Trata-se de alguém que possui duas maneiras de assinar seus escritos e dupla militância. Em uma vertente está Rafael Cardoso Denis, professor de história da arte, autor de Uma introdução à história do design (Editora Edgard Blücher, 2000), ensaio que, com o pretexto de apresentar uma disciplina, oferece uma visão panorâmica da cultura material do ocidente recuando ao menos até a Revolução Industrial, de forma a garantir interesse pelo público em geral — e não apenas por parte dos estudantes para quem, em primeira instância, o trabalho foi escrito. Por outro lado, com o nome reduzido para Rafael Cardoso, o docente universitário inicia-se na ficção com A maneira negra, reunião de duas narrativas de inspiração policial, uma mais longa — À maneira negra — e outra mais breve — Blecaute.
A primeira trata da circulação de obras falsificadas no mercado de artes plásticas do Rio de Janeiro e, na medida da sua intimidade com o mundo artístico, o autor não fez pesquisa específica para a confecção do texto — recurso corriqueiro na recente literatura brasileira. Esta estréia do ficcionista não é com histórias de detetive e o aspecto criminal das tramas chega a ser leve: há poucas mortes (uma em cada narrativa) e uma confissão é extraída em uma amigável conversa de velhos conhecidos, com direito a cerveja. Completamente destreinados para uma investigação policialesca, os protagonistas de Rafael Cardoso se envolvem a contragosto e contra suas rotinas em alguns meandros sórdidos da existência na cidade grande.
E o Rio de Janeiro é mesmo onipresente: os narradores traçam uma geografia sócio-sentimental carioca. Desta maneira, Cardoso aproxima-se de um outro escritor que também não era propriamente policial: o José Carlos Oliveira de Domingo 22 (Ática, 1984). Nesse romance em primeira pessoa, o capixaba Carlinhos Oliveira descreve as paragens da cidade maravilhosa pelos olhos de Charlot, migrante que veio tentar a sorte e rapidamente se vê envolvido com o grand monde, sem deixar de empreender algumas achegas ao bas-fonds. E se o narrador de Domingo 22 não é nativo, como o são os protagonistas do carioca Rafael, os personagens dos dois autores têm bem mais identidades que o fato de habitarem a mesma urbe: todos eles são dependentes de figuras femininas, todos são frágeis, precisam do apoio de uma madrinha — e o encontram. Ao abrigo da amada, Pedro Machado, narrador de À maneira negra, vê na relação sexual a oportunidade de redenção: “A minha fragilidade física tornava mais completo o senso de entrega, de abandono, e percebi nitidamente que vivia” (p. 80).
Os dois escritores também se identificam na consciência de que operam com proximidades que soam absurdas na chamada vida real: Carlinhos faz um de seus personagens dizer “se lhe interessam as coincidências extravagantes”, enquanto Pedro Machado amiúde depara-se com situações que o fazem recordar as artes cênicas, conforme afirma em frases como “Achei tudo irreal. Parecia filme.” (p. 22) ou “uma cena tão implausível que parecia teatral” (p. 45). Narrado em terceira pessoa, Blecaute mantém a consciência do artifício: “um personagem de teatro de revista” (p. 154).
Para além deste artificialismo que busca salvação pela auto-ironia, a linguagem de Rafael Cardoso padece de uma certa impostação em construções como “Uma luz cinzenta e fosca entibecia a rua” (p. 65) e na repetição de um irritante “senhor Wilson”, quando “seu” é um chamamento consagrado, de uso geral e dicionarizado. Tal como seus protagonistas bem-nascidos que buscam fraternidade junto a pessoas das camadas mais populares, a narração ainda não alcança um perfeito à-vontade (“Eu só conseguia sentir vergonha”, p. 97). Podemos debitar estes pequenos tropeços ao fato de ser uma estréia, acreditando que o autor vai efetivamente tomar posse dos seus meios de expressão, posto que é senhor deles na sua vertente acadêmica. Mas desde já temos nas duas frentes um autor sensível ao mundo das cores e das formas, da arte e da geografia urbana.