A primeira chave para a leitura da obra de Jon Fosse é que não há chave. Há mistério. Segundo o dicionário, mistério é algo incompreensível, que não se consegue explicar ou desvendar; enigma. Pois é exatamente isso que pretende esse autor norueguês recém-premiado com o Nobel. “Tento escrever sobre o mistério da vida. Não estou procurando respostas de uma forma simples, quero celebrar o enigma”, disse recentemente em uma entrevista. E, agora, por onde começar?
Em um ensaio convencional sobre um grande autor é conveniente separar as informações sobre sua vida, sua obra, suas ideias, para trazer ao leitor, de forma organizada, tudo que é relevante em sua escrita. Mas com exceção do ano de nascimento de Jon Fosse, 1959, tudo que vem depois está ligado em uma teia virtuosa, desafiando compartimentação. É necessário aceitar ao mesmo tempo o papel da geografia, do idioma, da doença na infância, dos vários casamentos desfeitos, do alcoolismo, da religiosidade.
A começar pela geografia: nasceu em Haugesund, cidade de 36 mil habitantes na costa ocidental da Noruega. Tão pequena que 128 Haugesunds caberiam na Zona Leste de São Paulo. Uma cidade isolada de centros urbanos, onde os moradores cuidam mais de sua vida do que da dos outros, para poder preservar um mínimo de independência. É natural que a linguagem demonstre efeitos do ambiente. Jon Fosse comenta:
Algo que teve influência direta sobre minha escrita é a maneira de falar nessas áreas rurais da Noruega, onde as pessoas são famosas por não falar muito. São silenciosas, como os personagens nas minhas peças teatrais. Também são famosas por quase nunca expressar seus sentimentos em voz alta. Mas a verdade é que têm sentimentos muito fortes, que de alguma forma são expressados em outras palavras. Você poderia estar falando de algo corriqueiro, mas no fundo você está falando de outro assunto, cheio de empatia ou repulsa, de proximidade ou distanciamento.
Some-se a esse desafio a inabilidade de muitos de seus protagonistas em expressar-se livremente, seja por problemas de saúde mental, seja por não terem com quem falar. Segundo o autor, o mais importante é inenarrável em palavras, mas pode ser dito nos silêncios, nas pausas, nas interrupções. Aí temos uma primeira sinalização de interpretação: seus personagens refletem a aparente falta de comunicabilidade, e a menos que o leitor esteja interessado em ler esses sinais, não será capaz de apreciar a escrita. No entanto, a leitura atenta irá mostrar que os personagens, sim, entendem uns aos outros completamente, inclusive sem a necessidade de terminar as frases.
Além da geografia, ao menos dois fatos em sua vida ajudam a entender do que tratam seus livros. Aos sete anos sofreu um acidente grave e precisou ficar acamado por um bom tempo, lutando para viver. Segundo o autor, essa experiência foi formadora na sua escrita. Se foi a proximidade à morte, a reclusão, a solidão, ou todos esses fatores, não se sabe, mas a busca pela transcendência, presente em cada linha de sua obra, pode ter começado ali. Outro fato foi seu interesse pela música desde muito jovem. Chegou a tocar violino e a compor letras para músicas durante a adolescência, o que pode ter sido um treino para a qualidade musical, quase litúrgica de sua escrita. Ao que tudo indica, teve uma juventude nada diferente da maioria dos outros jovens da sua época, com um breve namoro com ideias comunistas e anarquistas, que mais tarde rejeitou por completo. Graduou-se na Universidade de Bergen em Literatura Comparada, e logo começou a escrever.
Em 1983, lançou seu primeiro romance, já evidenciando traços que mais tarde seriam reconhecidos como seu estilo: afastado da ficção social realista, tão em voga na Noruega (e no Brasil) na época, e com ênfase na expressão linguística, e não na trama. Continuou sua carreira acadêmica e produção de romances até que em 1989 publicou a primeira coletânea de ensaios. Poucos anos depois estreou na escrita de peças teatrais, publicadas e encenadas imediatamente. Desde então são mais de 70 livros, entre romances, contos, poesia, ensaios, peças e literatura infantojuvenil. Está traduzido em mais de 50 idiomas.
