For those of us climbing to the top of the food chain,
there can be no mercy.
There is but one rule:
hunt or be hunted. Welcome back.
Francis Underwood, em House of cards (S02, E01)
1.
“Ah, o best-seller! Esta incógnita que os literati não querem compreender! Como eles podem existir? Como eles podem ter algum sentido nesse mundo onde nós buscamos o absoluto na arte e queremos destruir a escravidão do mercado? Afinal, o que são esses monstrengos? Eles ocupam espaço em nossas livrarias, consomem o papel que saem das árvores, gastam os bytes dos nossos computadores, cansam as nossas retinas tão fatigadas com tramas que ninguém consegue entender, personagens que jamais existirão na vida real, diálogos frouxos, narração desastrosa, a ‘suspensão da descrença’ levada ao ponto de ser quase um culto, uma fé sempre em busca de um milagre — o de que algum exemplar desse gênero finalmente tenha alguma qualidade a ser preservada. Mas e o leitor?, você me pergunta. O leitor deve ter alguma opinião — afinal, se os best-sellers vendem é porque eles dialogam de alguma forma com este membro rarefeito do mercado editorial. O leitor?, eu respondo com outra pergunta. O leitor que vá às favas!”
O pensamento acima foi retirado de forma cirúrgica de um “fluxo de consciência” (ou stream of consciouness, se quisermos mais técnicos, mais precisos) de um desses seres iluminados que fazem parte do petit monde literário — os aspirantes à fama, aqueles que acreditam piamente que estão prontos para realizar a arte que superará todas as artes, o romance que calará a boca de todos os romances, mas, ao mesmo tempo, não conseguem fazer nada, só ficam reclamando, a olharem sem nenhum brilho em seus olhos para as estantes das livrarias, abarrotadas de best-sellers e alguns clássicos da literatura, resumindo as suas divagações a uma única pergunta: Por que eu não consigo escrever algo parecido com isso e ter algum sucesso para pagar as minhas contas?
A resposta deveria ser, se ele conseguisse ouvir a si mesmo: Por que você sofre daquilo que é mais ordinário no petit monde literário — a inveja. Mas esta nunca aparece por inteiro e às claras, correto? Afinal, quem admitiria para alguém ao seu lado que sofre exatamente do mais vergonhoso dos pecados — a inveja, esta serpente venenosa, que muitos comparam a um câncer, outros a igualam aos dejetos que saem de nós, e que, no fim, paralisa o aspirante a escritor porque faz aquilo que todo o pecado faz: estraga a sua vida? Ninguém, óbvio. Contudo, lá está ela, presente em cada página de um livro mal escrito ou que jamais será escrito, presente em cada negociação de contrato no mercado editorial, presente em cada crítica literária que, para se autoenganar, resolve temperá-la com o molho do esnobismo.
Vamos selecionar, por exemplo, uma crítica sobre um determinado livro que foi um best-seller lançado há cerca de quinze anos — crítica talvez não seja a palavra adequada, já que atualmente elas foram fatiadas a ponto de serem denominadas como “resenhas”. Trata-se do texto assinado por ninguém menos que Martin Amis sobre o então superaguardado romance escrito por ninguém menos que Thomas Harris — a continuação do best-seller O silêncio dos inocentes (1988): Hannibal (1999). Para quem ainda não conseguiu sobreviver ao fenômeno midiático dos últimos quarenta anos, aqui vão algumas informações — o Hannibal no caso é ninguém menos que Hannibal Lecter, o psiquiatra, médico e genial psicopata que, nas horas vagas, tinha o costume de comer os órgãos de suas vítimas, contribuindo assim para o apelido que seus pares (e, depois, juízes) lhe dariam de “Hannibal, the cannibal” (infelizmente, a tradução literal desta expressão a faz perder o trocadilho fonético; se o literati em questão é monoglota — como muitos que pululam por aí —, não podemos fazer nada a respeito).
