nossas células? Ben Jelloun constrói o enredo desse romance, publicado na França, em 2004 — pois o autor, apesar de nascido no Marrocos, escreve em francês —, de maneira a nos deixar incertos sobre qual seria a melhor resposta, ou a mais correta, conduzindo-nos por uma trama cuja conclusão nos leva a duvidar se todas as formas de comunicação, incluindo as mais sutis ou complexas, como a amizade, são verdadeiramente possíveis.
Página após página, constatamos que o Outro quase sempre responde mal aos nossos estímulos e às nossas investidas, não passando de uma decepção. Mamed e Ali, os personagens centrais do romance, dão a impressão de caminhar na mão oposta à idéia, tão infantil quanto cristã, de que nascemos para o encontro com nossos próximos. A verdade, assim, pode ser outra, diversa do que pensou Aristóteles, pois talvez não haja encontro algum, na verdade mal toquemos em nossos semelhantes, e quando o fazemos, se prestarmos atenção, veremos desequilibrar-se em sua face — e também na nossa — a persona que escolhemos usar naquela manhã, a mentira que a polidez destila em nome da boa convivência social. Nada mais.
Olhares dessemelhantes
Mamed e Ali falam um do outro, separadamente, em duas longas rememorações que formam o eixo do livro. E ambos vêem a si mesmos e ao outro de maneiras sutilmente opostas. Quem, afinal, fala a verdade? Qual dos dois é o mais idôneo, o mais confiável? Quem conhece a si próprio ou fala de si mesmo com sinceridade? E qual deles soube compreender e amar o outro? As perguntas se sucedem e vemos ganhar vida homens aparentemente incompatíveis, mas que se acreditam amigos.
Ali, de tez clara, nasceu em Fez, cidade tradicional do Marrocos, onde se instalaram judeus e muçulmanos fugidos da Guerra da Reconquista, na Península Ibérica. Mamed é pardo e sempre viveu em Tânger, cidade cosmopolita que, a partir de 1912, quando o Marrocos se torna protetorado francês, é declarada zona internacional e passa a ser administrada por vários países europeus. Ali é politizado, mas prefere ler poesia, incluindo o sufi andaluz Ibn Arabi. Mamed é um leitor voraz de Lênin e Marx. Ali se masturba pensando em Ava Gardner; Mamed o faz sem grandes vôos de imaginação, lembrando de uma colega da escola. Quando ambos começam a namorar, descobrem caminhos opostos para satisfazer a libido naquela sociedade moralista, em que a virgindade da mulher era um tabu insuperável. Onde um se apaixona, o outro se mantém frio. Onde um demonstra equilíbrio, o outro se revela um teimoso contumaz. Tudo parece, do começo ao fim, separá-los. E, no entanto, eles permanecem unidos, fiéis, ainda que, em diferentes ocasiões, não sejam confidentes.
Eles perscrutam a amizade como se esta fosse palpável, viva, pulsando entre os dois. Mas o fazem com olhares dessemelhantes, cada um prendendo-se às suas próprias necessidades, aos seus próprios sentimentos. “Era difícil saber qual de nós dois tinha mais ascendência sobre o outro. Nós nos completávamos, precisávamos um do outro. Isso nos dizíamos e ficávamos quase orgulhosos”, lembra Ali. Mas as recordações de Mamed, ainda que pareçam seguir na mesma direção, possuem nuanças reveladoras:
Ali […] tinha uma capacidade de entrar na minha vida, no meu mundo e no meu imaginário que me fascinava e me inquietava ao mesmo tempo. Essa forma superior de inteligência é temível. Eu o invejava. Com o tempo, aquele aspecto intuitivo se tornava preocupante. Éramos dois livros abertos face a face. Tornáramo-nos transparentes um para o outro. No fundo, eu não queria aquilo.
O relacionamento, para Ali, estava vincado de um ideal quase romântico. Contudo, a percepção de Mamed, mais fria, elabora uma rememoração aguda, na qual os pormenores formam um discurso angustiado. E depois que o drama, anunciado desde a primeira página, instala-se na narrativa, Ali conclui, longe do final do livro, ao assistir O falso culpado, de Alfred Hitchcock: “A verdade se mantinha em um fio esticado entre a luz e as trevas. A vida cotidiana parecia simples ali, enquanto era muito complexa; basta que uma aparência se confunda com um sentimento para que nos encontremos no centro de uma conjuração de forças ocultas e invisíveis em que tudo pode se desequilibrar em direção ao horror”. Uma reflexão formulada a duras penas, e que ele produz não apenas em relação à sua amizade com Mamed, mas de maneira a sintetizar toda a sua vida.
