Ricardo Piglia conta que uma vez, hospedado em um hotel em La Plata, encontrou cartas de uma mulher em um guarda-roupa, cena que ele descreve “como se alguém tivesse ocultado um pacote com drogas”. A sequência do que narra o ficcionista e teórico é mais estranha ainda. Tempos depois, em outro hotel, em Buenos Aires, ele teria encontrado novamente, em outro desvão de um guarda-roupa, cartas de um homem endereçadas à mulher de La Plata. A história simples, porém pouco provável de acontecer, mostra uma das faces do conto a ser utilizada para lermos o novo livro de Natália Nami.
Em Formas breves, Ricardo Piglia comenta que o conto mescla uma história visível e outra secreta em um movimento elíptico e fragmentado. O gênero conto mostra uma história na superfície quando na verdade quer nos contar sobre o que está escondido. Pois eis que O amor é um terreno baldio coberto pelo mato alto segue à risca o modelo de Piglia, partindo nos doze textos do mesmo ponto, o amor, para aos poucos nos revelar o avesso da história, sem necessariamente entregar um fim. O domínio do gênero garante que o tema deslize entre as três partes do livro, ampliando suas possibilidades de abordagem em vez de se encaminhar para uma espécie de esgotamento.
A divisão do título na capa, já cadenciado em três linhas, antecipa as partes internas do livro, criando as categorias abordadas nos contos. A primeira seção, Um terreno baldio, lança o livro já com força em contos que mobilizam relações familiares e amorosas frustradas, seja entre filhos, filhas e pais ou casais em desalinho. Diante de um tema tão mastigado, porém nunca esgotado porque é próprio da experiência humana, o gênero escolhido faz o papel de amplificador da sua potência narrativa. No jogo de mostrar e esconder, o conto entrega muito mais ao leitor do que muitas narrativas encorpadas como romance. Talvez porque seja da forma conto o mérito de carregar um segredo bem guardado como nenhum outro gênero.
A língua como monumento
A força extra chega na forma do trabalho meticuloso de linguagem da escritora. A sensação que se tem é que cada palavra foi escolhida propositadamente, ajustada no ponto certo da construção levantada em cada conto. A primeira narrativa, Chuva quase, revela em que superfície o leitor está entrando. Entre devagar, pise com cuidado e não tenha pressa ao ler. É preciso estar atento às escolhas formais que o texto de Natália Nami oferece entre sinestesias, elipses e silêncios. Um passo maior que as pernas e o leitor pode deixar passar um dos trunfos do livro, a extensão vocabular que dá gosto de ver e que por vezes pode fazer com que nos sintamos um tanto quanto preguiçosos diante das mais de 370 mil palavras da língua portuguesa. Parece que atravessamos nossa vida inteira mais ou menos com as mesmas palavras e Nami está aí para provar o universo de possibilidades desperdiçadas. O livro nos lembra a cada parágrafo o quanto a língua portuguesa é bonita e também movente em sua sintaxe.
A imaginação a partir das palavras constrói imagens como “pés cheios de veias, galhos retorcidos” ou “saí correndo como se fosse um lápis seguindo a linha férrea até ver aonde ia dar o risco” ou “as frases desengomando o papel que dobrarei em cilindro”. Neste conto, a narradora se desloca entre lembranças da amiga da vida toda, o filho bebê e o marido infiel. A amiga Catarina ou Kate é o ponto de inflexão que a faz enxergar (ou a nós, leitores) a diferença galopante entre uma vida estável e uma vida interessante. Outros dois contos desta seção trazem os pais como figuras de controle ou nódoa por ausência ou abandono. Em Grãos que flutuam a incomunicabilidade entre pai e filho, tão comum em todos os tempos, é o motor da narrativa em que um jovem que deseja ter uma vida própria em lugar de ser herdeiro do pai. A disposição do protagonista fraqueja diante da imposição da figura paterna. “Foi engatando a primeira, mas o pensamento ia em marcha a ré”, diz em uma das cenas em que se desloca para ir conversar com o pai.