Hannibal foi o terceiro livro de uma série que logo os especialistas em marketing tentaram apelidá-la de “Trilogia Lecter” pois ela vinha em sequência de dois romances que tinham entrado na lista dos mais vendidos e também haviam sido transformados em dois excelentes filmes — Dragão Vermelho (publicado em 1981, filmado três anos depois por Michael Mann como Manhunter, um clássico cult da década de 80) e o já citado Silêncio, também conhecido no resto do mundo pelo seu título original — The silence of the lambs (O silêncio dos inocentes, na tradução no Brasil) — e pela versão em estado-de-graça que Jonathan Demme conseguiu fazer com uma igualmente em estado-de-graça Jodie Foster (interpretando a heroína Clarice Starling) e um superlativo estado-em-deificação (ou demonização, de acordo com o ponto de vista) Anthony Hopkins entregando com prazer uma deliciosa versão de Hannibal Lecter. Portanto, o clima de expectativa era grande: o que Harris aprontaria dessa vez?
Ninguém poderia dizer. No caso de Martin Amis, a expectativa foi tanta que ele acabou frustrado. Ou não? Em seu texto sobre Hannibal, publicada na finada revista Talk, editada por Tina Brown, a mesma jornalista que quase conseguiu destruir a The New Yorker (David Remnick jogaria depois a pá-de-cal) e que ainda hoje polui a nossa leitura na internet com o seu (atentai para o nome da publicação, leitores!) The daily beast, o escritor inglês deixa claro a sua admiração pelos livros anteriores de Harris. Aliás, é mais do que uma admiração: se percebermos bem — e usarmos dos instrumentais que nos foi dado por Herr Freud — Amis sofre de uma transferência imediata com o criador de Hannibal Lecter. Ele queria ser Harris. O autor de romances invulgares, mas também irregulares, como A seta do tempo e A viúva grávida, tinha prestígio no petit monde literário (tudo bem que ser filho de Kingsley Amis ajudava um pouco), mas faltava-lhe… sucesso — o que, em termos mais claros, significa dinheiro. Não por acaso que, na época em que sua resenha sobre Hannibal foi publicada, Amis ainda sofria com o fato de que pedira a Andrew Wylie, conhecido no mercado pela alcunha de “O Chacal”, um adiantamento de 2 milhões de dólares para um romance que ainda sequer tinha sido escrito — e que depois seria o admirável A informação — simplesmente porque ele não tinha dinheiro para pagar um delicado tratamento dentário que, entre outras coisas, envolvia retirar todos os dentes da arcada superior, além de extirpar um inchaço na gengiva, suspeito de ser um tumor canceroso. Alguns anos depois, Amis voltou com os dentes consertados, livre de ter um câncer, mas, nesse meio tempo, brigou com sua antiga agente, Pat Kavanagh, que era, por acaso, esposa de um de seus melhores amigos, o escritor Julian Barnes.
Pois é: essas são as coisas que fazemos por dinheiro. Mas também por poder. Afinal, o que Martin Amis queria ao mostrar o seu desapontamento por Hannibal em sua resenha na Talk, além de provar a um leitor mais arguto que ele tinha saudades do Thomas Harris dos outros tempos? Assim como Amis não economizou na admiração do passado, ele também não economizou nos adjetivos daquele presente momento de sua vida: de acordo com seu rigoroso padrão estilístico, a prosa de Harris, que antes era repleta de observações agudas que davam dignidade a personagens imersos em um mundo de predadores, agora havia se tornado uma “necrópole do vocabulário” devido a sua “vulgaridade virtuosística” em que o criador de Hannibal Lecter havia “ficado gay” pelo seu personagem mais famoso e, de psicopata divertido, o transformara em uma espécie de “Camus da carniça”, repleto de inquietações existenciais embaladas no mais dissoluto do esnobismo — algo que, claro, Amis podia entender perfeitamente, pois ele era um de seus representantes mais ilustres. Enfim, o enfant terrible da crítica literária inglesa não gostava mais de Harris — mas, ainda assim, mostrava o seu poder ao petit monde de dissecar a quem antes era visto com um old master que nunca errara na prática do seu ofício.
