A China e suas histórias

Épico e grandioso, o best-seller “Na terra do cervo branco” é uma dinâmica enciclopédia sobre o final do século 19 no país de Confúcio
Ilustração: Chen Zhongshi por Fabio Abreu
21/09/2020

A narrativa de Na terra do cervo branco, best-seller do chinês Chen Zhongshi, diz que a primeira mulher de Bai Jiaxuan morreu no parto. A segunda sucumbiu à tuberculose. Um mal desconhecido matou a terceira. A seguinte foi derrubada por uma doença causada pela dieta alimentar. Depois disso, os boatos na aldeia do Cervo Branco não paravam mais. Diziam que o jovem Jiaxuan tinha um pênis tão comprido que poderia dar a volta em sua cintura. E o pior: seu membro teria uma ponta em forma de dardo, que injetava veneno e fazia suas mulheres apodrecerem por dentro. Convencer alguém a se casar com ele tornou-se uma tarefa difícil e dispendiosa, mas como dizia a mãe de Jiaxuan: “Prefiro gastar toda a nossa fortuna (…) a ficar sem descendentes”. É ela também que ordena ao filho que ignore o luto de três anos pela morte do pai.

Afinal uma quinta mulher aceita casar e servir ao seu marido, mas não na cama. Os casamentos eram arranjados pelos pais, muitas vezes com a ajuda de casamenteiros encarregados de consultar a família da noiva. Jiaxuan ignora o pedido da moça e se relaciona com ela assim mesmo, acreditando que aquilo mostraria que os boatos eram infundados. Ela desmaia. Seu medo prevalece e ela acaba enlouquecendo e se afogando. A sexta foi a mais bela de todas, parecia uma atriz. Só aceita ter relações com o marido depois que este faz um pretenso tratamento voltado para o desaparecimento do veneno peniano. São felizes por um breve período, mas logo ela começa a ter alucinações e sonha com os espíritos das outras mulheres atacando-a. O marido convoca um exorcista, homem tão misterioso que não revelava seu nome. Ele vem “na velocidade do vento sobre uma liteira carregada por fantasmas”, executa seus rituais e captura as almas nefastas das cinco esposas falecidas, de onde se desprende um fedor que empesteia a casa. Elas são colocadas em uma jarra tampada com um tecido vermelho, a cor mais importante nos rituais religiosos. Em seguida, as alminhas perturbadoras são fervidas até desaparecerem. Mas a linda mulher não se recupera, tem um aborto e depois morre.

Bai Jiaxuan, a personagem mais importante do romance, conseguirá ter um casamento longo e feliz com sua sétima e definitiva esposa, Xincao. Levará uma vida frutuosa e respeitável como chefe do clã. Nascem três filhos homens e uma filha, garantindo a continuidade da família Bai, uma das duas mais importantes da aldeia. A outra é encabeçada por Lu Zilin, primo de Jiaxuan e a sua antítese. O livro é todo construído em torno destas duas famílias em um período que vai das últimas décadas do século 19, momentos finais da dinastia Qin, até 1949 com a tomada do poder pelo Partido Comunista Chinês, com uma breve menção à “revolução cultural” da década de 1960. A arquitetura da obra, em suas 850 páginas, é notável. A pequena comunidade com cerca de mil habitantes é um microcosmo perfeito para percebermos as transformações da China em um período tumultuado que engloba a Independência, a guerra civil e a chegada ao poder dos comunistas. A obra carece de debates políticos ou ideológicos, o conflito entre os dois partidos é apresentado como uma guerra suja pelo poder. Quem é visto como “lenda viva” é o sábio confucionista Mestre Zhu, desprendido das questões materiais a ponto de afirmar que “dinheiro em excesso atrai desgraça”. Vivia com a esposa de forma austera e simples. Era de uma humildade à toda prova e votava imenso desprezo às disputas políticas, que ironizava com tiradas inteligentes. Dizia que os dois partidos eram dois tipos de macarrão feitos com farinhas ligeiramente diferentes.

Rudeza do campo
O próprio Chen Zhongshi “entrega” na epígrafe: o que lhe interessa é a história do povo, sua vida cotidiana, seus costumes, suas crenças. O livro acaba sendo uma enciclopédia da China profunda, milenar. Mas a narrativa não se derrama em longas descrições. A trama é bem urdida e dinâmica, as histórias são entrelaçadas, inesperadas e divertidas. Há sempre algo importante para acontecer, nós a serem desatados, situações-limite, em uma palavra: suspense. As frases curtas, a simplicidade e a criatividade do autor fazem com que a leitura seja fluente, capturando a atenção do leitor. O lirismo, escasso, volta-se para a natureza e não para a relação entre os homens.

Alguns elementos da cultura camponesa recebem destaque. Toda a vida religiosa da aldeia gira em torno do Templo dos Ancestrais. Lá não se entra sem fazer a devida reverência, repetida três vezes. Os ancestrais são vistos como o pilar moral e religioso da comunidade. A preocupação da mãe de Bai Jiaxuan com a descendência se explica: uma família sem descendentes não poderá reverenciar seus ancestrais. É ali que a aldeia se reúne não somente para celebrar seus rituais, mas também para receber as comunicações mais importantes, para acordar regras de condutas coletivas, tudo diante do silêncio vigilante daqueles que vieram antes. Quando alguém se transforma em ancestral, seu funeral é um evento que pode durar mais de uma semana, dependendo das posses da família. Contratam-se músicos para tocarem durante dias sem cessar. Aliás, o gosto por cantores e por uma forma popular de ópera atravessa todo o livro — mesmo camponeses iletrados admiravam essa forma artística.

