Minda-au, de Marcio Renato dos Santos, reúne sete contos que falam de homens comuns e de uma Curitiba que com eles contracena. Apesar de a obra ser de estréia na ficção, o percurso da experiência na escrita vem de algum tempo em jornais, revistas e sites. Sub, o primeiro conto, inicia-se: “Chove em Curitiba e isso é problema para Edward”. Ao mesmo tempo em que a cidade abre o texto, o protagonista é apresentado. Aliás, através da ação, a cidade passa a ser descrita antes de qualquer um: “(…) dezenas de sujeitos surgem a oferecer guarda-chuvas pelo preço de uma refeição popular. Carros saem das garagens e circulam nas, ou sobre as, ruas. Aumenta o faturamento dos taxistas. Bueiros inundam e isso é de fato problema para Edward”. A cidade é partida em superfície e subsolo. Edward, junto “a ratos, baratas e outros animais em movimento”, habita agora o subsolo, enquanto for possível. O protagonista já foi morador da superfície. “É foragido. Clandestino.” Com a chuva é expulso do subsolo, perambula sem identidade, sem CPF, em busca de seu destino, caminhar invisível, caminhar sem rumo, perder-se na cidade. A cidade-superfície e a cidade-subsolo, com todas as referências geográficas pontuadas, representam mais que espaços físicos. São signos de tempos que se cruzam. Passado marcado por lembranças, ruas, afetos e desafetos. Futuro sem perspectivas. Presente predominante através da ação dos personagens mergulhados na cidade e nos seus excessos de significados. Sujeitos descentrados, desterritorializados, sem identidade, ou melhor, com identidades fluidas, indefinidas e múltiplas.
O conto A guitarra de Jerez gira em torno de uma suposta maldição que fazia de todos que tocassem o instrumento vítimas fatais. O personagem narrador, em primeira pessoa, é o mais novo proprietário dessa relíquia e nos narra a aventura de tê-la adquirido e os sobressaltos de uma relação marcada pelo temor e pela sedução. O mesmo clima de suspense pode ser observado no conto O espírito da floresta. Ambos os contos reúnem curtas narrativas de casos e fatos que justificam a excepcionalidade da guitarra ou da crença num espírito da floresta, também ameaçador e onipresente na Cidade e na vida de seus habitantes. As breves narrativas, de modo geral, como notícias jornalísticas, sobrepõem-se umas às outras para reafirmar as teses centrais dos contos ou sustentar as obsessões dos personagens. “Um advogado da cidade perdeu um dos três filhos. (…) Há quatro dias, o jurista foi encontrado sem vida. Na cadeira do escritório. A avó, Ana, disse que o acontecimento tem ligação com o espírito da floresta.”
Os elementos de uma realidade palpável e objetiva, como ruas, apartamentos e sofás e os aspectos de um imaginário popular ou onírico aproximam a narrativa do realismo fantástico, sem contudo aprofundar ou radicalizar essa perspectiva. A composição da narrativa com frases curtas, entrecortadas, por vezes como fragmentos, sem compromisso com uma sintaxe rígida, reproduz a dinâmica da linguagem jornalística. De modo geral, mais do que uma trama ou um enredo, esses contos parecem se preocupar com a maneira de dizer e construir uma linguagem da perplexidade e do cotidiano acidentado dos viventes da Cidade.
Segundo Felipe Pena, em Teletransporte n.° 2, “Marcio subverte a pontuação, ignorando vírgulas e parágrafos, em um claro tributo a José Saramago”. Mesmo aí, é possível notar a escrita telegráfica, sintética aos moldes jornalísticos. Em última análise, são frases que se seguem uma após a outra enquanto coordenações. Ou seja, se substituídos os “es” por pontos ou vírgulas, o texto mantém a dinâmica de construção dos demais. Esta escolha, entretanto, poderia se justificar por colaborar com o conteúdo onírico da narrativa e/ou por sugerir um fluxo de consciência de um narrador que mistura o plano da realidade com o da alucinação sonho. A explicitação recorrente dessa possibilidade poderia ser dispensável, no sentido de deixar sonho e realidade num mesmo nível de força. A tensão poderia ser reforçada se a possibilidade do sonho ficasse como sugestão e não confirmada pela repetição da hipótese. O uso do recurso de polissíndeto (“e” em seqüência) é muito comum no discurso bíblico, que no conto também dialoga com o discurso ficcional: “E caminho não dentro de sua massa de sangue, mas sobre águas multiplico pães curo doentes ressuscito mortos anuncio um novo tempo e me querem na cruz… mas isso dever ser alucinação sonho e não acontece”.
Em Os homens sem alma, não há trama explícita, definida. Há ações sempre como caracterizadoras desses homens sem alma, entre os quais todos nós estamos incluídos, de narrador a leitores. São conflitantes os atos e os traços desses homens. “Os homens sem alma se movem sozinhos. Os homens sem alma se movimentam acompanhados.” São homens na multidão que “circulam em Curitiba”, que “habitam Curitiba” na sua diversidade de modos de ser e de fazer a vida. Têm em comum a cidade que os abriga e oferece possibilidades de seguir em sua condição precária, transitória e humana. O que estaria fazendo esse quase poema, essa quase crônica num livro de contos?
Forma
Nadia Battella Gotlib, em Teoria do conto, lembra que Mário de Andrade ponderava: “(…) em verdade, sempre será conto aquilo que seu autor batizou com o nome de conto”. Portanto, neste sentido, não há como questionar o gênero literário que vem sendo construído e caracterizado mais pela variedade do que por traços formais cristalizados. Ainda Mário, ele avaliava que “bons contistas” como Machado de Assis e Maupassant, que buscaram tanto uma “forma do conto”, encontraram “foi a forma do conto indefinível, insondável, irredutível a receitas”. Provavelmente com base nessas premissas é que vêm sendo aprofundadas e radicalizadas as experiências da escrita, desconstruindo e reinventando a história dos gêneros e incorporando novas linguagens (cinematográfica, jornalística, midiática etc.) ao texto literário.
