Publicados entre 2011 e 2014, os três livros de que trata esta resenha podem ser percebidos como marcos celebratórios de uma carreira literária que já se estende por meio século. Foi com o livro de contos Alameda, publicado em 1963, que Astrid Cabral surgiu como escritora; já era então uma mulher casada, que se mudara para Brasília com o marido, o poeta Afonso Félix de Sousa, para integrar a primeira turma de docentes da recém-fundada Universidade de Brasília. A própria escritora ressaltaria, posteriormente, que a estreia fora condicionada pelas demandas da vida familiar e pelos afazeres profissionais, que não lhe permitiam dedicar o tempo necessário à literatura; não obstante, os “anos de silêncio e aridez” dariam lugar, a partir de 1979, a um período produtivo do qual nasceria uma obra poética inscrita entre as mais representativas da literatura contemporânea brasileira, composta por títulos como Visgo da terra (1986), Rasos d’água (2003) e Jaula (2006), entre outros. A antologia bilíngue Coeur sans frein/Coração à solta (Les Arêtes, 2012), com versões de poemas preparados pela própria Astrid Cabral, junto dos livros de inéditos Palavra na berlinda (Ibis Libris, 2011) e Infância em franjas (Editora KD, 2014, com ilustrações de Mariana Félix) vem, por conseguinte, somar-se à obra de uma autora que pacientemente aguardou o momento mais propício para a eclosão do lirismo; e, talvez não por acaso, o tempo e a própria poesia estão entre os principais temas desses mais recentes volumes.
Recolhendo poemas de diversos momentos da trajetória poética de Astrid Cabral, Coeur sans frein/Coração à solta se inscreve entre as diversas antologias já publicadas de sua obra, desde De déu em déu (Sette Letras/BN, 1998) até Antologia pessoal (Thesaurus, 2008) e o volume a ela dedicado na coleção 50 poemas escolhidos pelo autor (Galo Branco, 2008). Para além de constituir uma rica apresentação de alguns dos motivos centrais de sua obra, concedendo ênfase a poemas em torno do temário amoroso e erótico — e recolhendo peças da altura de Certos amores (“[…] / Certos amores não crescem./ Hibernam pura promessa/ de fogo a arder. Aguardam/ só que o fósforo do acaso/ risque a fagulha da chama.”), Deserto doméstico (“Moravam na mesma casa/ mas em variados mundos./ Viviam ao mesmo tempo/ mas em horários diversos./ Falavam a mesma língua/ só que em registros distintos./ […]) e Amor no píer (“[…] // Meu amor ficou no meio/ refém do medo de risco./ Queria apenas passeio/ a bordo escuna sem lastro./ Nunca a viagem de fato.”) —, Coeur sans frein/Coração à solta poderá constituir um valioso objeto de análise a quem se interessa por estudos de tradução, precisamente por apresentar poemas vertidos pela própria escritora, assim oferecendo um vislumbre de soluções autorais para questões particulares do fazer lírico.
Já Palavra na berlinda, como anuncia o título, traz poemas de pendor reflexivo que têm como objeto privilegiado a linguagem e a criação literária. Se nem o tom meditativo, nem o discurso metapoético são propriamente elementos novos no universo lírico de Astrid Cabral, o fato de a obra inscrever-se neste momento em que a trajetória da autora completa dez lustros, como anteriormente mencionado, concede-lhe decerto um valor particular; por outro lado, e como efeito da densidade dessa reflexão, os poemas reunidos no volume frequentemente avançam para um questionamento em torno dos liames entre o silêncio, a palavra e a poesia. Consciente de seu ofício, Astrid enfrenta algumas das mais persistentes questões em torno da natureza específica da criação poética, desde o inusitado da inspiração (“A poesia me pede a mão/ sussurrando ao pé do ouvido:/ pega caneta e folha. Tira/ a roupa que te atrapalha./ Joga fora a máscara diária./ […]”, lemos nos versos iniciais de A poesia me pede a mão) até a lida com a matéria textual (“O poema, esse fruto/ que não dá em árvore,/ carece de mão e mente/ para que possa nascer. / […] / Demorado ou breve/ será o trabalho/ de apartá-lo das trevas/ e em berço de papel deitá-lo / […]”, lemos em Poema). Aprofundando ainda mais a reflexão, na segunda parte da obra, Avesso, Astrid se dedica a pensar poeticamente o silêncio, cuja relação com a poesia é inelutável — visto que nele “latentes,/ jazem todas as palavras” (Silêncio).
Finalmente, Infância em franjas é um retorno a tempos passados; uma visita ao “armário de lembranças-fantasmas”, como lemos no pequeno texto preambular à obra. Muito já foi dito sobre o valor da infância para quem se dedica à criação literária; a esse propósito, pode ser interessante relembrar as palavras de Manuel Bandeira, em Itinerário de Pasárgada, quando compara quatro anos de meninice aos da vida de adulto, revelando-se “espantado do vazio desses últimos em cotejo com a densidade daquela quadra distante”. A pletora de episódios liricamente resgatados por Astrid Cabral, que ensejam poemas nos quais entrevemos incontáveis motivos fundamentais daquela produção literária que viria à luz quando ela, já mulher adulta, publicasse os seus primeiros livros, permite-nos supor que sua experiência pessoal se aproxime daquela referida pelo autor de Libertinagem. Em A mágica das palavras, Astrid Cabral registra o momento em que, menina, depara-se com a natureza da linguagem poética — “A mulher chegou da rua/ falando: de uma cajadada/ matei dois coelhos./ Pensei: que mentirosa!/ Quer me fazer de boba!/ Onde já se viu coelho/ andando pela cidade?/ E onde arranjou cajado?// […] // Foi quando me dei conta/ de que palavras eram mágicas./ As coisas podiam ser ditas/ de maneira enviesada./ De brinca o mundo podia/ ser mostrado à vera.”; em Mágoas, a percepção infantil do desajuste das coisas — “O que machucava/ não era palmada/ nem mesmo surra./ A carne da bunda/ não tinha memória./ O que machucava/ sim, era a injustiça/ ou a desmedida/ entre culpa e castigo/ seguida do perdão/ sonegado ou adiado/ por conta do orgulho/ da autoridade ofendida./ […]”. Se a poesia é o manejo da linguagem para dar voz às inquietações humanas, talvez este poema registre o nascimento da escritora que, agora, celebra os cinquenta anos de uma singular trajetória literária.
Infância em franjas
Astrid Cabral
Editora KD
64 págs.