A carta de Copenhague

"Dinamarca", de Igor Dias, é composto por cinquenta contos, cuja marca principal é a diversidade
Igor Dias, autor de “Dinamarca”
21/04/2016

Escrever é um ato simbólico. Começa-se um texto para se expressar algum sentimento, para se contar uma história, para extravasar algo que não se sabe bem o que é. Por que ser escritor? Pergunta, na verdade, de difícil resposta. Há pessoas que estão satisfeitas consigo mesmas, vivem o dia a dia da sobrevivência, conseguem ganhar o pão, o divertimento, talvez o amor, e voltam felizes para casa. Mas o escritor não pertence a esse grupo de pessoas. Ou melhor, não pertence a grupo algum. Ele busca o que não se consegue nomear. Daí a escrita ser simbólica, um símbolo que sempre está à procura do que possa significar. E, muitas vezes, a própria escritura acaba por valer-se como significado.

Dinamarca, de Igor Dias, é um livro que revela um escritor que se bate pela literatura, seja ela algo palpável, uma invenção, ou a razão da existência. Mas o que seria a literatura? Muito se escreveu sobre isso. Outros tantos quiseram defini-la. Tente explicar a uma turma do primeiro ano do ensino médio o que é literatura. Fracasso geral. Mas, mesmo assim, continua-se escrevendo. Embora os livros que conceituam esta difícil arte feita de palavra sempre naufraguem na busca pela definição exata, não desistem de navegar através de mares plenos de tempestades. Talvez jamais encontrem um porto seguro. Por isso, a necessidade da luta, a eterna queda de braços para dar ao texto a luz. Aonde se vai chegar? Ninguém sabe.

Dinamarca, o conto que dá nome ao livro, começa com um jogo de palavras cruzadas. A literatura também é um tipo de jogo. Aliás, um jogo onde não há vitoriosos; com a literatura, todos perdemos um pouco. Mas se trata de uma perda que mostra que viver, na maior parte do caminho, é aprender a perder. O jogo de palavras cruzadas pede a capital da Dinamarca (ou perde?); depois, um personagem de Walt Disney; a seguir, o pai da humanidade com quatro letras. O narrador diz que jamais foi excelente nessas coisas. A história segue, no entanto não fica na superfície das palavras, no simples jogo. Vem a febre, e com ela o delírio. Talvez a literatura seja o delírio. Mas aí seria fácil, o delírio literário não é delírio, mas invenção, sobretudo, quando se trata do delírio do outro. Mesmo assim mergulha-se no delírio, e mistura-se com o outro. A doença e o tal delírio arremessam-nos ao passado, ao que está perdido em nós, ao que pode ser recuperado apenas pelas palavras, “o seu sangue também verteu naquela outra vez em que estávamos brincando de velocípedes ou de bolas de gude ou de bicicletas e você caiu de cara no chão, lembra, ainda éramos crianças, tudo isso antes do furacão que veio com seus ventos impressionantes, e levou alguns de nós, algumas das coisas que mais prezávamos”.