Finalmente, o título do livro aparece por inteiro no conto O jardim, narrativa em que a narradora observa o relacionamento de um casal da vizinhança. A casa com um harmonioso jardim, uma espécie de “templo sagrado do amor”, como ela mesma diz. Os elementos que atestariam a infinitude do relacionamento amoroso estão lá: um casal maduro com experiências anteriores de outros matrimônios, amigos de infância, a mulher com uma profissão menos convencional, médica homeopata, e com crenças alternativas. Quando o relacionamento termina, a casa e sua deterioração viram símbolo da impossibilidade dos amores perfeitos. O fim do amor como mato, fácil de surgir em qualquer terreno descuidado.
Um disfarce para o amor
A estrutura fragmentada já encontrada em outros livros de Nami como o romance O contorno do sol (2009) e a tensão que acompanha enredos simples dão sequência à segunda seção do livro. Nela encontramos outros tipos de amor e de fracasso em narrativas mais complexas. Em Descoberto, o protagonista, desgarrado de uma família rica, vive com poucos recursos e seu trabalho, onde investe o seu amor, não lhe dá o retorno financeiro esperado. Trechos como “Os passos do senhorio no chão sem tapetes. No sem chão dos passos. O aluguel” nos conectam com a tradição literária. O protagonista, um artista de 40 anos, enfrenta dificuldades e cobranças que lembra Raskólnikov. Se em Dostoiévski, havia uma agiota, ali há um senhorio que o aterroriza e uma curadora de arte que despreza seu trabalho.
O candelabro de nove braços é um dos contos mais trabalhados na mistura de personagens de universos religiosos diferentes e na exploração das diferenças culturais e geracionais. A estratégia de sobreposição de histórias, em função da tensão e do suspense, é expandida nesse conto em que uma tia precisa fazer uma revelação à sobrinha, em meio à narrativa da Segunda Guerra no seio de uma família judia.
O amor entre humanos e animais também tem seu lugar nesta seção, em um dos textos mais curtos e delicados do livro. O narrador não deixa claro ao leitor se tratar de um amor entre mulheres ou amigas de diferentes idades, uma vez que as duas personagens têm nomes femininos e uma delas está enferma e envelhecida. “Quando penso em amor, penso em Ana Lúcia e Lívia. Amor é coisa que a gente fica explicando que não se explica”, diz. A experiência do amor entre pessoas e bichos pode ser uma bela lição sobre a superficialidade do amor entre humanos.
A maior dor do mundo
A constelação de tipos de relacionamentos se encerra com o conto em que uma mãe, uma cena banal do cotidiano de qualquer pessoa e o disparo de uma torrente de “lembranças” são laçadas por episódios de racismo. Aliás, “lembranças” não é o substantivo adequado quando se é negro e as situações de preconceito não descansam num passado revisitado, mas são revividos de diferentes formas dia a dia. Goteiras não estancadas nos dá de uma só vez o grande tema escolhido pela autora, um resumo do Brasil e a confirmação de que o pessoal é político. E, sim, o amor é antes de tudo uma ação como nos ensina bell hooks ao longo de sua obra.
Nami recupera objetivamente uma das máximas do branqueamento em uma mirada que recua aos fins do século 19 quando forjou-se a ideologia. “Mãe, avó, bisavó, todas haviam cuidado sempre dos cabelos e limpado aos poucos as gerações gestadas na barriga”, conta a narradora. Os “pigmentados originais” vão perdendo força geração a geração até chegar à protagonista — “sessenta por cento, e seu filho, por conta de suas escolhas, voltara à estaca zero”. O desfecho do conto estampa o fim de muitos jovens negros no Brasil, onde a taxa de homicídios entre jovens pretos é três vezes maior do que entre brancos.
Merecem atenção também os elementos que a autora irá juntar para a constituição da história e a denúncia do racismo estrutural: a fisionomia da mulher, o que inclui o lenço nos cabelos e a posição servil ao tentar apanhar do chão um fruto que caiu e se espatifou. Depois a pequena crise de ansiedade, os movimentos corporais da personagem e por fim a repetição do racismo e seus efeitos.
Livro breve, rápido e por vezes cortante, O amor é um terreno baldio coberto pelo mato alto é uma mostra da “iluminação profana”, como bem definiu Piglia, da forma do conto, e também da atenção que precisamos dar a este gênero, sob o risco de nunca vermos refletida na linguagem a grandiosidade das nossas experiências.