Vão tentar enganá-lo, leitor. Vão dizer que se trata de um livro de um escritor que, por coincidência ou acaso, é também compositor. Vão tentar provar, de todas as maneiras, que são capazes de ter uma relação absolutamente isenta na apreciação do romance em questão. Vão fazer das tripas coração para ocultar o óbvio: por trás de Budapeste, de Francisco Buarque de Hollanda, há uma persona chamada Chico Buarque. E se deixar poluir ou não por ela está um pouco acima das capacidades do leitor.
Não é defeito; é apenas uma condição. Chico Buarque fez e ainda faz história na música brasileira. Eu, particularmente, considero-o de longe o melhor compositor em atividade aqui ao sul do Equador. Seria irresponsável de minha parte dizer que leio Budapeste, o terceiro romance da carreira dele, tendo em mente apenas o escritor. Seria mentiroso, sobretudo. E, no final das contas, também seria inútil.
Chico Buarque, a persona, é compositor. Com seus olhos verdes, encantou multidões (eu incluído) nas últimas quatro décadas, com músicas absolutamente brilhantes. A minha preferida, dentre tantas, é Eu te amo. Chico Buarque foi parceiro de nomes incontestáveis do nosso panteão da clave de sol: Tom Jobim, Francis Hime, Edu Lobo. É autor de uma centena de clássicos que neste exato momento estão tocando em alguma rádio Brasil afora ou no seu CD player mesmo.
E a música tem destas coisas: cria mitos mais do que a literatura. Sempre achei, cá entre nós, que a incursão de Chico Buarque na literatura (isso no tempo em que eu não atentara para o embate persona versus autor) tinha algo de excessivo. Era como se Chico Buarque estivesse cansado dos aplausos fáceis da música brasileira, terreno onde se consagrara e agora enveredasse por este terreno mais arisco que é a literatura. Claro que, embutido neste meu pensamento, há uma série de preconceitos para lá de questionáveis. Ele parte da premissa que fazer sucesso na música é mais fácil do que na literatura, que os críticos de música são mais condescendentes que os de literatura, e que o público da música é menos exigente que o de literatura. Tudo muito questionável e facilmente refutável, bem sei.
Houve uma época até que pensei que Estorvo e Benjamin tinham sido escritos para consolidar uma polêmica antiga e desgastada. Há os que, como eu, defendem a separação, por exclusão até, entre a poesia e a letra de música. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa — como reza um bom argumento de botequim. Ora, muitos compositores têm se insuflado contra isso. Querem porque querem o epíteto de poetas. E eu achava que Chico Buarque tentava provar, com romances absolutamente pretensiosos, que compositores não só são poetas, como já reza o lugar-comum acadêmico (nas faculdades, como afirmou lá longe Bruno Tolentino, Caetano Veloso é estudado como poeta), mas também como escritores canônicos. Uau!
Foi então que eu acordei para algo: não era Chico Buarque que estava escrevendo aqueles romances ruins. Ou melhor, livros não tão bons assim. Livros ruins — não sejamos condescendentes. Ruins. Quem estava de fato escrevendo aqueles livros era o Francisco. A persona Chico Buarque apenas impulsionava as vendas, acima de qualquer expectativa para um livro que o Francisco escrevesse, ainda mais naqueles moldes nouveau roman.
Entremos, pois, num acordo desde já: Estorvo e Benjamin são ruins. Este é melhor que aquele, o que não o redime de modo algum. Pretensiosos, falhos, capengas, perdidos, enfadonhos. Francisco tentou, mas falhou. As vendas foram astronômicas (com o perdão do lugar-comum espacial), houve leitores que depois que fecharam os livros foram escutar O que será — a título de desintoxicação — e outros que aplaudiram os volumes porque, afinal, quem é que tem coragem de contradizer a persona, não é mesmo? Nem eu sei se teria.
Por isso é que não me sinto culpado pela desconfiança que se apoderou de mim quando soube que a Companhia das Letras estava para lançar novamente um livro de Chico Buarque. A primeira notícia que tive de Budapeste veio de Miúcha, irmã do compositor, que me afirmara em entrevista que ele, o irmão, estava fechado, isolado do mundo, cuidando do seu livro. Na hora me permiti a empolgação dos fãs. A mesma que levou, tenho certeza, pelo menos 90% dos 50 mil compradores do livro — em duas semanas — às livrarias reais ou virtuais. Depois foi quando vi a capa do livro, num material de divulgação da editora.
