Jane Austen é possivelmente a mais amada das escritoras inglesas. Inúmeras são as adaptações de seus romances para o teatro, televisão e cinema; ainda mais numerosas são as edições de suas obras, revisitadas e entusiasticamente glosadas geração após geração. Assim como William Shakespeare, uma de suas leituras preferidas, a autora de Orgulho e preconceito, Razão e sensibilidade, Emma e Persuasão é uma verdadeira indústria em 2014. Podemos descrever algumas de suas qualidades para compreender a persistência do fenômeno Austen: a mão leve para escrever personagens amplamente realizáveis na mente do leitor; a delicadeza com que apresenta os dilemas emergentes na tensão entre as normas sociais e a ética do indivíduo; a maestria no emprego da ironia, que faz rir e faz pensar; a técnica “teatral”, que concentra e agiliza os fios das narrativas nos diálogos — tamanha é a realização da arte de Austen que nem mesmo suas preocupações perenes, como a busca de uma conduta harmônica mediante a autodisciplina e o autoconhecimento e, como julgaríamos hoje, a supervalorização do papel moral e social do casamento, foram suficientes para diminuir o fascínio do público contemporâneo, certamente menos disposto aos ditames e receituários do agir decoroso.
Isso porque, em Austen, o que não passaria de moralismo em autores ineptos resulta de sustentada meditação sobre o tema da boa natureza diante da grande vertigem do tempo, e aí está uma razão para a dificuldade em estimá-la: se raramente lida com acontecimentos históricos, é por deliberadamente alhear-se deles, e não por desinteresse; se propõe valores dir-se-ia cristãos, não propõe necessariamente o cristianismo; se compreende que o novo século abre uma maior independência às mulheres, dando-lhes voz para protestarem o casamento arranjado segundo os interesses de classe, também não ignora que esse alvedrio possa dissimular como aparência valores que considera genuinamente bons; se defende sem alarde a liberdade da mulher de casar por amor, contestando um certo patriarcalismo instituído, não despreza que a mulher também possa enganar-se na estimativa de seus próprios sentimentos. É preciso relativizar a modernidade de Austen.
Na juventude, firmaram-lhe o gosto literário autores imersos no que poderíamos vagamente chamar de mundo da experiência, como Henry Fielding, o já citado Shakespeare e o singular Samuel Johnson, o qual diagnosticara, em 1750, uma literatura contemporânea formada pelos acidentes e eventualidades da vida moderna, registrados em periódicos e folhetins. Não é por acaso que Fanny Price, a heroína de Mansfield Park, sobre o qual terei mais a dizer em seguida, descobre uma das principais guinadas do enredo em uma notícia de jornal. A influência de Fielding, grande escritor cômico que compreendera que é na experiência, e não no receituário, que aprendemos o bem, se faz sentir sobretudo no volume Juvenília, reunindo textos de uma Jane Austen mal saída da adolescência (1787-1793), que a Penguin corajosamente lança no Brasil, em edição e tradução em tudo recomendáveis. Nas primeiras tentativas de ficção, compreensivelmente incoerentes, Austen mostra não apenas um talento cômico, como também um domínio superficial das convenções burlescas, que certamente aprendera com Fielding. Sobravam-lhe as intervenções do narrador no relato, as observações e as críticas; faltavam-lhe entretanto as intuições psicológicas que conferem ao burlesco o seu potencial ético, ao levar certos tipos humanos ao paroxismo justamente para desarmá-los e expô-los como fraude ou engodo. Essas intuições, é provável, Austen aprenderia a desenvolver com as filigranas técnicas dos romances epistolares de Samuel Richardson, como o popularíssimo Pamela, um verdadeiro best-seller europeu, adorado por figuras como Diderot, e o sofisticado Clarissa, que representa com enorme habilidade, em uma multiplicidade de vozes e registros, os jogos emocionais e conflitos de interesse na Inglaterra do século 18, na trágica história de uma moça que rejeita o noivado com um tipo detestável.
Sentimental
Nesses escritos de juventude percebe-se ainda uma franca predileção pelo sentimental, como era o caso da obra de Richardson e de outras figuras menores, mas populares à época, como Henry Mackenzie. Eventualmente Austen aprenderá a zombar do culto ao bom gosto, tão em voga no século 18, que tinha a função de educar a sensibilidade. A sua obra madura, parcialmente publicada na última década de sua breve vida — Austen morreria aos 42 anos —, substitui o sentimentalismo reativo típico de uma era emancipada, sob certos aspectos, pela valorização da razão, mas incapaz de realisticamente lidar com as mudanças em curso, por um estilo sóbrio, comedido, psicologicamente elegante e sagaz, que acusa também a leitura ponderada de um poeta austero como George Crabbe: econômico nas descrições de paisagens, ambiências e vestimentas; magnânimo, mas concentrado, na caracterização de estados emocionais; sutil ao resumir as impressões sobre as personagens, sem entretanto “entregar” o uso da ironia nos diálogos, dos quais Austen é um dos grandes mestres na língua.