Na mesma época, o caderno dominical do New York Times publicava outro texto sobre o mesmo livro. Desta vez, contudo, o autor era ninguém menos que Stephen King. Para quem ainda não sobreviveu à avalanche de mídia, todos já devem saber quem é King: considerado o mestre do gênero horror, este sim é um escritor que vende, que faz sucesso, que dá muito dinheiro. E olhem só: ele afirmava que Hannibal era uma maravilha. Era exatamente o contrário de tudo o que Amis tinha dito em sua resenha — o de que o estilo era uma perfeição, de que os personagens eram pessoas honradas e sofisticadas que andavam com naturalidade nos ambientes onde viviam, que Lecter era o Drácula da nossa época, pronto para sugar tanto o nosso sangue como o nosso medo e transformá-los em material literário de primeira categoria — e que, mais do que tudo isso, era capaz de conversar com o leitor comum de igual para igual.
É certo que, na verdade, ninguém sabe como se dará este fenômeno que tantos querem alcançar — o “conversar com o leitor comum de igual para igual” — mas quando isso acontece, ah, c’est magnifique, como diria Cole Porter. E King sabe desses assuntos: afinal, o homem, apesar de também ter uma obra irregular (no nosso padrão de qualidade, em seus quase sessenta livros publicados, sobra-se apenas Different Seasons, uma coleção de novelas caprichadas e que mostram que o bardo de Maine poderia ter sido um Martin Amis do Sul), não precisa fazer adiantamentos vultosos para pagar uma mera conta ortodentária. Mais: ele não quer ser Thomas Harris — e é muito provável que, no caso, o inverso seja o verdadeiro, já que Harris gostaria de ter dinheiro suficiente para pagar os seus constantes cursos no Le Cordon Bleu. Ainda assim, é de se louvar a generosidade de Stephen King ao resenhar Hannibal. Ele faz aquilo que o crítico literário deveria fazer: analisa o livro pelo o que ele é, querendo entender quais foram as intenções do autor e, dessa forma, ajudando o leitor comum, este ser tão abstrato no petit monde, a se guiar se deve ou não comprar o romance. Isso sim é a mais honesta técnica de venda — quando o crítico entende o seu objeto sem nenhuma vontade de querer exercer o seu poder em um mundo que não está nem aí para o verdadeiro mundo ao nosso redor.
Contudo, Thomas Harris não precisa de nada disso. Ao contrário de um Martin Amis ou de um Stephen King, que colocam um novo romance nas prateleiras a cada dois, três anos, às vezes ele demora uma década para entregar uma nova criação. Ao contrário de Amis e King, que são obrigados a dar uma entrevista cada vez que alguma coisa acontece no maravilhoso mundo da mídia, desde a política de Barack Obama até a lista dos dez melhores filmes do ano, Harris se esconde da imprensa e não dá uma declaração pública desde 1974. E, ao contrário desses dois, que praticamente transformaram as suas vidas em um livro aberto para o público, Harris apenas deixa os seus leitores saberem que ele gosta de cozinhar, tem uma companheira dedicada há mais de quarenta anos e que parece ser um regente de coral de igreja quando se deixa fotografar, com sua vetusta barba de Papai Noel e um olhar bonachão que não dá uma única pista de que este sujeito é o mesmo que criou um dos personagens mais monstruosos da literatura contemporânea.
2.