Recebeu importantes prêmios internacionais e o maior reconhecimento possível na Noruega: foi agraciado com o Grotten, o convite vitalício para residir na propriedade do Palácio Real no centro de Oslo. É uma honraria concedida pelo rei da Noruega pela contribuição à arte e à cultura norueguesas (dúvida: qual seria a probabilidade de um político de alto escalão brasileiro abrir mão de uma de suas residências estatais e destiná-la aos maiores autores do país?).
O Nobel
Fosse continuou a somar prêmios até que em 2022, após a tradução para o inglês de Septology, uma trilogia de romances, foi finalista do International Booker Prize. Não venceu — o júri preferiu o politicamente corretíssimo Tomb of sand, da indiana Geetanjali Shree, ainda sem tradução ao português. Mas como não há nada como um dia após o outro, em 2023 Jon Fosse recebeu o Prêmio Nobel de Literatura “por suas peças teatrais e prosa inovadoras, que deram voz ao indizível”. Com isso, foi o quarto autor norueguês a receber o Nobel, mas o primeiro a recebê-lo escrevendo em nynorsk, a menos usada das duas línguas oficiais da Noruega. Para boa parte dos literatos do Brasil, e por que não dizer, das Américas, o nome foi uma grande surpresa, porque não o conheciam.
Fora Ibsen, é o dramaturgo mais encenado na Noruega; cerca de 100 peças suas vão aos palcos a cada ano, por toda a Europa. Fosse defende, citando Houellebecq, que “só a literatura pode nos colocar em contato com outro espírito humano com todas as suas fraquezas e grandiosidade, e essa presença de outra pessoa é a própria essência da literatura”. Então por que ele é tão pouco conhecido deste lado do Atlântico?
No Brasil a resposta está, em parte, na ausência de traduções até pouco tempo. Melancolia I e Melancolia II, lançados em 1995 e 1996, foram traduzidos e publicados pela Tordesilhas em volume único — sábia decisão — em 2015, mas pouco se ouviu dele. Há poucas semanas, imediatamente após o anúncio do Nobel, a Fósforo lançou Brancura. E a Companhia das Letras tinha recém-lançado É a Ales. E é só. Não se encontram aqui suas peças, nem ensaios ou outros gêneros. Basta ler as múltiplas resenhas publicadas às pressas pós-Nobel para perceber a falta de informações concretas, todas pairando nas generalidades. Fosse ainda não foi lido como merece.
As traduções parecem muito competentes, mas o projeto gráfico dos lançamentos não vai ajudar a levar Fosse aos leitores. Brancura tem na capa uma imagem abstrata, esteticamente agradável mas enigmática, e É a Ales traz parte de um quadro de Munch, pintor norueguês contemporâneo de Lars Hertervig, protagonista de Melancolia I, porém a parte do quadro que se vê também não é figurativa, o que não dá nenhuma indicação de que trata o livro. Opções certeiros para manter o autor restrito a poucos. Já a imagem da capa de Melancolia I e II é muito mais atraente, baseada em De Borgoya, famoso quadro de Lars Hertervig, com elementos muitas vezes mencionados no texto.
Beckett e Ibsen
Segundo o jornal Le Monde, “Fosse é o Beckett do século 21”. Segundo o New York Times, é “Ibsen despido à essência da emoção, mas muito mais, porque possui uma simplicidade poética”. No New York Review of Books, ele é apresentado como “uma força primitiva, um semblante, uma atmosfera. O som de palavras movendo-se na página”. Ambos Ibsen e Beckett são campeões de vendas das prateleiras de literatura, mas também são autores permanentes, lidos, relidos e reinterpretados. O que tem Fosse que o coloca nesse nível?
