A busca de uma pasón

Resenha do livro "Voltar a Palermo", de Luzilá Gonçalves Ferreira
Luzilá Gonçalves Ferreira, autora de “Voltar a Palermo”
01/06/2002

“É difícil olhar naturalmente para as pessoas e as coisas dos trópicos por causa das cores que emanam delas. Estão em ebulição, cores e coisas. Uma lata de sardinha vazia, meio-dia, numa calçada, projeta tantos reflexos diferentes que ela adquire para os olhos a importância de um acidente. Impossível não prestar atenção. Lá, como só existem homens histéricos, as coisas tentam imitá-los” — Celine.

A paixão, por mais incansavelmente contada e revista que tenha sido em todos os segmentos artísticos, sempre é uma temática bombástica, que dá fraqueza ao leitor, que recorta corações já cortados e causa uma ebulição nos sentidos, como aquela lata de sardinha de Celine, largada em um meio-dia qualquer de algum país dos trópicos. É um assunto que dizem pedir certas sutilezas. Porém, a escritora e pesquisadora pernambucana Luzilá Gonçalves Ferreira preferiu deixá-las de lado no seu novo romance, Voltar a Palermo. E fez muito bem. No livro, ela rimou com perfeição “desesperación” e “pasión” ao som de um dramático “bandoneón”.

Em Voltar a Palermo, Luzilá conta os passos de uma professora brasileira que volta a Buenos Aires para tentar entender/resgatar a relação fulminante que manteve com um motorista de táxi portenho 20 anos antes. Como pano de fundo da tempestuosa relação, temos o auge das ditaduras militares que colocaram de joelhos toda a América Latina. Pelo enredo, passam histórias de desaparecidos políticos, repressão, vilões, heróis e, claro, o passo-a-passo da descoberta do “outro”. Tudo isso daria um bom tango ou bolero. Mas nesse caso rendeu mesmo um livro descaradamente apaixonado, que mexe sem medo no clichê do latino exótico. E o exótico, como sabemos, é um fetiche dos mais tentadores.

O tom da relação interrompida narrada por Luzilá tem lá suas cores bem fortes, como ilustra o seguinte trecho da obra: “Tu e eu, lo nuestro, como o dizias, e eu lamentava que em português nada existisse que correspondesse a este lo nuestro, que dizias com os lábios plenos, a língua tocando leve os dentes, como o fazem os espanhóis. Lo nuestro, Nino, que restou dele tantos anos depois? Voltei para te rever, Nino, mas voltei sobretudo para refazer, mesmo por uns poucos dias, essa coisa nossa, nem que seja na imaginação, que a imaginação também faz parte do real.”

Notória por seu trabalho em documentar a história de personalidades femininas poderosas e polêmicas, como na sua biografia de Lou Salomé (Humana, demasiado humana), Luzilá supostamente, em Voltar a Palermo, decidiu reelaborar sua própria trajetória para o leitor. Ela criou uma personagem que, de forma inevitável, soa como uma espécie de alter ego seu — criação e criatura são professoras universitárias e ambas, sim, trabalharam na Argentina na década de 70. A autora, no entanto, se esquiva de vestir a carapuça como um todo. “Há alguns pontos biográficos no livro, claro, mas a maioria foi inventada por mim. A corrida de táxi no qual a professora conhece Nino, por quem se apaixona, ocorreu de fato. Ele substituía seu pai, que no dia estava doente. Era um homem lindo, de cabelos pretos, de uma cultura incrível. Mas não é possível dizer que esse seja um romance autobiográfico de forma alguma. Sabia que as pessoas iriam me confundir com a personagem, mas isso não me incomoda de jeito nenhum”, conta Luzilá.

Voltar a Palermo foi escrito há cinco anos, durante um período familiar complicado para a autora — talvez por isso o tom constante de reavaliação da trama. “Foi um momento arrasador da minha vida. Eu escrevia à noite e isso me afastava dos problemas. A literatura acabou virando uma espécie de baía para mim, que me tranqüilizava”, diz.

Para Ítalo Calvino, uma cidade importa menos por seus monumentos, praças, do que pelas respostas que traz as nossas perguntas. Essa bem que poderia ser a epígrafe perfeita para Voltar a Palermo. Maria, sua personagem principal, decide retornar à capital argentina, porto perfeito para reelaborar seu passado e a conseqüente crise de identidade da maior idade que a sufoca, depois de encontrar um bilhete de 20 anos atrás, escondido nas páginas de um livro.

“Abri a janela e de súbito Buenos Aires inteira foi minha, sua paisagem cinza e seus cheiros me penetraram, como nos penetra o cheiro da pessoa amada. Era uma mistura de odores vários, gasolina e óleo queimado, fumaça e poeira, mas igualmente perfume de flor, beleza a se esparramar ao longo da Nueve de Julio, que nome tinham aquelas árvores? Um dia eu o soubera, quando ainda não havia deixado Buenos Aires e a cidade era como uma extensão do meu corpo” — diz Maria, no primeiro momento do seu reencontro com a capital argentina.

Luzilá saiu-se bem da nem um pouco simples tarefa de apoiar mais de 200 páginas de narrativa no maior lugar-comum da literatura, a paixão. Para isso, não teve qualquer pudor do exagero, da entrega, enfim, do brusco rompante sentimental que sua personagem se dispõe a encarar. Outro grande trunfo de Luzilá é a falsa impressão de mais paixão e menos técnica que está presente no romance. Ela sabe medir com precisão cada palavra, decisão ou declaração de amor da sua personagem, para não deixar a grossa calda do açúcar que respinga pelas páginas do romance passar do ponto.

Esse domínio narrativo da autora pode ser percebido na sua decisão de misturar os idiomas — português e espanhol — ao longo do texto, sem que o recurso (bastante perigoso em mãos menos treinadas) transpareça qualquer tom de exagero. Pelo contrário, há sentimentos que são encravados de forma inerentes a uma língua. Voltar a Palermo é sobre pasión e não sobre paixão, como um dramático tango portenho.

Voltar a Palermo
Luzilá Gonçalves Ferreira
Rocco
215 págs.
Rascunho