Porque antes de Hannibal Lecter, houve a reportagem policial e o Setembro Negro. Ou melhor, Domingo negro, o seu primeiro romance, lançado em 1975. Harris nasceu no dia 11 de abril de 1940, trabalhou como jornalista criminal nas publicações da cidade de Waco, Texas, depois foi repórter na Associated Press, até que, junto com mais dois amigos, inspirou-se no atentado terrorista ocorrido nos Jogos Olímpicos de Munique e os três decidiram escrever um romance sobre terrorismo internacional. Os amigos abandonaram o projeto, mas Harris continuou — e o resultado foi um livro que ficou em primeiro lugar na lista dos mais vendidos do New York Times e um polpudo pagamento para uma versão cinematográfica, que seria dirigida por John Frankheiemer e com a suíça Marthe Keller no papel de uma sedutora árabe, Dahlia Iyad, que instilaria o “ódio-contra-o-Ocidente” do americano abandonado no Vietnam, o piloto Michael Lander, desta vez adequadamente interpretado pelo eterno neurótico Bruce Dern.
Iyad e Lander planejam um daqueles atentados que, anos depois, anteciparia de forma assustadora o 11 de setembro: jogar um dirigível repleto de explosivos em pleno estádio de futebol americano, lotado, justo no dia da abertura do Super Bowl. Afinal, quem imaginaria que uma bomba pode cair literalmente dos céus? Ninguém, nem mesmo o superagente do Mossad, David Kabakov, um daqueles sujeitos que sente o cheiro do Al Fatah muito antes de algum míssil, tanto israelense como palestino, atingir a faixa de Gaza. É claro que, na década de 1970, Gaza ainda não era notícia, e ambos os povos ainda sofriam as cicatrizes da Guerra dos Seis Dias — além de Munique, que, até então, tinha sido algo que ninguém poderia vislumbrar que poderia ser executado.
Domingo negro parece ser mais um romance de suspense caça-níquel sobre a caçada de gato-e-rato contra o tempo, mas já estabelece o tema sobre o qual Thomas Harris desenvolveria nos livros seguintes: a incapacidade do ser humano de lidar com a infinita imaginação do medo. Todos os personagens, de Dahlia Iyad a David Kabakov, passando pela amante deste, Rachel Bauman, até o revoltado Michael Lander, respiram e suspiram o medo. E Harris o percebe como poucos, até mesmo nos mínimos detalhes, como podemos ver no seguinte trecho, que faria inveja a qualquer descrição feita por Martin Amis (e que teria um número muito maior de vocábulos, sem dúvida):
A convalescência de David Kabakov no apartamento da Dra. Rachel Bauman foi uma época estranha, quase surreal, para ela. Sua casa era clara e opressivamente em ordem — e ele chegou nela como um gato selvagem que voltou após uma briga na chuva. O tamanho e a proporção dos quartos e dos móveis pareceram mudar para Rachel com a presença de Kabakov e Moshevsky no lugar. Para homens tão robustos, eles não pareciam ocupar muito espaço. Isso foi um alívio para ela, mas depois começou a preocupá-la um pouco. O tamanho e o silêncio formam uma estranha combinação na natureza. Eles são os instrumentos da danação.
Será que os livros de Harris também são “instrumentos da danação”? Bem, Domingo negro não aliviava na sua perspectiva de que, mesmo com um caçador arguto como Kabakov, o terror podia, de fato, ter a última palavra. O mesmo pode-se ser afirmado no segundo romance de Harris, publicado seis anos depois do primeiro — o estupendo Dragão vermelho (1981), no qual somos enfim apresentados ao Dr. Hannibal Lecter, mesmo que o livro não seja sobre ele, e sim sobre outro personagem memorável, Will Graham. O primeiro capítulo já mostra que Harris domina o bom e velho estilo Hemingway, em que toda a história do que o leitor precisa saber que aconteceu é contada por meio de diálogos secos, precisos e sem nenhuma espécie de sentimentalismo. Graham é um gênio da psicologia que tem o dom — se podemos chamá-lo assim — de ter empatia com assassinos em série, em particular com os psicopatas violentos que perturbam o dia a dia do agente do FBI, Jack Crawford, que o convida para trabalhar no seu departamento. O motivo? Agora há mulheres sendo mortas e estranguladas em suas casas — e descobriremos depois que o responsável por tudo isso é Francis Dolarhyde, um sujeito com lábio leporino e que, cada vez que mata alguém, acredita estar mais próximo de se tornar o dragão vermelho que embeleza algumas gravuras do poeta e pintor William Blake. Para saber mais exatamente como esse sujeito pensa, Crawford sugere a Graham que vá visitar na prisão o Dr. Lecter, que foi justamente capturado pelo jovem psicólogo graças a um golpe de sorte (palavras do bom doutor) e que, com isso, guardou alguma mágoa do evento.