Como suas influências prediletas, Fosse cita Samuel Beckett, claro, mas também Thomas Bernhard, Franz Kafka, William Faulkner, Virginia Woolf, a Bíblia — até aí, nenhuma descoberta — e Tarjei Vesaas, autor norueguês do século 20, virtualmente desconhecido no Brasil. Autor de clássicos noruegueses muito lidos até hoje, é considerado o pivô da criação de um novo estilo nas letras norueguesas pós-Guerra. Com raízes na psicogeografia, suas histórias se passam em vilarejos, bosques escondidos, pequenas fazendas, que salientam as questões de identidade e a psicologia da percepção. Seus temas costumam abordar as fronteiras fluidas de amizade, amor filial e romântico, em um panorama de responsabilidade individual e ética de independência tipicamente luteranos, inseparável da natureza que os rodeia. Fosse insere-se perfeitamente nessa tradição:
Crescer em uma pequena comunidade norueguesa no fiorde Hardanger influenciou muito minha escrita. Esse simples aspecto, essa vista do fiorde, é crucial à minha escrita. De alguma forma, preciso ver a água para poder escrever.
Tanto Beckett como Fosse escaparam dos cenários tradicionais da literatura para poder evitar as convenções narrativas. Beckett, contemporâneo de Vesaas, o fez sem ultrapassar a fronteira do concreto. Já Fosse seguiu Vesaas até os limites do mundo conhecido, até as vilas sombrias e baías estreitas da Noruega ocidental, áreas de fronteira onde os limites parecem desaparecer. Na linguagem de Fosse há uma necessidade de revelar a mágica perturbadora do que é invisível, mas presente.
Ao arrebatar o mundo editorial com sua escrita magistral, Karl Ove Knausgård, criador de uma nova escola de literatura, “trouxe” Jon Fosse aos milhões de leitores de seu romance de 3.600 páginas, a série Minha luta, composta por seis romances. Em uma entrevista há alguns anos, afirmou que Fosse era o autor que mais o influenciou. Salientou que livros escritos com a linguagem da publicidade, dos livros didáticos, dos jornais e da mídia, em suma, a linguagem das verdades momentâneas, são livros imbuídos do espírito do seu tempo, e quando o tempo passa, essa linguagem fica reduzida a uma foto de época. A prosa de Fosse, no entanto, nos desprega de nós mesmos e nos arrebata na direção do único, do excepcional. Enquanto lemos, somos arrastados pelas palavras página abaixo e nos submetemos a um eu diferente, novo e aberto. Os romances de Jon Fosse são lacônicos. Mesmo narrados em primeira pessoa, há um ângulo em relação à realidade. As paisagens não têm nome, os personagens raramente têm, como se habitassem uma atmosfera de sonhos febris.
Vilarejos remotos
As comunidades representadas em seus romances, contos e peças teatrais são minúsculas, frequentemente de apenas um domicílio. Os personagens não têm pretensões mundanas, suas dificuldades são de natureza puramente existencial. Muitas de suas histórias se passam em Bjorgvin, que é um nome arcaico para a moderna cidade de Bergen. Usando o termo antigo, ele evoca os vilarejos remotos, escuros, e não a atual Bergen. Bjorgvin é, por vezes, o mais parecido com a civilização que seus personagens podem encontrar. Nesse vazio de objetos, Fosse encontra o material elementar do qual o ser humano é feito, como a escuridão do fiorde, o céu de cores intensas mas insondável, a infinitude do mar. Tudo isso composto em nynorsk, linguagem simples e difícil ao mesmo tempo, de palavras curtas que formam frases curtas, ou que podem ser encadeadas em um romance de 700 páginas, como em Septology, sua trilogia premiada, que é construído de uma frase só, do começo ao fim.