A rudeza da vida no campo é retratada de forma crua. A mortalidade infantil era tão alta que as crianças, ao nascer, recebiam apelidos temporários como Potrinho, Cachorrinho ou Coelhinho, ganhando nomes somente à época de entrar na escola, aos sete anos. As que ficavam pelo caminho eram enterradas no curral e misturadas aos excrementos dos animais para forjar um bom adubo para a terra a ser cultivada. É tudo muito direto, até grosseiro: em uma passagem se fala de um cadáver sendo devorado por vermes de vários tamanhos. A vida era difícil, eram muitas as ameaças: seca, banditismo, inundações, pragas de gafanhoto, epidemias e até mesmo “bolas de fogo” caídas do céu que destroem totalmente animais, casas e pessoas. Dizia a lenda que a aldeia já havia sido destruída cem vezes, o que aponta, exagero à parte, para a sua antiguidade.

Um tema tratado de forma aberta e nada delicada é o sexo. Surpreende a frequência de cenas sexuais: “seios generosos”, “nádegas roliças”, “lábios quentes” e quadris rebolando comparecem com frequência. Não se pode dizer que sejam o ponto alto do romance. A única cena em que aparece uma prática homossexual é descrita na forma de uma perversão condenável.

Personagens
O maior valor desta obra está na construção das personagens. Com muito poucos atores na cena central e inúmeros figurantes, o autor dá vida a seres de carne e osso que não somente são críveis e com personalidades bem marcadas, mas se transformam ao longo do livro, evitando o maniqueísmo. Sendo assim, Negrinho, ou Lu Zaoquai, é um menino travesso que não gosta da escola, depois torna-se parte de um bando de salteadores, integra o Exército Nacionalista, vira o principal discípulo de Mestre Zhu e por fim adere à revolução comunista, que irá condená-lo à morte de forma injusta. É um mundo de homens voltados para a conquista não somente da riqueza e de posições de poder, mas sobretudo da honra e da reputação, que valem ouro em uma sociedade face a face. A vingança é altamente apreciada e exercida com requintes de crueldade, às vezes muitos anos depois.

Às mulheres, que muitas vezes sequer são nomeadas, cabe o papel de reprodutoras que garantem a continuação das linhagens, de donas de casa que limpam, cozinham, fiam e tecem. É uma mulher, a mãe de Bai Jiaxuan, que diz: “Mulheres são como flores de papel na janela: quando rasgam, as trocamos por outras”. Embora a tradução fale em “dote”, o que temos é a “compra da noiva”, uma mercadoria essencial negociada junto a seu pai, não sem que antes se consulte a compatibilidade dos mapas astrais. Com seus pés enfaixados, espera-se delas que falem pouco e façam muito. Chamam o sogro de Pai e a sogra de Mãe. Podem ser repudiadas pelos maridos, mas o contrário não ocorre. As exceções a este papel subalterno confirmam a regra: a linda Bai Ling larga a família para lutar na guerrilha comunista e tem um fim trágico. Xiao’e, concubina que trai seu senhor para fugir com Negrinho, vê sua beleza motivar disputas sangrentas e mortais. É assassinada com uma lança de aço. Seu espírito incorpora em um humilde servidor, o que exige mais uma vez o recurso ao exorcista e suas práticas xamânicas. Mesmo assim, continua causando prejuízo e assola a aldeia com uma epidemia que só é acalmada depois que seu cadáver é queimado e suas cinzas colocadas debaixo de um pagode erigido para este fim.

Se o propósito de Chen Zhongshi consistia em fazer um retrato do povo chinês antes da grande virada da segunda metade do século 20, a obra é um triunfo completo. Envolvente como uma novela televisiva, rico em costumes e religião, temperado com violência, sexo e pitadas de realismo mágico, tornou-se um enorme sucesso na China e foi adaptado para a televisão. Para quem desejar conhecer um pouco mais da cultura chinesa tradicional, Na terra do cervo branco é um livro imperdível.

Na terra do cervo branco
Chen Zhongshi
Trad.: Ho Yeh Chia, Márcia Schmaltz e Mauro Pinheiro
Estação Liberdade
864 págs.
Chen Zhongshi
Nasceu em 1942, na província chinesa de Shaanxi, ao Norte do país, onde está localizada a aldeia de sua obra-prima literária, “Na terra do cervo branco” — publicada originalmente em 1993 e editada pela Estação Liberdade em 2019. O romance, que vendeu mais de dois milhões de exemplares na China e teve sua primeira versão modificada pela censura, ganhou uma versão sem cortes em 2012.
Marcos Alvito

Professor alforriado da universidade, dedica-se a oferecer cursos livres de literatura e ao Urucuia, podcast voltado para ajudar a ler Grande sertão: veredas, sua paixão maior.

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