No prefácio comemorativo aos vinte anos de publicação do seu livro, Harris, em uma rara declaração, afirmou que Hannibal Lecter surgiu em sua mente quando, uma noite, tentava entender os latidos e os gemidos dos cães selvagens que rodeavam a sua casa. Ele precisava de alguém que fosse um duplo de Will Graham — de alguém que fosse o seu igual, mas também fosse superior em algo inapreensível. E conseguiu: o Lecter que surge em Dragão vermelho é um ser que controla toda a arquitetura invisível do romance — e o que era para ser mais um livro comum de procedimento criminal torna-se um autêntico plano macabro de vingança em que Hannibal (já podemos chamá-lo com essa intimidade?) enfim ensinará ao pobre Graham quais são as marcas permanentes de se viver em um mundo onde o medo detém a única imaginação possível para nossas consciências.
Pois é isso que Thomas Harris faz com sua obra: ele nos ensina a perceber como a nossa imaginação é muito precária para perceber as infinitas variações que o medo traz para as nossas pobres vidas. E Lecter é a personificação desse medo — ao mesmo tempo em que ele o domina, há também a fascinação de que jamais seremos como esse sujeito porque não conseguimos adentrar no seu “palácio da memória”. Poderíamos dizer “graças a Deus” e irmos em frente; mas não, queremos saber mais sobre esse personagem, queremos encaixá-lo nos nossos conceitos, mesmo que ele mesmo diga que isso é impossível (“Você não tem como me explicar”, diz. “Eu apenas aconteci.”) e que a nossa fascinação aumente a cada virada de página. Talvez o que Harris quer que saibamos é o mesmo que ele aprendeu com a parábola de um sultão, que dizia: eu não possuo falcões, eles moram comigo.
E como toda a caçada, há um momento em que você deixa de ser o caçado para se tornar o caçador — afinal, mais cedo ou mais tarde, nós cumprimos todos os papéis nesta vida. Mas como fazer para continuar na caçada e não ser exterminado nela? É em busca desta resposta que Harris escreve O silêncio dos inocentes (1988), em que Hannibal Lecter deixa de ser um mero demiurgo para se tornar um eficaz psicopompo na vida de Clarice Starling, jovem agente do FBI que adentra nos labirintos macabros do crime, em busca de Buffalo Bill, um serial killer que assassina mulheres gordinhas e suculentas para depois se transformar em uma delas (sim, no mundo predatório de Harris, os psicopatas não entram no rol do politicamente correto: ou são deficientes, ou são transformistas sexuais). Não se sabe se Harris tinha plena noção de que o seu romance pode ser lido como uma espécie de iniciação religiosa de uma alma inocente aos redutos infernais da condição humana, mas é de se notar que, neste livro, Lecter não é mais um representante do medo: ele é o próprio medo, que instiga a brava Clarice a ir ao fundo de si mesma e enfrentá-lo com a coragem necessária que só o mundo permite que os astuciosos sobrevivam.