Para quem busca uma nova vida (ou Cinco meses em Porto Alegre) é centrado na tentativa do protagonista recomeçar a vida e nas frustradas iniciativas de retomada. Como dizia a canção popular de Geraldo Vandré: “(…) mas a vida não mudava, mudando só de lugar”. Curitiba e Porto Alegre são testemunhas dessas tentativas, a cidade de origem e a cidade visitada dialogam entre a crise de identidade e a crise de criatividade da escrita do personagem.
Em Ali, agora, dois personagens caminham pela cidade, ora num presente narrativo, ora num tempo psicológico de memória afetiva. Ele, o jovem aprendiz e o Mestre, o velho sábio e amigo. Entre eles, a Cidade, no qual o primeiro ensaia os imaturos passos e o segundo o ajuda a ler e a compreender. Entrevistas do autor apontam uma singela homenagem ao amigo mestre numa tomada autobiográfica. Na literatura essa relação de troca, amizade e aprendizagem é recorrente. Lima Barreto, no romance Vida e morte de J. M. Gonzaga de Sá, e Rubem Fonseca, no conto A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, são exemplos clássicos dessa abordagem. A Cidade é personagem que liga a memória de um passado que se despede e de um presente que precisa, para criar e prosseguir, do legado dessa tradição.
O autor, em uma breve introdução, faz alusão à origem do título: “Minda-au foi a tradução que encontrei, com menos de um ano, para um dromedário de um quadro que minha avó, Diva, inventou”. O que há de especial nessa observação, além da referência biográfica, é que o título do livro é o elemento unificador dos sete textos, bem diversos enquanto temáticas e construções narrativas. Remete a uma memória afetiva bem primária, lúdica e criativa, que diz respeito aos primeiros contatos do menino com o mundo, a partir da linguagem. É essa relação entre sujeito e objeto-mundo e suas traduções o que mais importa na ficcionalização da experiência urbana de narradores e personagens. A linguagem enquanto experiência estética e identitária se coloca como desafio. Curitiba assume também um espaço privilegiado. Mais que um cenário no qual se desenvolvem as ações, a cidade dramatiza como personagem as complexidades da experiência urbana, tanto locais, quanto do contexto social, humano e contemporâneo.
3 Perguntas – Marcio Renato dos Santos
• Por que iniciar a carreira literária com um livro de contos?
Comecei a escrever ficção há mais de duas décadas, mas não pensava em ter um livro publicado, apenas em escrever. Durante esse tempo, produzi contos, uma novela, um romance, poemas e outras prosas, até letra para canção. Desde o ano 2000 eu publico contos em revistas e jornais. Há dois anos, comecei a reler minha ficção e percebi que tinha mais de 700 contos finalizados. Separei os textos, o que resultou em mais de 20 livros de contos. Um deles batizei de Minda-au e enviei para a Record. Um dia, recebi uma ligação da Luciana Villas-Boas, a diretora editorial, dizendo que iria publicar o meu livro. Quase tive um siricotico. Ainda mais porque quem decidiu publicar Minda-au foi ela, a Luciana Villas-Boas, uma das pessoas que mais lê, entende e gosta de literatura. Isso já diz muito a respeito de Minda-au. Mas, respondendo à pergunta, decidi iniciar a minha carreira literária com um livro de contos porque foi nesse gênero que eu mais trabalhei e retrabalhei a minha ficção.
• Como foi o seu primeiro contato com a literatura? E o que ela representa atualmente em sua vida?
A literatura chegou à minha vida durante umas férias no final da década de 1980, por meio de um romance, de que já nem lembro mais o título. Desde então, vivi poucos dias sem ler. Já cheguei a ler por seis, sete horas diariamente durante alguns anos da década de 1990. Hoje fico pelo menos duas horas lendo todas as noites. Há quatro anos, saí de férias com a decisão de não ler. Mas não agüentei. Tive de comprar dez livros, que li em sete dias. Gostaria, mesmo, de passar uma semana sem leitura, mas não consigo. Se eu não ler, tenho a sensação de que estou perdendo algo muito interessante. Não imagino a minha vida sem livros e sem a leitura diária. Escrevo ficção todos os dias por pelo menos 30 minutos. Foi lendo que me tornei escritor. E não encontro explicação para isso.
• O que você espera alcançar com sua escrita?
Quero escrever textos que me surpreendam. Quando faço um conto que, ao final, me nocauteia, fico razoavelmente satisfeito. Entre os que estão em Minda-au, tem um que me arrebatou completamente. É o De teletransporte n.º 2, que tem um personagem que não sabe se sonha ou está acordado dirigindo um carro desgovernado. O texto quase não tem pontos e é uma recriação literária do que pode ser um pesadelo. Escrevi umas 20 versões, reescrevi mais de 20 vezes cada uma das versões e, quando reli, gostei mais daquela que eu marquei com o número 2, daí o porquê do título. Fazer contos como o De teletransporte n.º 2 é o que me faz pular o mundo. Também quero ser lido. Resenhistas dos jornais Gazeta do Povo, Jornal de Londrina, Jornal da Comunicação (UFPR), Correio do Povo, Correio da Bahia, além do Luiz Paulo Faccioli, na BandNews de Porto Alegre, e do Bruno Zeni, no Guia da Folha de S.Paulo, leram e comentaram Minda-au. Agora, serei resenhado no Rascunho. Espero que mais pessoas leiam, comentem e escrevam sobre Minda-au.