A construção do verossímil no espaço da ficção

Na construção do verossímil, para desvendar mundos de existência possível, a ficção de Antônio Olinto acaba por surpreender a verdade essencial de seres e coisas
01/03/2002

Na construção do verossímil, para desvendar mundos de existência possível, a ficção de Antônio Olinto acaba por surpreender a verdade essencial de seres e coisas. Não apenas a sua ficção, mas toda a sua produção literária parece empenhar-se em revelar o humano por detrás de tudo. Na verdade, estamos diante de um escritor amplamente comprometido com a literatura, com a boa literatura. Assim, não admira que a sua obra, como romancista, já tenha sido traduzida para quase duas dezenas de línguas, nomeadamente a trilogia de seus romances voltados para África independente: A casa da água, O rei de Keto e Trono de vidro. Polígrafo, no bom sentido da palavra, a sua secção Porta de Livraria já se incorporou à própria história do jornalismo literário no Brasil, assim como a sua poesia, penetrando no silêncio deslumbrante das palavras, sabe desvendar o sentido oculto que elas só guardam para os iniciados. Como professor e ensaísta, sabe (e muito bem!) associar a indispensável e necessária erudição à leveza de seu estilo comunicativo. Como crítico, sempre voltou o seu interesse para as obras de real valor literário, todas de seu agrado, evitando assim a crítica destrutiva ou mesmo polêmicas inconseqüentes. Afinal, como contista, a exemplo do que se lê em O menino e o trem (Rio de Janeiro, Livro Técnico, 2000), de modo exemplar, constrói uma narrativa que não se afasta da nossa boa tradição romântica-realista, mas sempre em contacto com as conquistas da modernidade. Por isso, em cada conto, com perfeita unidade de tempo e espaço, há sempre um núcleo dramático central, em torno dele construindo-se a narrativa. As personagens são em número limitado, ao contrário do que se verifica em novelas e romances.

Sirva de exemplo o primeiro conto do livro já aqui mencionado, com o título de Mona do Louvre. No caso, o narrador da narrativa, uma narrativa com ponto de vista externo e limitado, é Diógenes, um homem solteiro e de certa idade, bom contador de estórias (a estória, sabe-se bem, é a negação da história), participante de um grupo de amigos (três casais), sendo então instigado por uma das mulheres, que lhe pede para contar o que se passou em Paris com um palhaço. Ele só sabia conversar contando estórias; e de tal forma o narrador (ele próprio) se identifica com o protagonista, no caso Adriano, em discurso indireto-livre, que o monólogo interior acaba ocupando bom espaço da narrativa. Adriano, nos idos de 1968, época de greves estudantis em toda parte, bebia muito “e experimentava LSD, misturando com vinho tinto”. Com engenho e arte, como já se vislumbra, é preparada a atmosfera surreal (ver o termo no Dicionário Houaiss), ou, diremos nós, sobrerreal (adjetivo ainda não dicionarizado) da narrativa, sob os influxos do sonho, da imaginação e do absurdo, já que se sobrepõe ao real (sobrerrealismo). Com efeito, em Paris, um palhaço (e o nome é simbólico) brasileiro de cabeleira vermelha e verde, usuário de LSD, droga que misturava com vinho tinto, após um espetáculo, senta-se num banco, perto do Sena, e adormece profundamente. Sonha então e tem visões estranhas e confusas, sob os efeitos da droga e da bebida. Ao acordar, percebe que uma mulher, de nome Mona, está sentada a seu lado, e com ela dialoga. A semelhança ou relação de identidade entre ela e a célebre pintura de Da Vinci era impressionante. Então, ele indaga: “— Onde mora?” Resposta: “— No Louvre”. E acrescenta: “— Quando todo o mundo sai, é minha hora de ver o mundo lá fora. Percorro as salas vazias, desço as escadas, passo pela minha porta e venho para perto do rio”.