Para permanecer viva na caçada, Starling só pode usar da única faculdade que um ser humano possui quando se depara com a companhia das trevas: a imaginação. E quando usamos esse termo, não estamos falando de criar mundos alternativos ou então de insistir nas fugas da realidade devido ao fato de que a pressão existencial torna-se algo no limite do insuportável. Falamos daquilo que, às vezes, é a única coisa que nos resta: colocar-se no lugar do Mal e imaginar como ele age, sem se deixar contaminar por ele e, daí, extrair um Bem maior. Eis a razão deste livro, que também fez sucesso e deu todo o dinheiro que Harris merecia, chamar justamente (no título original) “o silêncio dos cordeiros”. O cordeiro, é claro, representa o Cristo sacrificado — mas o seu silêncio é a estratégia mais forte que deve ser usado contra o Mal Lógico que Hannibal Lecter tenta imitar. Será este mesmo silêncio que, no meio da caçada, apascenta os falcões que existem dentro de nós e que nos impelem a voar acima das nossas possibilidades, quando, no fundo, temos de usar a imaginação para saber que sempre existirá uma caveira atrás do rosto. Lecter tenta enganar Clarice, mas não consegue; no final, ela captura Buffalo Bill por conta própria, com o apoio de seu verdadeiro mentor, Jack Crawford, e vence o medo dos seus traumas, dos seus obstáculos interiores — mesmo que seja por pouco tempo.
3.
Porque quem disse que o caçador é obrigado a continuar na caçada? Muitas vezes, ele pode querer simplesmente desistir — mesmo quando sabe que isso é impossível. É o que acontece em Hannibal (1999), a terceira parte da saga Lecter e o romance onde finalmente o conhecemos melhor, apesar de isso não ser muito recomendado tanto pelos psicólogos como por literati como Martin Amis. E quando falamos que conhecemos melhor, isso significa que Harris nos obriga a entrar no seu “palácio da memória” — uma artimanha que o “rei-dos-psicopatas” emprestou dos renascentistas para reconstruir e colocar em dúvida o seu passado mais do que nebuloso —, não para humanizá-lo (como pensou erroneamente Amis), mas para entender como um homem qualquer se tornou o próprio medo e como contaminou os corações e as mentes de todas as outras pessoas — em especial, a da brava Clarice.
No final de O silêncio dos inocentes, Lecter havia conseguido escapar da prisão — e agora vamos acompanhá-lo em suas andanças por Florença, em que Harris nos confunde se o esnobismo de seu personagem mais famoso poderia ser também do autor (ou se trata de mais uma caipirice no melhor estilo jeca sulista), enquanto a polícia está no seu encalço e Clarice Starling enfrenta a verdadeira descida aos infernos que só a maturidade proporciona quando percebemos que estamos velhos demais para continuar na caçada. A agente do FBI se vê numa ciranda de desejo erótico e político — e o seu mentor Jack Crawford, que contrabalançava a influência diabólica na sua iniciação espiritual descrita em O silêncio, se vê fraco demais para protegê-la de outros predadores burocráticos, como o repugnante Paul Krendler ou então o monstruoso multimilionário Mason Verger, uma antiga vítima que sobreviveu literalmente às mordidas de Lecter e que agora deseja uma vingança implacável. O que antes era apenas sugerido nos livros anteriores, desta vez Harris deixa bem explícito: Hannibal é um romance gótico, uma mistura de Bram Stoker com Flannery O’Connor, em que os símbolos demoníacos são levados ao limite da ironia, em um procedimento que daria inveja a Theodor Adorno; já que, ao mesmo tempo em que busca alguma humanidade no psicopata Lecter — sabemos, por exemplo, que ele tem a sua origem homicida explicada porque sua irmã mais nova, Mischa, foi devorada por vagabundos na Segunda Guerra Mundial — ele retira toda a coragem que antes esperávamos de Clarice Starling, chegando ao ponto de jogá-la na cova dos leões, quando Harris termina a sua história e a transforma na amante hipnotizada e fascinada de ninguém menos que… Hannibal Lecter.