Acontece que eu havia terminado de ver este material e ainda estava pensando se leria ou não Budapeste (afinal de contas, o Dostoievski, na estante, não tira os olhos de mim) quando viajei para a praia, com um amigo. Íamos nós caminhando pela areia, conversando amenidades (literatura, mulheres, bebidas, política, futebol, mulheres, bebida,…), quando esbarramos em Chico Buarque. Não no homem, mas no assunto. E eu não tive pudores em dizer para o amigo que sei não, sei não; deve ser ruim como os outros; mas, afinal, é o Chico; todo mundo vai falar bem, aquela coisa.
Ele me confessou ter o mesmo receio. Até hoje, ao que consta, não leu Budapeste, apesar de minhas ligações insistentes, desde que fechei o romance. Mas, na hora, ousou me aconselhar a não falar mal do livro. Não porque fosse um destes covardes que abundam em nossa intelectualidade (com trocadilho, claro); e sim porque estava fascinado com um conceito que parece estar entranhado em tudo o que a persona Chico Buarque fizer: carisma. Em tempo: o Francisco não tem nada a ver com isso. Até aqui.
Venci minha desconfiança inicial e aqui estou, escrevendo sobre Budapeste. Creio que todos os leitores deste Rascunho, a essa altura do campeonato, sabem de cor e salteado o enredo de Budapeste. Não? Então eu ajudo:
O livro conta a história de um ghost-writer, José Costa, afundado em dúvidas, que eu poderia chamar de existenciais, sobre o processo da escrita. Não era para menos: o personagem é casado com uma apresentadora de telejornal, também às voltas com as palavras, só que usufruindo da popularidade que elas são capazes de lhe conferir enquanto leitora de tele-prompter. Costa é bem-sucedido em sua polêmica profissão, mas não se sente lá muito realizado. Quero dizer, deve ser duro ter de escrever coisas que os clientes acham brilhantes — e, eventualmente, coisas que até os leitores consideram brilhantes —, sem levar crédito algum por isso. A sublimação da vaidade a este ponto é impensável para 101% dos nossos escritores. José Costa, ao que tudo indica, não é a exceção.
Um belo dia, José Costa tem de fazer uma parada na Hungria, por conta de uma ameaça de bomba no avião em que viaja. No hotel, atenta para o magiar, ou húngaro, este idioma que é fascinante porque único. E nele mergulha a ponto de abandonar tudo o que tem no Brasil até se tornar um native speaker.
O que Francisco faz neste livro de mais notável é uma defesa do anonimato. Budapeste pode ser lido como uma espécie de tratado da sublimação do eu dentro da literatura. Complicado? Nem tanto. Já à página 117, Francisco deixa bem claro que José Costa pensa na literatura como uma arte elevada porque não pressupõe a exaltação do artista: “(…) embora literatura, cá para mim, seja das artes a única que não precisa se exibir”.
Sim, a frase é ingênua, mas ela encerra, nesta inocência elaborada, por assim dizer, algumas premissas que cercam a dicotomia entre a persona e o artista, inclusive no caso dele, Chico que também é Francisco. É com ressentimento, sim, mas também com escárnio e deboche que José Costa se percebe um escravo do ego quando escreve, sob encomenda, um best seller elogiado pela crítica, de cujos louros ele não pode tirar proveito. Ironia é o que não falta numa das cenas mais interessantes de Budapeste: um congresso mundial dos escritores anônimos, onde estes seres desconhecidos, submetidos à fama alheia por profissão, se reúnem para dar mostras de seus talentos que, apenas para fins econômicos, levaram a assinatura de outrem.
Francisco não só defende a literatura como uma manifestação artística a rigor sem o eu, como mostra o seu contrário: a literatura também é identidade. O homem é indivíduo único e diferente de seus pares porque escreve de uma certa maneira. O modo como dispõe as palavras no papel, a escolha lexical, o uso ou não de mesóclise, a escolha entre uma ênclise ou próclise, tudo isso acaba por determinar um indivíduo. Uma vez que um homem empreste sua identidade, através da escrita, para outra pessoa, está abrindo mão de algo que o torna ser existente.