Como se vê, a transição entre o mundo objetivo e o mundo surreal ou sobrerreal se faz sutilmente. As duas personagens conversam, noites seguidas, e afinal se amam envolvidas em clima de intenso romantismo, com a emoção sobrepondo-se à razão. Até então o leitor não sabe se aquilo era realidade ou pura visão surrealista. Adriano e Mona vivem o seu romance, juntos vão ver a Torre Eyffel, de automóvel, tornando-se impossível distinguir o mundo objetivo da própria sobrerrealidade. Mas a mimesis, como força agenciadora da verossimilhança, aos poucos vai preparando o desfecho da narrativa. Antes disso, a ansiedade de Adriano diante da notícia de que uma coleção do Louvre seria levada a Tóquio para uma exposição. A Gioconda (Mona Lisa) era o quadro em maior evidência. Antes da partida, novo encontro, ambos fazendo “amor sobre as pedras do caminho”. A visita ao Louvre, onde o lugar vazio, antes ocupado pelo famoso quadro, o contemplava em silêncio. A longa e penosa espera do retorno da exposição. Espera que se estende pelas madrugadas, sem que ela reaparecesse. Dias e noites de ansiedade, angústia e quase desespero…

Na manhã seguinte, vestiu-se de palhaço e foi visitá-la no Louvre. O quadro não estava lá. Até que um dia ela iria reaparecer no local de encontro, em carne e osso. Ardentemente, fizeram amor. Mas Adriano notou que Mona tossia muito, uma tosse prolongada. Voltou ao local de encontro outras vezes, mas ela não mais apareceu. Sofrimento, aflição, angústia. Afinal, diante dos olhos do leitor configura-se a realidade, quando Adriano, retornando ao quarto de hotel, recebe a informação de ter sido procurado por uma mulher. Ansioso, indaga-se: — Seria ela? Não. A mulher voltaria, como efetivamente voltou, entrando no quarto vestida de preto. Chamava-se Donatella e era amiga de Mona. Ela havia morrido naquela noite. E o verossímil se constrói iluminando a ficção. A semelhança dela com a outra Mona, a de Leonardo Da Vinci, era espantosa; e dava até motivo de gracejos e brincadeiras. Mas ela levava aquilo a sério. Não brincava e acreditava, seriamente, ser a própria reencarnação de Mona Lisa. E começaria a agir como se fosse mesmo a outra. Por isso, a viagem do quadro a Tóquio obrigou-a a se afastar do mundo, embora a amiga Donatella insistisse em que era preciso deixar de viver uma fantasia e encarasse a realidade. Mais ainda: Donatella lhe dizia que certamente o palhaço não acreditava que ela fosse Mona Lisa. Mas ela respondia, com muita convicção e firmeza: “— Ele acredita!”

Como se vê, o real do texto de ficção é aquilo que o próprio texto constrói como verdade. E Mona não quis jamais encarar a outra verdade, a do mundo objetivo ou da realidade em si, com medo de perder seu grande amor…

Em suma, ouça-se a informação final de Donatella a Adriano, o palhaço: “— Foi sacrifício para ela ir ao seu encontro na última noite. Ao regressar, caiu de cama e perdeu a voz. Morávamos no mesmo quarto, levei-a para o hospital, morreu esta noite”. E a isso acrescenta: “Ela me havia pedido que viesse contar-lhe tudo”. E foram vê-la: Mona estava estendida com o mesmo vestido, os braços na posição do quadro, o sorriso nos lábios enigmáticos. Ele — escrever o narrador — “pegou-lhe as mãos, fechou os olhos e sentiu de novo o cheiro de amor feito no chão, experimentou a fundura compensadora daquele sexo antigo, como se fosse o sexo materno, abrindo-se para soltar e para receber, teve a certeza de que seu corpo recebera a força de mil sexos de mulher unidos, em explosões sucessivas de vida realizada, concentrou-se na palavra Mona e ficou dizendo para si mesmo, sem que ninguém ouvisse, o nome de Mona, Mona, Mona, Mona.

Como se vê, trata-se de um conto muito bem construído, nele estabelecendo-se uma relação inicial de inclusão da realidade no sonho ou devaneio, transformando-se depois tal relação de inclusão e relação de identidade plena. Como é evidente, se o conto não estivesse comprometido com uma visão realista, poderia terminar aqui, numa atmosfera ambígua de puro surrealismo. Mas a visão realista do narrador, embora na construção das personagens pulse o generoso sangue romântico, na medida em que a emoção aos poucos vai predominando sobre a razão, a visão realista reclamava um final verossímil. Eram duas ficções, a de Mona e a de Adriano, que se identificaram plenamente, num drama de amor intenso, profundamente humano e, talvez por isso mesmo, pungente. E a solução ou desfecho realista afinal vai iluminar o texto construindo-se o verossímil no espaço da ficção.

Leodegário A. de Azevedo Filho

É professor emérito da Universidade Estadual do Rio do Janeiro, Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e presidente da Academia Brasileira de Filologia

Rascunho