Das duas línguas oficiais na Noruega, nynorsk é a da minoria, impopular enquanto linguagem escrita. Tem pouca influência dinamarquesa, a maioria das palavras é oriunda de dialetos noruegueses. A outra, bokmal (literalmente, “livresca”), tem muitas palavras emprestadas de outros idiomas, e é usada na publicidade, no whatsapp, nas placas de rua. Vesaas usava nynorsk, colocando-se na periferia literária; desde que ele faleceu, em 1970, Fosse é o autor mais proeminente a usá-la. Segundo os críticos noruegueses, a linguagem de Fosse emprega palavras de dialetos, de grande poder evocativo, que mesmo quando não conhecidas, transmitem a sensação de familiaridade. Isso torna a leitura um ato intuitivo, aberto a emoções mais do que a certezas. Infelizmente a maior parte disso é perdida em qualquer tradução.
Mesmo com poucos de seus romances já traduzidos, é possível sentir a força de sua linguagem. Melancolia I, publicado em 1995, é um livro de alta intensidade, dividido em três partes, cada uma relatando em minúcias um dia na vida do protagonista, que são três, separados no tempo, por anos ou séculos. A primeira parte é a memória ficcional de um dia na vida de Lars Hertervig, artista plástico norueguês. Nascido em família extremamente pobre e conservadora, recebeu uma bolsa para estudar arte em Düsseldorf, onde vivia em um quarto alugado. Pensa estar apaixonado pela sobrinha do senhorio, e no dia em que seus quadros seriam avaliados por seu mestre, tem um surto psicótico que o acaba levando a uma internação psiquiátrica.
A segunda parte passa-se no hospital psiquiátrico Gaustad Asylum, três anos mais tarde, no Natal. Hertervig continua igualmente obsessivo, e quanto mais o proíbem de masturbar-se, mais ele sente necessidade, e culpa, entrando em um ciclo do qual não consegue se libertar. Pior, não lhe permitem pintar: “Preciso pintar; se não posso pintar, não existe nada”.
A terceira parte ocorre em 1991, um dia na vida de um autor, Vidme, primo distante de Hertervig. Muitos anos antes, Vidme entrou casualmente em uma galeria de arte e deparou-se com De Borgoya, quadro luminoso de Hertervig, muito valorizado no século 20 — apesar de o artista ter morrido na mais absoluta miséria. Ao ver o quadro, Vidme decide que vai escrever sobre Hertervig, mas também entra em surto, quer mudar sua vida mas não consegue dar o passo decisivo, sente-se culpado e como seu parente, é incapaz de quebrar o ciclo vicioso.
Hoje ele esteve pensando que podia começar um novo romance, mas não o fez efetivamente, hoje Vidme ia começar um novo romance, que deve ter a ver com o quadro do pintor Lars Hertervig, assim decidiu … e então aí está Vidme, olhando para um quadro do pintor Lars Hertervig, chamado De Borgoya, e o escritor Vidme ficou parado diante desse quadro em algum momento no final dos anos 1980, o escritor Vidme esteve parado diante de um quadro do pintor Lars Hertervig…
Melancolia II é a continuação da obsessão Fosse-Hertervig, dessa vez em 1902, pouco depois da morte do artista, um dia na vida de Oline, irmã (fictícia) de Lars. Enquanto Oline cuida de afazeres diários, o leitor descobre que ela tem problemas de saúde, uma incipiente demência senil, incontinência e profunda solidão. Vai se relembrando da infância com a casa cheia, e o irmão que desde cedo não se encaixava, especialmente com um pai que também dá mostras de doença mental. Ela se lembra de Lars, adulto, depois de voltar do hospital, sem dinheiro. Uma cena marcante que lhe volta é dele cortando lenha para uma vizinha, ainda obsessivo, praguejando contra outros pintores e incapaz de fazer da arte seu ganha pão.