Na grande tradição britânica, poucos autores conseguem representar uma consciência tão convincentemente quanto Jane Austen: suas personagens estão o tempo inteiro cientes de que são vistas e ouvidas pelos outros. Por isso, o cálculo se apresenta como antecipação natural, e tem lá seus efeitos cômicos. A desmesura parece não somente uma aviltação, uma falta de bons modos e sensibilidade, mas, acima de tudo, denota uma ausência de autoconsciência, falta grave. É, enfim, um estilo clássico, que toma os conselhos morais sobre continência e aplica-os à forma do texto. É curioso notar que um dos autores que Austen mais gostava fosse logo Laurence Sterne, autor de Tristram Shandy, um romance deveras cultuado quando redescoberto pelo modernismo mas que, no que diz respeito às experimentações formais, não parece tê-la influenciado significativamente. O teor de sua prosa é reflexivo, não digressivo; os trechos narrados são distribuídos em proporção junto aos diálogos, ainda que Austen faça, como na terceira parte de Mansfield Park, uma eventual concessão ao gênero epistolar, que interpola a condução da narrativa.
Charlotte Brontë, a autora romântica de Jane Eyre, e que divide com Austen esse intrigante volume de Juvenília, acusava-a incapaz de escrever diálogos em que os participantes não falassem como ladies e gentlemen. Muito já foi dito pela crítica a esse respeito, e há alguma verdade nessa contenção: Austen não escreve sobre tudo e todos. No fundo, ela escreve sobre o mundo que conhece, algo inteiramente condizente com o senso de proporção e sensatez que propõe em seus romances. Mas o que diria Brontë sobre o grosseirão Tenente Price, o pai biológico da protagonista de Mansfield Park, perfeitamente caracterizado em sua ignóbil incivilidade? E sobre o mordomo em Mansfield Park, que inesperadamente confirma-nos, em apenas uma breve intervenção, que a tia Norris é de fato tão desagradável quanto a imaginamos?
Senso da confusão
Brontë, espírito menos recolhido que Austen, congenitamente não se adequaria às restrições auto-impostas por esta, nas quais sua arte novelística se circunscreve tanto geográfica quanto demográfica e historicamente. Austen, contemporânea de Edmund Burke, William Blake, William Wordsworth e Samuel Taylor Coleridge, adentraria a vida adulta nos anos seguintes à Revolução Francesa, que tanto marcará as reflexões daqueles autores, mas ela não trata do evento diretamente. Tal atitude ela manterá mesmo quando, posteriormente, o temor de que Napoleão invadisse a Inglaterra torna-se um tópico caloroso de debate. Austen trata esses assuntos de maneira oblíqua. Não vejo aí demérito. Ora, se um dos impactos óbvios da Revolução fora a intensificação das inquietações e discussões sobre bem-estar social, privilégios e o papel do clero, podemos localizar, na pedagogia instalada no centro de seus romances, reações e respostas àquelas ansiedades. Em Mansfield Park, alguns dos melhores diálogos se dão entre o ponderado e calmo Edmund Bertram, prestes a ser recebido na ordem eclesiástica, e a moderníssima e assanhada Mary Crawford, de Londres, que desdenha, duvidosa, dos méritos de uma carreira no clero, cuja função social ela já não reconhece. Fica claro que, para Austen, a vida no clero é, de certo modo, um modelo para a vida em geral; não um modelo institucional, mas existencial, pois demanda de nós um esforço irrevogável para cultivar o bem, o senso de comprometimento, de sacrifício e de recompensa. Na casa em Mansfield, o patriarca Sir Thomas, autoritário e interesseiro, embora não desprovido de notáveis qualidades, aos poucos aprende a temperança: o bom governo já começa em casa, mas sofre a influência de seus membros; não é, portanto, unilateral, embora a hierarquia seja indispensável. Ao mesmo tempo, Edmund reconhece que o próprio clero comporta membros que parecem ter há muito abandonado tal missão, enquanto Crawford é forçada a admitir que sua experiência com clérigos advém mais do disse-me-disse do que da prática imediata. Há em Austen um senso da confusão; daí sua constância.