Dois tempos
O conto A carta de Maricá é uma narrativa em dois tempos. No primeiro, é apresentada uma carta datada de 23/03/99, enviada por um personagem chamado Cuíca Bão; a carta tem como destino duas mulheres. “Por aqui está tudo bem, e pode ter certeza que não esqueci de vocês, esse tempo todo em que andei sumido foi devido a alguns compromissos com o vestibular”. O personagem conta o seu périplo no Rio de Janeiro. A aprovação no vestibular da UERJ, (ele diz ter sido aprovado mas ainda aguarda a classificação), a namorada do Meyer que arranjou no Carnaval, as festas com os colegas do E.A.C. (ele não explica o que significa), e a saudade dos amigos (“a única coisa que fico triste, é que não tenho muito contato com os meus amigos do colégio, que saudade”). No final, agradece às duas amigas por terem lembrado o aniversário dele. No segundo tempo, entra em cena outro personagem, que escreve como post-scriptum em agosto de 2010, onze anos depois. “Esta não é uma obra de ficção. A carta é real e foi transcrita ipsis literis. Eu encontrei esta carta num domingo, seis e meia da manhã, quando eu andava sonolento pela praia do Flamengo”. Agora, vem o melhor. O personagem nos conta que se deparou com um papel dobrado no chão. Pega-o, mas não o lê naquele momento. Antes de dormir, no entanto, não resiste e lê a carta. Eis algumas das perguntas do leitor inesperado: “Por que a carta estava perdida, jogada no chão da rua como lixo?” “Teria o Cuíca morrido?” “A destinatária da carta será que morreu?” “Cuíca se casou com a mulher que conheceu no Carnaval?, a ilustre moradora do Meyer? Provavelmente, se estiver vivo, deve ter se formado. Provavelmente constituiu família, deve ser um homem de bem, aparenta ser uma pessoa muito sensível.” No parágrafo seguinte, vem a bomba. “Mas e agora? Como dormir com isso, sabendo que em Maricá tem alguém de quem já sei tanta coisa e que não sabe que eu existo?” A mensagem do texto, além da que vem escrita na carta, pode ser a seguinte: um escritor pode deixar sua obra em aberto, mas quando se vê como leitor — um leitor dos signos da própria vida — já não pode dar-se esse direito. No final, pergunta mais uma vez: “Por que, Cuíca, por que tu quiseste que eu fosse ao teu encontro nesse domingo, por que desviaste meu caminho e me fizeste andar pela Praia do Flamengo em vez de voltar pela Rua do Catete, como sempre faço?”. É a própria literatura, como algo imprevisto, um papel a rolar pelo chão desencadeando o drama existencial.

A crueldade de mamãe apresenta, a princípio, uma história inusitada, “Mamãe tinha um hábito estranho. Sempre escondia as chaves dos nossos armários. Por vezes, passávamos dois ou três dias sem ter acesso às nossas próprias roupas e perfumes.” O personagem descreve quantas vezes por ano a situação acontecia, o sorriso cínico da mãe, ele e a irmã sem fazer pergunta alguma sobre o motivo de tal atitude. No final, a revelação. “Mamãe morreu quando éramos jovens: eu tinha vinte e dois, Patrícia quinze. Houve choro, tristeza, luto e dúvida: por quê? Nunca soubemos, nem eu nem Patrícia. Mas o que durante muito tempo chamamos de ‘a crueldade de mamãe’ nos tornou, sem dúvida, pessoas melhores.” Através de tal privação, os dois irmãos aprenderam a lidar com as perdas. “As mortes, os relacionamentos terminados, os assaltos; tudo quanto fosse perda era encarado por nós como uma breve interdição.” Mais adiante, há a pedra fundamental: “mamãe foi a única pessoa que nos ensinou a perder”. Num mundo onde todos se batem e querem vencer o tempo todo, onde a dor maior é ficar para trás, o ato de saber perder acaba por se transformar numa grande vitória.

O livro tem cinquenta contos, em que predomina a diversidade. Há textos que são muito curtos e mais parecem exercícios de oficinas literárias, como Donzela, Palavras não-ditas, Do sono e da vigília, Cartola, Roberta, Mantra, A barata e y. Como se trata do primeiro livro de ficção de Igor Dias, creio que se deve dar um desconto. O jovem autor tem todas as possibilidades de crescer com sua literatura e se tornar um autor de destaque no panorama da ficção brasileira.

Como a perda no jogo de palavras cruzadas do conto Dinamarca, como na carta perdida e encontrada por um terceiro que passa a perder ainda mais porque não sabe o destino daquelas pessoas, como os filhos privados de seus pertences pela mãe que esconde as chaves de seus armários e morre sem deixar a resposta, Dinamarca vem bater numa porta bastante cara para a literatura: a transformação da dor em arte, uma arte que trafega num fio fino e sinuoso, ladeado tanto à esquerda como à direita pelo abismo.

Dinamarca
Igor Dias
Oito e Meio
178 págs.
Igor Dias
Nasceu em 1987, no Rio de Janeiro (RJ). Participa dos coletivos literários Clube da Leitura e Caneta, Lente & Pincel. É autor do livro de poemas Além dos sonetos breves (2012). Dinamarca é seu primeiro livro de ficção.
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

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