A busca por origens e a reinvenção de si mesmo são temas repletos de potencialidades e desdobramentos, sobretudo quando abordados de forma original, como faz o experiente autor Miguel Sanches Neto em Inventar um avô.
Desde as primeiras páginas, o romance foge da previsibilidade, ao apresentar três irmãos batizados com o mesmo nome — Antônio — numa homenagem feita ao avô paterno, sobre o qual pouco sabem a respeito.
O trio mora com a mãe em uma casa no Sul do país e vivencia uma dinâmica familiar incomum: o pai, ainda que morto, continua não apenas presente, mas também incontestável, uma vez que seus dogmas são relembrados diariamente, num misto de frases de efeito e superstições. A mãe, tão rígida quanto, transita entre a superproteção e a necessidade de ser adorada, ao mesmo tempo em que se coloca como frágil.
Os três filhos — chamados de Primeiro, Segundo e Terceiro por terem o mesmo nome — parecem, ao menos no início da narrativa, confortáveis com os papéis que ocupam. Temem novidades e, até mesmo, a possibilidade de serem substituídos.
Em pouco tempo, contudo, Terceiro — o personagem-narrador — demonstra interesse pela história do avô e dá início a uma jornada tão concreta quanto metafísica, na busca por qualquer fato que possa ajudá-lo a entender melhor quem era aquele homem que chegou ao Brasil vindo da Espanha no início do século 20 e que lhe empresta seu nome de batismo.
Assim, o protagonista se dispõe a romper o cordão-umbilical e a desrespeitar regras familiares já bem estabelecidas, como aquela que o proíbe de sair da cidade.
É a partir desse ponto que Terceiro se torna cada vez mais interessante, já que as diversas camadas que compõem o personagem vão aparecendo pouco a pouco, assim como as pistas sobre a história de seu avô.
Embora faça parte de uma família pouco convencional, Terceiro não é retratado de modo caricato, como se fosse um poço de ingenuidade ou uma tela em branco. O protagonista, aliás, tem uma forma bastante interessante de enxergar o mundo e de se relacionar com ele, sem deixar de lado sua aversão ao novo e a dificuldade de tomar decisões práticas, como perceptível nesse trecho:
Perguntei qual o meu assento e o motorista disse ser livre, criando uma dificuldade: saber onde me sentar.
É nessa mesma viagem, a primeira feita na busca pelo passado da família, que Terceiro conhece Anna, seu interesse romântico a partir daí. Desse momento em diante, passa a ser mais decidido, enfrenta medos e, pouco a pouco, se reinventa, livre de dogmas, ainda que perseguido por alguns fantasmas.
Por meio de pesquisas, chega à conclusão de que o avô teria vivido no interior de São Paulo, então viaja na busca por provas concretas de um passado que tenta, a qualquer custo, resgatar.
Terceiro tem medo
Dentre os muitos méritos alcançados por Sanches Neto em Inventar um avô, um dos mais relevantes é a capacidade de atrair os leitores para um universo próprio, cercado por absurdos dignos de Beckett ou Ionesco.
A obsessão repentina pelo avô, o controle estabelecido pela figura materna, o pai-fantasma e a intensidade imediata no relacionamento com Anna fazem todo o sentido nessa narrativa, justamente por ela flertar com o improvável desde o início.
Talvez por isso, os poucos capítulos que abordam a história do avô, desde a saída da Espanha até o seu casamento, sejam os menos interessantes, pois são convencionais e recorrem a um narrador onisciente para apresentar elementos que possibilitam melhor compreensão do passado da família.
Já em alguns pontos narrados por Terceiro, o romance provoca — no melhor dos sentidos — ao se aproximar do surrealismo, com toques que se assemelham àqueles dados pelo cineasta Ari Aster ao recém-lançado Beau tem medo, filme que também trata de uma família pouco convencional e tem como protagonista um peculiar introvertido com aproximadamente 50 anos de idade.
As semelhanças continuam na busca por um familiar do qual pouco se sabe, nas reações inesperadas de personagens e em questões que atravessam temas como a culpa, a insegurança e a própria existência.
E por falar em cinema, em seu novo livro, Miguel Sanches Neto mais uma vez se mostra bastante hábil para construir cenários de maneira eficiente e com a capacidade de síntese que tem se tornado uma de suas marcas registradas nas últimas décadas.
Retrato histórico
Também chama a atenção o evidente trabalho de pesquisa feito pelo autor, já que a obra é ficcional, mas se propõe a apresentar um panorama histórico da chegada dos espanhóis ao Brasil no início do século 20.
Dessa forma, Terceiro e seus irmãos se tornam representantes de diversos brasileiros que também sabem muito pouco (ou nada) a respeito de familiares que chegaram ao Brasil, trabalharam no campo, sobretudo no interior de São Paulo, e morreram sem deixar registros documentais de suas histórias.
Para além disso, a técnica narrativa, o enredo original e os capítulos curtos fazem do livro uma leitura rápida e profunda sobre um homem que busca o avô para poder encontrar a si mesmo.
Terceiro almeja deixar de conviver com o vazio, abandonar o egoísmo, exorcizar o pai, reestruturar a dinâmica familiar e, acima de tudo, compreender quem ele é. Não por acaso, parece acreditar, ainda que de forma inconsciente, que saber sobre o avô é se enxergar enquanto indivíduo, com seus próprios sonhos, desejos e obsessões.ra eterna.