Oline vive em uma casinha no topo da montanha. Para comprar peixe dos pescadores, precisa descer por um caminho íngreme, ainda mais difícil de subir. Em um fluxo de consciência, repete ciclicamente cenas do passado, suas dores e deficiências presentes, a vontade de visitar o irmão moribundo, o esquecimento de fazê-lo. A repetição é quase uma cantilena que lentamente diminui o ritmo até parar silenciosamente. As últimas dez ou quinze páginas da história de Oline, por si só, já valeriam o Nobel.
Linguagem e tempo
O minimalismo, a repetição, o monólogo interior e o estilo musical que evoca memórias estão presentes também em É a Ales. Lançado na Noruega em 2004, narra um sonho (ou será realidade?) em que a linguagem e o tempo circundam uma casa velha à beira de um fiorde. Signe, a protagonista, tenta repetidamente entender o significado da morte de seu marido, Asle, 23 anos antes, quando em um dia de clima particularmente agourento ele saiu com seu barquinho pelas águas revoltas. Somente o barco retornou. É uma premissa pretensamente simples narrada ora por Signe, ora por Asle, em 108 páginas.
Vejo Signe deitada no banco da sala olhando para tudo que é familiar, a velha mesa, a estufa, a caixa de lenha, o velho painel de madeira nas paredes, a grande janela com vista para o fiorde, ela olha para essas coisas sem ver, e tudo está como sempre esteve, nada mudou, mas assim mesmo tudo mudou, ela pensa, porque depois que ele desapareceu e nunca mais voltou nada mais foi o mesmo, e ela simplesmente está aqui…
A frase se estende ininterrupta por cinco páginas. Signe vive sozinha, em completo isolamento em um local remoto. A palavra “eu” não reaparece e o leitor nunca fica sabendo quem é essa pessoa que “vê” Signe. Lá pela página 30 Asle, que está morto, passa a ser o narrador. Vai relembrando cenas com sua tataravó Aliss (a quem ele nunca conheceu), e lembra-se que recebeu seu nome em homenagem a outro Asle, morto duas gerações antes, afogado aos sete anos de idade quando brincava com um barquinho no fiorde. Enquanto repassa essas memórias várias vezes, tenta decidir se deve ou não sair para remar nesse clima perigoso. A um certo momento a narrativa é passada de volta a Signe, que continua a descrever com familiaridade a cena com parentes de Asle, que ela tampouco conheceu. Há três hipóteses para o nome do narrador que abre o romance: pode ser o próprio autor, pode ser Asle (antes de começar a narrar sua parte), ou até sua tataravó Aliss. Não há fronteira espacial ou temporal, entre memória e visões. Não é necessário entender, apenas sentir o que cada personagem sente. Já que ambos os personagens utilizam a linguagem da memória, o autor pode acelerar o ritmo com grande economia. Esse é mais um traço marcante do estilo de Fosse.
O romance mais fácil de ler, e mais complexo para entender, é Brancura. Em 60 páginas, um homem dirige uma noite para dentro de uma floresta, até o final de um caminho silencioso. Para o carro, sai e continua a caminhar floresta adentro. Na escuridão, encontra uma presença luminosa, que se manifesta como seus pais (falecidos), como um homem de terno, e como uma voz sussurrante. Em vez de medo, essas aparições lhe trazem paz. A narração, também em primeira pessoa, tem um tom sereno, comedido, como se o encontro fosse inevitável. Há muitas possibilidades de interpretação, nenhuma delas realista. Mesmo para um leitor agnóstico, a mais plausível envolve a transcendência.
Na ficção mística de Jon Fosse a trama é um apêndice da consciência. Os eventos não acontecem, eles se repetem em círculos concêntricos cada vez maiores. Os protagonistas funcionam como torres de repetição espalhados por esse tabuleiro redondo. A vida rotineira é regrada — ou desregrada — por pensamentos e frases aos quais o protagonista retorna compulsivamente, ajustando, escavando, reconstruindo em intenções raramente consumadas. No caso de protagonistas artistas sob tensão, e há vários em sua obra, os estados de consciência assumem dimensões dramáticas: paranoia, alucinações, mania. É assim que Fosse investiga os limites da vida e da arte, e as dificuldades na vida do artista.