Fica claro aí que, se Austen apresenta os diálogos de maneira fluida e realisticamente convincente, ela também busca no leitor uma resposta ética enviesada, mas de maneira plurivalente. Seu virtuosismo com o diálogo é utilizado não para forçar ou incitar o leitor, mas para provocá-lo. Desde o início estamos dispostos a simpatizar com o arrazoado Edmund, que, entretanto, é apaixonado pela materialista e — do ponto de vista da caracterização — irresistível Mary Crawford. Esperamos logo que Mary mude de conduta, algo que Austen resolveria não por meio de um argumento pontuado, mas de um evento vivido; ou que Edmund perceba a sua tolice. Essa tensão permanece em aberto porque Edmund, afinal, é o amor secreto de sua prima, a heroína Fanny, que em tudo difere de Mary Crawford. A trama do livro é um affaire de família: o orgulhoso e impulsivo galanteador Henry Crawford, irmão de Mary, resolve se apaixonar por Fanny. Outra tensão se abrirá: embora prontamente rejeitado por Fanny, será que Henry se tornará uma pessoa melhor, merecendo assim o coração da protagonista? Um mérito do livro é dar espaço o suficiente para o leitor querer que os irmãos Crawford se tornem mais discernentes e menos egoístas, não por fazê-lo adotar piamente os valores representados por Fanny e Edmund, e sim porque estabelece com êxito uma relação de empatia entre os irmãos e o leitor. Se o leitor mais puritano compreensivelmente “torcerá” para Fanny e Edmund constituírem um casal ao final da história, os demais leitores, sobretudo os contemporâneos, desejarão acompanhar a transformação dos irmãos humanos, demasiadamente humanos, tendo razão Lionel Trilling, ao sugerir que nenhum leitor moderno admiraria Fanny Price, a despeito de suas qualidades eminentemente admiráveis: há um aspecto de constância que a experiência moderna, sob certo aspecto profundamente hostil ao idealismo, não consegue tanger. A metamorfose, cremos, afirma o tempo e, portanto, a vida; ao contrário da estagnação do eterno, essa dita nêmese do vivo. Fanny parece-nos desumanamente piedosa e caridosa. Mary Crawford tem mais em comum com as outras heroínas de Austen do que Fanny Price, que é a verdadeira protagonista de Mansfield Park.
Aqui podemos vislumbrar o veio utópico da visão de Jane Austen. De todas as suas obras acabadas, Mansfield Park talvez seja a menos popular. Nos últimos 50 anos, entretanto, esse romance de 1814 mereceu a atenção considerada de grandes críticos literários, como Q. D. Leavis e o próprio Trilling; desde a década de 90, de forças dos estudos culturais, como Edward Said e Geoffrey Hartman. Hoje o estudam com renovado interesse os scholars do pós-colonialismo e da narratologia. O livro é eminentemente legível e entretém tanto quanto os demais trabalhos de Austen, mas oferece alguns desafios técnicos ao intérprete da autora. Uma delas é a cena do teatro improvisado pelos moradores de Mansfield, que se desdobra no primeiro interstício do livro e que lembra, na maneira como revela as predisposições e inclinações das personagens, da famosa cena da ópera em Guerra e paz, de Tolstói. Com perícia Austen lida com os conflitos locais gerados pela montagem da peça “vulgar” Juras de amor, adaptação inglesa de uma obra de August von Kotzebue, o dramaturgo alemão favorito de Nietzsche, e cujo enredo prenuncia a própria ação do romance. Sir Thomas está em Antígua, cuidando dos negócios; Edmund, sabendo que o pai desaprovaria com veemência a representação de tanto despautério no próprio lar, luta para impedi-la. Fanny não tem objeções à peça em si, mas teme falhar no palco por “não saber representar”. Para os demais, trata-se apenas de um divertimento inconsequente.
Pedagogia cristalizada
As ressalvas contra a representação têm uma dupla face, e aqueles que pensarem em Platão não estarão delirando: em Edmund e Sir Thomas, há uma relação perigosa entre o conteúdo moral da representação e aquele que representa; em Fanny, a falta de talento para representar surge como grande qualidade normativa. Ela é sincera demais para representar, e é justamente por sê-lo que, em meio aos fingimentos, dissimulações e mentiras da trama, ela termina feliz e honrada pela família, pela sociedade e também pela autora. Por isso, o que era uma dialética da experiência nas obras anteriores de Austen, uma dança de pontos de vista, de oscilações entre resignação e fortidão, humilhação e coragem, aqui se assemelha mais a uma pedagogia cristalizada pelo método previamente empregado. Mansfield, idílica e isolada de Londres, por fim dá a impressão de uma sociedade ideal, onde reina a paz exterior e interior por meio da disciplina, da constância e do autoconhecimento. Em Mansfield, Fanny é uma boa sobrinha, mas em Portsmouth não é uma filha especialmente carinhosa e diligente; e é uma amiga sincera até sentir-se ameaçada. Não é tola, apesar da simplicidade, nem demasiado humilde, pois excessivamente consciente das próprias virtudes. Em última análise, um racionalismo contemplativo e psicologicamente arguto disputa com uma utopia conservadora a primazia na visão de Austen.
Mansfield Park é um trabalho clássico que merece ser lido e discutido. No caso de Charlotte Brontë, a publicação de sua Juvenília pede uma leitura à luz de suas obras da maturidade, sobretudo do soberbo Jane Eyre, que não encontra ocasião aqui. Mas cabe um comentário pertinente. Brontë, outro clássico inglês que goza de grande popularidade ainda hoje, compartilha com Austen a busca pela boa conduta, pela retidão em um mundo declaradamente estranho, mas o faz sem reprimir as lições do coração; seu idealismo é, portanto, de outra estirpe. Brontë já tinha o espírito do romantismo, ao contrário de Austen, que somente o adumbraria: a leitura de Byron e de clássicos orientais como As mil e uma noites, traduzidos e avidamente apreciados em inglês já no século 18, inspiraram-lhe o espírito aventureiro. Frances Beer, em sua excelente introdução à Juvenília, observa perspicazmente que a criatividade da jovem Brontë se manifestara na imaginação expansiva, mas profundamente solitária, ansiosa por encontrar mundos distantes, enquanto a de Austen se concentrara na ridicularização de tipos hipócritas, entediantes e desagradáveis. Mas seus gênios foram dificilmente compatíveis. A justeza dos arranjos humanos requer um compromisso que Brontë, à parte do pessimismo social e escapismo que nunca deixou de externar, só aceita com uma resignação filtrada por uma imaginação feroz, que distorce a proporção do real com uma abundância de sentimento. Para ela, o amor em Austen era um amor desapaixonado, estereotípico dos ingleses. Buscara representar o amor “com coração”. Por isso não pudera aceitar que Austen fosse chamada, como fora, de uma escritora realista, pois faltava nela justamente o coração, essa realidade inalienável. Em cada uma há, à sua maneira, na feliz formulação de Beer, a busca por uma “transgressão que não transgride”. São escritoras eminentemente inglesas nesse sentido.
A Juvenília deverá encontrar um público menor do que Mansfield Park e demais obras das duas autoras. Mas é uma publicação corajosa, que possibilita ao leitor zeloso uma visão privilegiada do desenvolvimento criativo de duas das maiores romancistas do século 19. A editora merece todos os lauréis por ter apostado nesse título, editado com rigor e critério. Cursos universitários de Letras e estudantes da língua inglesa terão incentivo para encomendar e estudar a edição de luxo da Landmark, em capa dura e bilíngue, oferecendo o texto em páginas espelhadas. Naturalmente, dada a extensão do romance, que soma quase 600 páginas na edição da Penguin, a versão bilíngue usa uma fonte consideravelmente menor, com espaçamento mínimo entre as linhas, e um formato de livro maior, o que dificulta o manuseio e a leitura, embora esse não seja um pormenor incontornável. Quanto à tradução nessa edição, embora ela de fato siga o texto original corretamente, peca ocasionalmente por fazê-lo de maneira rigorosamente fiel: a sintaxe às vezes parece artificial e, sobretudo nos diálogos, prejudica a fluidez do texto. Ademais, a revisão técnica poderia ter impedido certos erros de digitação, facilmente justificáveis e, portanto, perdoáveis no processo de tradução, mas incompreensíveis em uma edição de luxo. Nesse sentido, a edição da Penguin é preferível, apresentando uma tradução fluente e idiomática, e um texto limpo com notas elucidativas e bom aparato crítico. A publicação bilíngue é parte de uma louvável iniciativa da Landmark de disponibilizar clássicos da literatura nesse formato, um projeto de grande valor educacional, e torcemos para que seja executado com o esmero que demanda e que o leitor, carente de publicações acessíveis desse tipo, merece.
Mansfield Park
Trad.: Hildegard Feist
Penguin/Companhia das Letras
604 págs.