De longe, A poeira dos outros, coletânea de reportagens assinadas por Ivan Marsiglia, é mais uma reunião de textos de um jornalista da grande imprensa. Ainda que verdadeira, tal constatação esconde um elemento-chave para o aproveitamento completo do livro: Ivan Marsiglia é um repórter capaz de elaborar os melhores relatos de histórias que não seriam notadas por boa parte dos jornalistas de sua geração. Explica-se: de um modo geral, não é só por má vontade que os jornalistas escrevem textos atentos apenas ao factual ou sem imaginação. Isso ocorre porque, preocupados com os prazos e sobrecarregados de trabalho, não há tempo suficiente para apresentar textos à altura de serem reunidos em um livro, isto é, reportagens que não se perderam no fim do dia, para retomar uma imagem comum relacionada ao jornalismo.
Nesse sentido, eis outra constatação definitiva: a maioria das reportagens assinadas por Ivan Marsiglia resiste ao tempo porque o autor soube apresentar narrativas para além do gancho do cotidiano, o que é muito se se imaginar que os textos foram publicados em veículos da grande imprensa, que, por características industriais, precisam obedecer ao conjunto de temas que se apresenta naquele mês. Assim, as reportagens de Marsiglia são a mais perfeita tradução do que se poderia chamar de “literatura sob pressão”. Nada disso permite, no entanto, que o rigor da apuração fique de lado. É o que se lê, por exemplo, na história que abre a seleta de textos, A memória das paredes, sobre a casa que serviu de logradouro da tortura durante a Ditadura Militar. A notícia era: a casa se tornaria um espaço de memória daquele período de exceção. Ocorre que a história apresentada por Marsiglia conseguiu não somente ir além, mas também agregou outros testemunhos e relatos para aquela situação, demonstrando o quanto aquela uma família que ali vivera não fazia idéia de que aquela casa já havia servido de masmorra para os militares.
Instinto
Na mesma linhagem desse tipo de narrativa, a última reportagem da coletânea, A longa viagem da X2, traz a história de Bergson Gurjão Farias, militante do Partido Comunista do Brasil no final da década de 1960 e que se tornou o primeiro desaparecido da Guerrilha do Araguaia, em 1972. Pois o texto de Marsiglia apresenta essencialmente como a mãe, Luíza Gurjão Farias, aos 94 anos finalmente pôde dar por encerrada a espera de reencontrar seu filho. Marsiglia novamente concebe um relato sensível e ao mesmo tempo respeitoso ao apresentar as peculiaridades daquela personagem enquanto costura o impacto político daquela descoberta. Do ponto de vista da forma, a reportagem traz duas histórias paralelas: de um lado, a de Bergson e sua família; do outro, de como o Estado brasileiro tem lidado com a discussão envolvendo os desaparecidos políticos no país. Para tanto, o autor lança mão do aparato elementar de um repórter: busca e traz depoimentos que ajudam a fazer o leitor compreender a parte e o todo. Um dado interessante: à medida que se lê a história, tem-se a sensação de que o jornalista revela de forma inteligível o que apurou e descobriu. O texto, nesse sentido, é a manifestação dessa conversa que ele apresenta para com o público.
Em outros textos, Marsiglia demonstra o mesmo talento e instinto de repórter, ou seja, é capaz de relatar os detalhes de um plantão médico na periferia de São Paulo, como é o caso de Viagem ao centro da guerra, e o leitor tem a genuína sensação, quando lê o texto, de estar ali, ao lado de repórter, vendo as cenas do mesmo modo como elas são contadas — um dos efeitos do texto de Marsiglia, a propósito, é de que se tem a impressão de que as coisas sucederam da exata maneira como estão contadas no papel, o que nem de longe é verdade. O repórter produz uma reconstituição dos fatos não necessariamente naquela ordem ou seqüência. Já em Dor sem remédio, o autor narra como vive a família do jovem chinês Edson Tsung Chi Hsueh, o calouro de medicina encontrado morto numa piscina em fevereiro de 1999 após um “trote” aplicado pelos estudantes veteranos da USP. História sem começo ou final feliz, uma vez que, dez anos depois (data de quando a reportagem de Marsiglia foi escrita), não apenas o caso ainda estava sem solução — isto é, a morte do rapaz de 22 anos permanecia um mistério — como também seu pai havia morrido sem receber qualquer tipo de resposta das autoridades sobre o que aconteceu com seu filho. O interessante, aqui, é que o texto do jornalista não busca identificar culpados ou bancar a pose indignada “assim-o-Brasil-não-vai-pra-frente”, como se acostumou recentemente perceber. Antes, o autor apresenta com um relato bastante lúcido o quanto aquela situação era dramática para aquela família.