Não à toa, Francisco Buarque acertadamente escolheu o húngaro como idioma substitutivo de seu personagem, que passa então a se chamar Zsoze Kósta. Se escolhesse o inglês (como, aliás, fez João Gilberto Noll em seu Berkeley em Bellagio — livro bastante semelhante, em argumento, a este Budapeste), não reforçaria o caráter individual da língua. Francisco, pois, usa de certa hipérbole aqui para fazer o seu leitor entender que José Costa parte para a Hungria não atrás de uma aventura adolescente. O que ele quer é diferenciação pela língua. Não ser mais confundido com o José Costa ghost-writer parece ser a ambição do personagem.
Aliás, vale falar ainda que a escolha de Francisco pela Hungria e o modo como desenvolveu o enredo a partir disso pode ser visto como uma grande lição de imaginação para aqueles que insistem em escrever chatos romances existenciais que se passam em suas cidades de origem. Ao que consta (e eu quero crer que é verdade), Chico Buarque nunca esteve em Budapeste. Ora, mas o livro não se passa na capital da Hungria?!, você pergunta. Sim, se passa. Mas quem disse que o escritor precisa ter impressões reais de um lugar para transmiti-las a seus leitores? Aliás, quem é que está atrás de coisas reais aqui? Eu não.
Claro que aqui se pode pensar em um tipo de imaginação que é louvável somente porque é bem cuidada. Ao menos para nós, leigos. É possível que um húngaro não veja com bons olhos o modo como Francisco retrata Budapeste — ao que tudo indica, descreveu as ruas por cartões-postais e as andanças de Kósta pela cidade usando um mapa. O importante é que Francisco não cai em lugares-comuns muito evidentes. Kósta não fica, por exemplo, passeando pela Transilvânia à procura de vampiros; nem tampouco vai assistir a uma corrida no autódromo de Hungaroring.
Só para citar dois exemplos do contrário, a fim de mostrar a competência de Francisco neste sentido: Patrícia Melo e Paulo Coelho. A primeira confessou, quando do lançamento de seu livro Inferno, que jamais foi a uma favela. Ora, o livro se passa em uma favela. Mas a escritora preferiu imaginar a favela ou, por outra, contou com informações dadas por sua empregada doméstica e, claro, pelos telejornais. O que se viu, no livro, foi uma favela feita para inglês ver (tanto que o livro foi indicado para um prêmio qualquer na terra da rainha, se não me engano). O outro, em seu mais recente livro, Onze minutos, imagina (e isso é força de expressão) uma menina pobre vivendo no sertão nordestino. E imagina como o mago das letras nacionais descreve este sertão? Pois é.
Francisco faz mais do que imaginar o cenário de seu romance, Budapeste. Ele também usa de certo deboche ao dar aos personagens nomes dos jogadores da seleção húngara da Copa do Mundo de 1954. Num mundo que privilegia tanto a pesquisa, a realidade, as referências verossímeis e o escambau, nada como dizer ao mundo, como direi?…, viciado das letras: tudo o que eu sei sobre os húngaros são os nomes dos jogadores de um campeonato injusto de futebol (a Alemanha jamais deveria ter ganhado aquela Copa). E olhe lá.
Só para constar: a seleção da Hungria de 1954 era composta por Grosics, Buzansky, Lantos, Bosziklorant, Zakarias, Czibor, Ferenc, Puskas, Kocsis, Hidegkuti, Toth. Se Francisco não fez uso dos nomes ipsis literis, dá para perceber que usou a sonoridade dos nomes. Ou será que estou dando crédito demais à persona para acreditar em tal factóide?
Não há só galhofa em Budapeste, claro. Francisco se esmera na descrição de uma ambigüidade que tem mais do que metalingüística. José Costa é ghost-writer e, como tal, a certa altura recebe a incumbência de escrever um livro para um alemão. O que faz, já pela sua confusão, com esmero demasiado. Não percebe, ao longo da confecção do livro, que ele é e não é seu. Trabalha e acaba por compor uma obra-prima (vamos brincar de ser condescendentes com termos desgastados?). Instaura-se, então, a dúvida: o que é ser escritor senão apenas escrever? Todos os penduricalhos da atividade, incluindo aí fama e glórias mil, não seriam justamente isso: penduricalhos?