Ele não tem medo da espiritualidade. Para Fosse, o termo não tem qualquer conotação glamorosa da superficialidade contemporânea. Em sua prosa lenta, druídica, quase uma eulogia, Deus é uma força estética pungente, avassaladora. Mesmo ao se aproximar da morte, a linguagem nunca é de desilusão, a escuridão sempre é luminosa. O autor, seu julgamento, sua face não são mostrados ao leitor, mas o que sim se vê é completamente aberto. Em vez de proselitismo, há mistério envolto em grande beleza. Em É a Ales, a negrura do fiorde parece ser iluminada por uma luz de suas profundezas. Signe pergunta, de seu marido, “Por que ele sempre quer remar lá para o fiorde, o ano todo?”. Fosse gostaria de perceber nosso presente da mesma maneira que Signe percebe que seu marido está em casa: onde gerações dos ancestrais de Asle parecem convergir a um lugar só, o tempo está em todo lugar conosco, sedimentado em nossos pensamentos, em nossa fala, em nossas paisagens. A convicção é que a transcendência não é apenas possível, ela é imanente a todos nós.
Em oposição a essa religiosidade está o poder aniquilador do alcoolismo. The other name, ainda sem tradução, aborda alcoolismo, dentro da rica tradição literária escandinava sobre o tema, incluindo obras de autores como Tom Kristensen e do próprio Karl Ove Knausgård. No entanto, alcoolismo não é tema de pregação moralista, é apenas — e não é pouco — mais uma dimensão do anseio cósmico, como uma fome existencial. Fosse conhece a escuridão antes da luz, passou por grandes traumas: dois divórcios, alcoolismo, busca espiritual. Atualmente está casado pela terceira vez, sóbrio há muitos anos, convertido ao catolicismo.
Segundo ele, “Deus está no grande silêncio, e é no silêncio que se pode ouvir Deus”. Todos os seus protagonistas vivem em locais silenciosos, ou estão em trajetória nessa direção. Estar em trajetória pode ser uma busca na direção certa, ou pode indicar desorientação. Esperar pode ser uma trajetória, como o paradoxo de Beckett: Não posso continuar. Vou continuar. Muitos de seus protagonistas esperam por um sinal, pelo retorno de alguém, pela chegada do resgate. Na tentativa de estabelecer uma trajetória, alguns de seus protagonistas entram no ciclo da repetição, como a compulsão à repetição, de Freud. Para Fosse, trata-se de uma técnica literária para registrar uma memória traumática.
Para o leitor, o efeito da repetição é inescapável. Exige uma prática infrequente no mundo de cinco telas abertas ao mesmo tempo: exige atenção. Fosse usa nomes próprios e nomes de locais repetidas vezes até em livros diferentes. Homens com nome de Asle e Asleik, e mulheres com nome de Ales surgem várias vezes, em alguns casos com seu duplo ou triplo. Não são a mesma pessoa, mas o efeito é de contornos borrados entre as pessoas e entre os locais. É coerente com o objetivo de sobrepor camadas temporais e espaciais em um único tabuleiro.
O ritmo lento, as repetições, as convoluções cerebrais de personagens altamente perturbados não perfazem literatura de entretenimento. É uma leitura absorvente, onde o suspense vem do mistério insolúvel. Escrita assim estilizada não é para todos, mas aqueles que se renderem ao seu encanto serão amplamente recompensados. Há um efeito cumulativo a cada página de Fosse, a cada romance de Fosse, de modo que de repente, após aquela soma de pequenos prazeres, explode como uma onda borbulhante, inesperada, mas bem-vinda.