Nota-se, portanto, uma predileção do autor por histórias desafiadoras e complexas. Na contramão de certa postura do jornalismo, Ivan Marsiglia não esconde em seu texto o fascínio por determinados personagens, conforme se lê em Mãe branca de Iemanjá. Na reportagem, Marsiglia apresenta a história de uma francesa, Gisèle Cossard Binon, que se tornou mãe de santo e dona de um terreiro na Baixada Fluminense. Ao longo do texto, é evidente que o autor se deixa levar pela personalidade da perfilada, como se lê no trecho a seguir:
A família toda se engajou na Resistência e Gisèle, vinte e poucos anos, cruzava as ruas de Paris de bicicleta, com mapas sobre as posições alemãs escondidos em um fundo falso na sola do tamanco. Foi nessa mesma época que conheceu o jovem professor de geografia com o qual se casaria em 1945. Nos dois anos seguintes, Jean Binon deu-lhe dois filhos, Bertrand e Claude, e, em seguida, recrutado pelo Ministério das Relações Exteriores, realizou-lhe o sonho de morar na África — pesadelo de nove em cada dez mulheres de diplomatas brasileiros.
Travestido de estilo, nota-se ali um juízo de valor: o sonho de morar na África da protagonista da narrativa é o pesadelo das demais, o que faz de Gisèle certamente alguém com bons sentimentos pela sensibilidade demonstrada pelo seu “sonho” — e aqui é outro ponto interessante: a escolha das palavras em Ivan Marsiglia não é aleatória, obedecendo, sim, a uma racionalização do autor.
Excesso de estilo
Nesse sentido, chama ainda mais atenção o texto Com a palavra, a faixa, quando Ivan Marsiglia traça um perfil de gabinete da faixa presidencial, dando voz, literariamente, a um dos símbolos da transição política. E o resultado não poderia ser mais anódino e constrangedor, conforme se observa a seguir:
Ame-a ou deixe-a. Sem ser pretensiosa: todo o mundo me deseja. Só que não fui feita para ser de ninguém. Nesse ponto, do alto de meu centenário, até que sou moderninha. Gosto de variar, mudar de dono, exercitar o desapego. Romances não me faltaram. Getúlio praticamente me tomou à força duas vezes, em 1930 e em 1937. Depois voltou, se desculpou e acabou me conquistando. Senti sua falta quando ele se foi daquele jeito trágico. Já o Jânio fazia o gênero difícil: te quero, não te quero mais… Ele me deu o fora no dia 25 de agosto de 1961, mas não saiu de perto de mim por mais de 24 horas. Esperando, sei lá, que eu me rebaixasse, implorasse. Lo siento, querido.
No afã de emprestar estilo a uma história apenas comum, Ivan Marsiglia comete um texto constrangedor do ponto de vista jornalístico. Que fique claro: as informações ali estão corretas; existe começo, meio e fim no texto; mas o autor se deixa levar pela subliteratura e concebe uma peça que faria melhor figura se tivesse localizada nas mídias sociais, sendo distribuída de forma viral como de um escritor célebre. Já no texto João Gilberto está resfriado, apesar da paródia (e homenagem) declarada ao perfil assinado por Gay Talese sobre Frank Sinatra, não consegue dizer nada de muito significativo além daquilo que os leitores mais ou menos acostumados com a história de um dos principais nomes da bossa-nova já não soubessem. O mesmo pode se dizer de outro texto, Ele fez a cabeça da Dilma, quando o repórter empresta a voz a uma cliente afetada que vai falar de Celso Kamura, cabeleireiro da então candidata à presidência da República, Dilma Rousseff. Ali, sobram lugares-comuns que tiram a atenção do personagem principal, e o estilo derramado prejudica a informação.
São em textos sóbrios e perspicazes como Buraco quente, em que esboça um retrato ilustrativo sobre o cotidiano dos operadores do (hoje extinto) pregão da Bolsa de Mercadorias & Futuros, ou, apesar do título infame, Chico aos pedaços que o jornalista consegue fazer de suas reportagens textos mais perenes e indispensáveis para qualquer leitor que, mais do que informação, esteja atrás de narrativas bem elaboradas. Em A poeira dos outros, Ivan Marsiglia mostra que é, sim, possível fazer com que o relato jornalístico sobreviva às mudanças dos últimos tempos. Afinal, os leitores sempre apreciam boas histórias.