Francisco habilmente conduz o leitor a uma confusão, neste sentido. Budapeste é escrito em primeira pessoa e, por isso, nossa tendência é lê-lo como a obra de José Costa/Francisco Buarque de Hollanda. Mas José Costa é também Zsoze Kósta, que por sua vez pode ser também Francisco. Ora, mas José Costa/Zsoze Kósta, em sendo o mesmo, é também nenhum na medida em que sabemos se tratar de um ghost-writer, um homem que escreve profissionalmente para que outros levem o crédito. Como ghost-writer, escreveu para um tal Kaspar Krabbe um livro autobiográfico mentiroso (com o perdão da redundância), “O Ginógrafo”, publicado com uma capa mostarda, tal qual… Budapeste. Para piorar, temos ainda a persona Chico Buarque misturada ao autor Francisco Buarque… Que tal lhe parece?
Há uma cena que não posso deixar de citar como exemplo da maestria narrativa de Francisco Buarque neste livro: a da roleta-russa, à página 52. Uma análise mais profunda desta cena não caberia nesta crítica, mas eu não poderia terminar o texto (calma que ainda não acabou!) sem deixar de citar a cena. Roleta-russa. Página 52. Maestria narrativa.
Gosto de imaginar que meus leitores possam estar agora me considerando um vira-casaca. Afinal, como posso eu afirmar que um livro inegavelmente existencial é bom, se disse, há alguns meses, que a literatura existencial tal qual é produzida hoje é uma coisa datada, anacrônica e, por isso mesmo, reprovável?
Antes de qualquer coisa é preciso dizer que não há livro ruim a priori. E o bom leitor é aquele que deixa o livro surpreendê-lo. Não é fácil, claro. Tanto que, antes de pegar na estante o livro de Chico Buarque, olhei dez mil vezes para o Tolstói que me convidava à leitura. Mas é preciso, sim, insistir, acreditar que o que se está produzindo é boa literatura. Apesar das centenas de milhares de provas em contrário.
Budapeste surpreende por pequenas manobras que, não sendo originais, ao menos são engenhosas o bastante para fazer com que o livro se destaque entre seus confrades existenciais. O ócio, por exemplo, de que se serve José Costa para suas elucubrações filológicas e filosóficas, não é aquele ócio tradicional, marginal e vagabundo. Francisco ri de nossa intelectualidade, criando uma estabilidade financeira para seu personagem que provém da ignorância de nossos homens de letras. Além disso, Francisco não se atém apenas às lamúrias do cotidiano, como é comum em livros deste tipo. Ele nos dá algo que a literatura brasileira atual parece ter esquecido: ambigüidade. Não falo só da ambigüidade ghost-writer/escritor, aqui já exposta. Falo de outra. Posso abrir um parênteses para falar melhor?
Obrigado. Há em Budapeste algo que parece ter passado despercebido pela maioria dos leitores que sobre ele tem se debruçado. Ninguém parece se preocupar, em nenhum momento do livro, com a sanidade do narrador. Por um mistério, todos os leitores dão crédito às palavras do narrador. Acreditam no que ele diz cegamente. O que é empobrecedor, para a leitura, constato. Porque esta credibilidade conferida pelo leitor faz com que uma ambigüidade crucial para a compreensão do romance escape.
Ora, José Costa é um homem perturbado o suficiente para fugir, não só de sua família, como também de seu idioma. Além disso, parece carregar traços evidentes de frustração e ressentimento, primeiro pelo fato de escrever e não ser reconhecido como escritor, a não ser pelo seu sócio; segundo porque, na sociedade de que faz parte na agência de ghost-writer, é um pária, por sua condição de mão-de-obra numa sociedade capital-indústria.
Lá pelas tantas, Francisco dá a dica: Kriska, sua professora de húngaro puro na Hungria, trabalha num manicômio.
Francisco Buarque de Hollanda condena a vaidade. Ele propõe um jogo não muito sadio de sublimação desta vaidade que permeia a literatura, sobretudo na tal da sociedade de consumo, da cultura de massa (para deixar marxistas e discípulos de Adorno satisfeitos com os termos aqui empregados). Mais do que isso, ele propõe que a literatura seja mais do que uma atividade social, seja uma ambição. E não se trata aqui de ambição para as coisas materiais que a vida intelectual possa dar, e sim de ambição no que diz respeito ao desenho de uma identidade única por meio do uso do idioma. Assim é Budapeste, livro pelo qual Francisco pode ser chamado, finalmente, de grande escritor. Para o bem até do Chico, que será sempre um grande e incontestavelmente talentoso compositor.