A perda da esperança
O Marrocos que serve de cenário à narrativa de Tahar Ben Jelloun é, inicialmente, um país em transição política. As lembranças dos dois amigos remontam à década de 1950, um período conturbado na história marroquina, quando a derrota dos franceses na Indochina (maio de 1954) e a insurreição na Argélia (novembro do mesmo ano), somadas aos atos de terror que ocorrem no Marrocos, praticados por partidários da independência, acabam forçando a França a concordar com o retorno de Muhammad V do exílio, em 1955. A independência, ainda que apenas de fachada, viria no ano seguinte, seguida de crises e cisões partidárias que levariam à ascensão, em 1959, de Hassan II (filho de Muhammad V) ao trono. A partir desse ponto, as esperanças de democratização desaparecem. E será sob um regime despótico que os dois protagonistas viverão, experimentando os anos de violenta repressão política da década de 1960, quando, em 1965, o general Muhammad Oufkir se torna o homem de confiança da monarquia, intensificando as prisões, as torturas e os desaparecimentos de presos políticos.
Ali e Mamed serão presos, torturados e mantidos incomunicáveis durante longos meses, a fim de, “reeducados”, servirem dignamente à pátria. E sofrerão o medo e o terror — “medo difuso, sem nome, sem cor”, diz Ali —, seguidos da dissolução de todos os seus sonhos, quando viver não será mais a busca de um ideal, mas somente a conformação dos desejos às possibilidades estreitas que o Estado corrupto e submetido aos interesses estrangeiros lhes oferece.
Os amigos que, na adolescência, desobedeciam às regras severas do Ramadã, alicerçando a cumplicidade que os unia, acabarão por se separar. Mamed, formado em medicina, parte para a Suécia, enquanto Ali, tendo abandonado a faculdade de cinema no Canadá, resigna-se a uma licenciatura na área de letras, sem abandonar o Marrocos. Ben Jelloun utiliza essa separação com habilidade, servindo-se dela não só para salientar as diferenças entre os dois amigos, mas também com o intuito de revelar os antagonismos sociais que colocam a Suécia e o Marrocos em posições absolutamente opostas na ordem mundial.
O poder massacrante de um Estado absoluto vem acompanhado da desagregação de todas as esperanças. Ficam para trás os anos de juventude, com as tardes passadas no hamman, essa verdadeira instituição do Maghreb, lugar de banhos ritualísticos, erotismo e sociabilidade. Os amigos que traficavam kif, um tipo de marijuana plantada nas montanhas do Rif, ao norte do Marrocos, se afastam. Não acontecem mais os namoros ao som de Dalida, a bela cantora nascida no Egito e que, radicada na França, tornou-se mundialmente famosa interpretando “Bambino” e “Parole, parole”. Desaparecem as atormentadas visitas aos prostíbulos, única forma de escapar da sodomia imposta pelas namoradas, neuroticamente preocupadas em manter intactos os seus hímens. A leitura do Jardim perfumado, do xeque Omar Ibn Nefzaui, uma espécie de Kama Sutra árabe, já não desperta qualquer alegria. E quanto a Frantz Fanon, um dos principais ideólogos anticolonialistas, que Mamed e Ali estudavam com voracidade no colégio, deste restou apenas uma vaga lembrança.
À sombra da morte
A realidade, os dramas familiares, os casamentos, os filhos, a resignação ou o inconformismo, a busca de uma fuga do sistema opressor por meio da sexualidade, a submissão à doença, a indignação crescente contra o Marrocos que, comparado à Suécia, torna-se um país de poeira, mentiras, corrupção e nepotismo, tudo contribui para a manutenção dessa amizade que subsiste apesar da distância. E Ben Jelloun tece a narrativa de maneira a prender o leitor em uma suspensão permanente. Seu texto não arrebata, mas seduz, levando-nos de adiamento a adiamento, por vezes resvalando a verdade, mas acabando sempre por adiá-la.
A palavra final, nesse romance forjado de sutilezas, em que a dúvida persiste até a última página, pertence a Mamed. E quem foi ele, afinal? O mais amigo? Seria ele o derradeiro amigo? E por que, depois dele, qualquer amizade seria impossível, estaria condenada ao fracasso? Um outro filósofo, Nietzsche, em seu A gaia ciência, definiu a amizade como “uma espécie de continuação do amor”, a “elevada sede conjunta de um ideal”, colocada acima da “cobiçosa ânsia que duas pessoas têm uma pela outra”. Entretanto, ele também encerra seu raciocínio com duas interrogações: “Mas quem conheceu tal amor? Quem o experimentou?”.
Em O último amigo, a expectativa de uma carta, cujo único intuito é, presume-se, a destruição, perpassa todo o romance. Será sob esse signo, e sob a sombra nem um pouco acolhedora da morte, que Ali e Mamed se reencontrarão uma última vez. Nesse reencontro, quando todas as diferenças e semelhanças avultam, nesse reencontro do qual restará apenas uma carta, reside a resposta de todas as perguntas, esconde-se a verdade não apenas sobre os sentimentos que uniram Mamed e Ali, mas sobre a esperança, sempre renovada, de que a amizade, a amizade ideal de Aristóteles ou de Nietzsche, seja realmente possível.