Sim, a brava Clarice se encanta perante os braços de sua aparente nemesis. Mas não será que sempre foi assim? Nada foi muito simples no mundo macabro de Thomas Harris, apesar de tentarem catalogá-lo na prateleira dos best-sellers. Na verdade, ele faz pela literatura popular (de massa, como diriam os estudiosos da indústria cultural…) algo que a literatura de alta cultura esqueceu há muito tempo: comunicar ao leitor aquela saudável suspeita pelo poder que faz uma sociedade permanecer sã. Porque os romances de Harris são sobre como um homem qualquer — o dr. Hannibal Lecter, Dahlia Iyad, Clarice Starling, Paul Krendler — se deixa envolver na sua libido dominandi, na sua vontade de poder, contagiando os outros ao seu redor para imitá-lo sem pensar nas consequências morais desses atos, deixando-se fascinar pelo Mal e pelo medo, controlando a quem quiser, de todas as formas — do mais baixo ao mais alto dos escalões do governo —, chegando ao ponto extremo de comê-las para ter o domínio completo de seus desejos e de quem não se submete à sua vontade.
Talvez seja por isso que Thomas Harris não dê mais declarações à imprensa, tornando-o assim uma espécie de Thomas Pynchon da literatura de massa (como bem apelidou Stephen King). Ambos os autores e seus respectivos livros têm um código secreto, uma mensagem que poucos conseguem decifrar: a de que vivemos em uma sociedade repleta de psicopatas em atividade ou esperando apenas a possibilidade de agir. Somos todos predadores em potencial — e não temos como escapar da caçada que nos envolve. Cedo ou tarde, seremos devorados ou teremos que devorar os outros.
Em tal mundo, não há espaço para a inocência — e este parece ser o tema do romance mais recente de Thomas Harris, Hannibal rising (2006), justamente o livro que narra como foi a transformação de uma simples criança a um psicopata sem escrúpulos. Ao mostrar que o Mal sufoca até mesmo a provável bondade que existe no coração de um menino traumatizado, Harris também mostra que o poder é, antes de tudo, uma escolha moral que independe do que feito contra uma pessoa e sim de como ela opta a reagir com o desejo de vingança ou com a aceitação da precariedade deste mundo. E, no meio disso tudo, há sempre a caçada atrás de um objeto misterioso e intangível que poucos conseguem definir. Será ela que faz o leitor perceber que talvez a grande lição de Thomas Harris aos seus leitores, sejam de alta ou baixa cultura, tem uma força benéfica muito mais efetiva do que os arabescos de Martin Amis — uma lição muito próxima dos conselhos de Auberon Waugh (sim, o filho de Evelyn), que uma vez escreveu: “A sociedade deve aceitar que o desejo de poder é uma desordem de personalidade por si só, como o desejo de ter uma relação sexual com uma criança ou de sentir o gosto de borracha embaixo de suas roupas. (…) A política, nunca canso de me dizer, é para deslocados sociais e emocionais, gente com inteligência limitada, que têm nada além de rancor em suas emoções. O propósito da política, para eles, é ajudá-los a superar essas limitações e esses sentimentos de inferioridade e compensar as suas inadequações pessoais na procura pelo poder. E isso sem dúvida causa muito mais infelicidade do que felicidade”.
Para irmos além de toda essa tragédia, talvez possamos terminar com uma exclamação importante de Ortega y Gasset — na verdade, um quase-imperativo que se parece muito com uma ordem militar — e que é um aviso de profunda raiz moral: “Alerta!”. Em um livro da maturidade chamado La caza y los toros, Ortega parte de um simples fato social do passado — o hábito da caça como um esporte que revela a capacidade humana de controlar ou dominar a nossa natureza violenta — para levantar voos vertiginosos de pensamento, e afirmar que a própria existência humana é uma contínua caçada em que devemos estar constantemente em atenção imediata, para capturarmos a essência das coisas reais e não nos deixarmos capturar por ilusões do passado, nem do futuro e do presente. Thomas Harris nos ajuda a fazer justamente isso: a ficarmos alertas com os falcões dentro de nós, simplesmente porque jamais poderemos dominá-los. E esta é a única regra que existe neste mundo devastado pelos canibais que nos governam.