O título deste livro (Herdando uma biblioteca) talvez seja uma falácia. Miguel Sanches, que eu saiba, não herdou biblioteca alguma. E o que ele quer neste livro, para a nossa felicidade, é falar da verdade verdadeira, depois de ter seduzido o leitor com um título enganoso, induzindo-o a pensar que Miguel Sanches é um filho natural de José Mindlin, que Miguel Sanches é sobrinho de Plínio Doyle. A verdade é que Miguel Sanches não herdou um só livro, a não ser uma Bíblia, o mínimo dos mínimos a se esperar de um va-nu-pieds, um ‘descalço’, saído de um lugar chamado Peabiru.
Eu sou, sem alarde, o antípoda do Miguel Sanches. Na casa dele, nenhum livro; na cidade dele, nenhuma livraria; na escola dele, ler como castigo. No apartamento de minha infância, em Bruxelas, toda a história livresca dos meus pais: os clássicos lidos no colégio; os Maigrets de praxe belga. Havia livros sobre o Congo, colônia nossa, para onde meus pais pensavam migrar, projeto abortado por uma bomba aliada, que deixou minha mãe paralisada de um lado. Mas os livros coloniais estavam lá, sobre elefantes, os homens brancos com chapéus desmedidos, ajoelhados ao lado deles (elefantes) no capim alto e seco. A duzentos metros de minha casa havia uma livraria, de vários andares, quieta, limpa, lúcida, vigiada por um destacamento de honestíssimas solteironas, que me acolhiam como filho coletivo.
Nada desta felicidade na vida juvenil de Miguel Sanches. Crônicas e crônicas relatam a ausência de matéria impressa. Mas a biblioteca, que eu herdei de verdade, me permite escrever alguns parágrafos só, e a ausência da biblioteca herdada por ele rendeu um livro, sobre livros, e que eu li numa sentada só.
Compõem este livro vinte e uma crônicas que se agregam em torno do tema ‘livro’. Certamente este bem não foi facilmente adquirido pelo autor, e são as lutas que ele teve que passar para alcançá-lo que formam o objeto destas crônicas. São 136 leves páginas que descrevem como o autor se relacionou e se relaciona com a matéria escrita. O atrativo deste livro talvez seja o fato de que através dele nos é mostrado ‘um homem’, um destino da maneira que se expressa através de uma ‘busca’.
A ‘busca’ é uma técnica literária tradicional na literatura ocidental, talvez na universal. Há a busca do Graal. A busca de Ulisses procurando a ilha natal. Eu não conhecia, até agora, uma Busca do Livro. Não generalizemos. Borges certamente fez sua longeva Busca do Livro, mas imaginamos o percurso do argentino como o andar de um velho cego entre as prateleiras da Biblioteca Nacional de Buenos Aires. Borges nasceu velho. Miguel Sanches ficou novo. Lembra Amadis de Gaula, ou melhor, Shrek. Ele vence dragões, pula abismos, enfrenta gigantes, para poder beijar o livro encantado.
Um ‘caráter’ se manifesta por meio dos incidentes que lhe acontecem, por meio das decisões que ele toma. Os ‘incidentes’ em Herdando uma biblioteca são todos encontros que Miguel Sanches teve com os livros. Há os primeiros livros de texto que chegam através da escola, depois os de uma livraria em Campo Mourão, depois os do colégio Agrícola, da Biblioteca Pública de Curitiba, das livrarias, dos shoppings. Há os ‘incidentes’ em que se fornecem esses livros, se escondem, se vendem, emprestam, negam, roubam, maltratam, conservam…
Não esqueçamos os lugares onde se encontram. Primeiro em armário irmamente compartilhados. Depois nas corriqueiras prateleiras, num quarto sem janelas, nas livrarias, nas bibliotecas ‘à sombra das raparigas tricotando’, nas casas particulares, salas comerciais sujeitas a aluguel. Herdando uma biblioteca descreve, como um livro de receitas, tudo o que é possível fazer com os livros. E é de uma leitura particularmente grata.
Miguel Sanches Neto, como uns poucos escritores, nos presenteia com a consciência de quanto do que pensamos é, sim, herdado. Graças a ele eu me tornei consciente de alguns dos meus preconceitos com relação a livros, dos julgamentos que eu não tinha submetido a nenhum escrutínio crítico.
Na sua ‘busca’, como um pícaro típico, Miguel Sanches defende o roubo de maneira dificilmente repreensível. Defende a decadência dos livros nas mãos dos leitores, e isso de uma maneira igualmente correta. Como Satie quis fazer em música, reinventando-a desde o zero, Miguel Sanches renova nossa relação com os livros, partindo da página em branco que era, e possivelmente ainda é, Peabiru.
‘O sangue corre onde não consegue andar’ — diz um provérbio belga. Não há nada bélico neste ditado, que só expressa que nada consegue parar alguém que tem realmente nas veias inscrito um destino. Nada previa que Miguel Sanches tivesse um futuro diferente do que os que ficaram em Peabiru. Nenhuma ação de governo ajudou, e algumas atrapalharam. Nenhuma fada, na forma de professorinha, tocou com uma régua mágica a infância do autor. Algumas também atrapalharam. E é vencendo estes percalços que Miguel Sanches conta a sua história. Como dizem os toureiros espanhóis: é criando obstáculos que se expressa a arte.
O livro de Miguel Sanches tem outras qualidades. O período da ditadura militar no Brasil foi, para mim que cheguei depois, algo abstrato. O impacto do dia-a-dia de uma cidadezinha fica aqui descrito irrefutavelmente.
Chame a atenção que este livro de crônicas se encontre concluído por uma bibliografia. O autor se tornou, com o tempo, um inegável professor universitário. Chama a atenção também que os livros, com a exceção de dois, são todos em português. Para a felicidade nossa, o professor universitário não quis depreciar Peabiru.