A coleção em negro

É tudo muito vívido — a tarde, o museu — e suspenso como uma estalactite no teto gelado da memória
01/08/2001

Tudo é para se perder e nada é para sobrar
Lúcio Graumann

É tudo muito vívido — a tarde, o museu — e suspenso como uma estalactite no teto gelado da memória: vi obras de arte, pela primeira vez, quando era ainda estudante na nossa cidade natal bombardeada (aquela bela cidade com uma ponte de mármore da qual não resta nada). Tenho a mente clara sobre isso, tão clara quanto as salas iluminadas e a sombra de um gesto meu (que não empanada nada).

Devo ser estritamente verdadeiro: tal gesto foi uma surpresa para mim próprio, a sua impulsividade me pegando de surpresa ao me aproximar de um quadro de certa importância…

Bem, deu-se o seguinte: a minha mão, no bolso, pegou do canivete afiado e arranhou — quase cortou — a obra antiga, na parte inferior esquerda: a carne de tinta de um cão fiel ao lado do senhor feudal montado. Era a parte da pintura (de boas dimensões) que eu podia alcançar, a mão de jovem agressor de repente substituindo a mão do estudante que toca, com admiração distraída, a pata de um cão pintado. Claro que eu estava sozinho na sala. É evidente, também, que não permaneci na sala, a contemplar o risco vândalo, o feito de uma ousadia rebelde do gênero que não esperariam de mim os meus pais, meus professores e alguns colegas que teriam talvez jurado não ter sido eu o agressor do quadro — tal era a quietude dos meus hábitos pacíficos, os cuidados com os brinquedos de madeira, as figuras recortadas (que outras crianças destruiriam só com o pegar de mal jeito) e até com roupas, sapatos e objetos outros, mantidos limpos e o mais intactos que o permitiam a passagem do tempo e o uso.

Fui para casa e, dias depois, voltei ao museu — para fazer o mesmo percurso, paciente, até chegar à obra do risco de canivete, na última sala. Não estava lá. No seu lugar só havia a enorme área, mais pálida, marcando uma espécie de nódoa do fantasma do quadro ausente do museu que providenciara uma explicação improvisada, acima da etiqueta com os dados do quadro: “Retirado para Restauro”.

Foi quando — creio — nasceu o cínico dentro de mim, a perguntar ao guarda agora bem junto dos visitantes: “ E este espaço vago?”

“A obra que estava aí está sendo restaurada, como você pode ler no aviso.”

E nada mais acrescentou sobre o vazio, muito belo e sutil, o leve quadrado onde estivera o cavalo, o cavaleiro e seu cão, espaço de umidade e poeira cuja delimitação na parede criava uma mancha como a marca de água dos papéis mais finos e caros.

Saí, duplamente insultado. Não pudera rever o risco, o quase corte — e nem voltar ao ato impulsivo, talvez na pata do cavalo no ar (se me espichasse para agredir mais acima e mais fundo, no quadro).

Por muito tempo não voltei ao nosso museu. Guardei, sem mácula, a lembrança da quase ferida na tela, durante os anos que vieram — trazendo as perturbações sociais e as mudanças políticas que trazem os anos, a passagem do tempo nos apanhando na voragem de acontecimentos previstos e imprevistos. E deixei os museus em paz. Tive que fugir das batalhas, das marés de sangue empurrando as populações civis para as fronteiras, e fui acumulando bens adquiridos nessas contingências, operando nos mercados negros, à sombra dos anos infelizes que sobrevieram. Tornei-me, em pouco tempo, um homem rico. Meu nome começou a ser chamado nos restaurantes e hotéis, para atender aos telefonemas dos poderosos por força do dinheiro ou por alta colocação na administração pública — e pude comprar uma grande casa, carros luxuosos… mas, muito antes disso, meus primeiros recursos significativos se destinaram às obras de arte, isto é, a quadros, precisamente a pinturas, velhas e novas, porque nelas me fixei: procurava-as nas galerias, nos lugares do seu comércio ordenado e desordenado, onde artistas exibem obras boas e más, pequenas e grandes, baratas e caras, a fim de comprar tudo o que me agradasse. Nos primeiros anos, regulava-me pelo que fosse mais barato, naturalmente. Depois, não mais importava que fosse o mais caro o quadro que me agradasse: eu o queria e isso era o bastante. Tornei-me um comprador regular, um cliente que os marchands gostavam de vir atender pessoalmente — assim como vinham bajular Kahnweiler, Rosenberg, Wildenstein (e outros que também conheci e que alardeavam, todos, o meu “bom olho” para a arte).

Com o passar dos anos, os jovens proprietários de galerias, ainda inseguros, passaram a considerar o meu interesse por este ou aquele artista como um indicador seguro da qualidade dos seus trabalhos. Transformei-me numa espécie de termômetro artístico para alguns deles, embora eu os mantivesse — junto com toda a fauna de artistas e críticos — longe da minha intimidade o mais possível… e rigorosamente afastados para o outro lado da cerca da minha vida, impedidos de estreitar relações ou qualquer outro tipo de contato mais próximo do que nos seus estabelecimentos comerciais e estúdios etc.

Embora cortejado, nenhuma lisonja sobre o meu gosto (e coleção guardada a sete chaves) quebrava a minha guarda, logrando diminuir a distancia que eu mantinha, em termos pessoais.

Houve ocasiões, claro, em que mais de um marchand ou artista quis atentar contra essa regra não-escrita da minha vida. Principalmente artistas — esses seres nervosos e insistentes demais — quiseram, eventualmente, rever um ou outro dos seus quadros (que eu adquirira, pagando para torná-los meus)… Mas eu cortava o assunto, e qualquer possibilidade de uma “visita”.

Por que haveriam de vir? Para ver, para fotografar o quadro de algum pintor que acaso se tornara admirado, festejado? A obra, por mim comprada, e que acaso pertença aos primeiros vagidos artísticos de quem quer que seja, pertence-me por direito de compra e de posse, inquestionáveis. Sendo assim, posso vedar o acesso dos autores ou de intermediários e  intelectuais da arte, nela acaso interessados. Posso mostrar…

Bem, não há nada a mostrar, na verdade — exceto o meu gosto das cinzas. Não há obra nenhuma para ver, nada para rever ou fotografar, aqui comigo. Minhas paredes são nuas, vazias.

E são muito bonitas. Não há quadro nenhum a macular o seu branco de tinta sem riscos e sem manchas, uma vez que todos as obras que eu compro são ritualmente rasgadas e destruídas por meu velho canivete, antes de serem levadas ao forno onde incinero todas essas aquisições, inapelavelmente.

Ainda vejo a pata do cavalo, levantada no ar, naquele quadro que existiu no museu da minha antiga cidade destruída — e o cão jaz na lembrança, ferido tão superficialmente, na carne de tela, que parece parco e raso o volume de cinzas da arte que guardo numa urna grega tão grande quanto foi possível encontrar, logo cedo, nos começos da minha atividade de colecionador em negro.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho