Charles Bukowski faz parte de um seleto grupo de autores que criou um estilo próprio. Indo além da tão propalada “voz literária”, com sua prosa e poesia, ele ajudou a dar uma guinada à simplicidade na literatura americana — ainda que tenha, em certo sentido, apenas “retomado” uma trilha já percorrida por nomes que admirava, como John Fante, o autor de Pergunte ao pó.
O mais curioso é que Bukowski desenvolveu esse estilo — econômico na forma; degenerado, sujo e melancólico no conteúdo — a partir de uma trajetória que é a antítese do self-made man americano. Porque o substrato de sua literatura é o fracasso, aquele sentimento de derrota que abate a alma quando a ressaca física e moral deixa em frangalhos qualquer resquício de esperança.
Claro que anti-heróis frequentam a literatura desde sempre, mas Bukowski adicionou a isso o tom autobiográfico que fez dele um autor imitado por gerações há décadas. E esse contraponto ao american way of life, fez também do autor um outsider entre seus pares. “I walk alone”, era um de seus mantras. A soma disso tudo o tornou um escritor diferente em sua simplicidade.
Cartas reveladoras
As recentes reedições e novas publicações da obra do autor no Brasil têm jogado luz a respeito de seu processo criativo, além de mostrar o escritor por ele mesmo em uma espécie de autorretrato.
Ficou famosa a sentença de Bukowski sobre o que havia de sua vida nos livros que escreveu: “Noventa e três por cento são autobiográficos, e os sete por cento restantes também são sobre minha vida, só que melhorada”.
Mesmo que isso tenha o poder de saciar a curiosidade dos leitores a respeito de sua trajetória pessoal, Bukowski nunca escreveu um livro declaradamente autobiográfico e que não estivesse encapsulado pela ficção, em forma de conto ou romance — ou ainda por meio de seus poemas.
São nas cartas enviadas a amigos, editores, tradutores e fãs que o escritor se revela por inteiro. Sobre a escrita traz uma reunião dessas missivas enviadas ao longo da vida de Bukowski: dos inglórios anos de recusa de editoras aos seus originais até o tardio reconhecimento de seu trabalho.
Mas ainda que o título sugira um conteúdo exclusivo sobre o ato de escrever, os textos vão além. Nas entrelinhas que se pode observar melhor a visão de mundo de Bukowski, o que também ajuda a iluminar pontos controversos de sua obra.
Mulheres
Nos últimos anos, o escritor passou por uma revisão crítica que detectou em seus livros misoginia e preconceito, com a mulher sempre tendo papel secundário e objetificado. E não se pode negar que há pontos constrangedores vistos sob a ótica da sociedade atual.
Por isso mesmo, as recentes edições dos livros de Bukowski, publicadas no Brasil pela HarperCollins, vêm com textos de apoio assinados por mulheres identificadas com o feminismo contemporâneo, como a poeta Angélica Freitas e a romancista Nara Vidal.
Em um desses textos, a escritora Clara Averbuck reafirma a importância da obra de Bukowski para seu trabalho de ficção, mas faz um mea-culpa sobre questões que lhe “passaram batidas”, sobre “estereótipos raciais e de gênero”. Em comum, essas escritoras brasileiras fazem ressalvas à obra de Bukowski, sem deixar, no entanto, de destacar sua relevância.
Mas já em 1985, Bukowski, àquela altura uma estrela tardia no mundo das letras americanas, sofria críticas sobre o teor controverso de seus contos. Naquele ano, o livro Fabulário geral do delírio cotidiano, segundo volume de uma trilogia de coletâneas de histórias curtas em que o foco é o mundo marginalizado de Los Angeles, foi retirado do acervo de uma biblioteca na Holanda.
Comentando o episódio em uma carta, o escritor disse que
se escrevo falando mal de negros, homossexuais e mulheres, é porque os que eu conheci eram assim. Existem muitos “maus” — cachorros maus, má censura; existem até homens brancos “maus”. Só que quando você escreve sobre homens brancos “maus”, eles não reclamam disso; e preciso dizer que existem “bons” negros, “bons” homossexuais e ‘boas’ mulheres?
“Minha antipatia é pela humanidade”, escreve em outro texto. “Também não gosto dos branquelos. E eu sou branquelo.”
Se isso basta para redimir o escritor, cada leitor dará seu veredito. O fato é que nessas cartas é possível ter uma visão mais próxima da realidade de quem foi Charles Bukowski. Porque a ficção é o que é: apenas ficção. E assim deve ser lida, ainda que no caso de Bukowski, ela sempre venha atrelada ao termo “autobiográfico”.
Nas cartas, pode-se ler os lamentos de um jovem Bukowski, sendo ignorado constantemente, mas que ainda assim continuava a escrever. Nesse sentido, Sobre a escrita serve como um antimanual para jovens autores: ali está narrada toda e qualquer dificuldade que um escritor pode (ou vai?) passar antes de se estabelecer no circuito literário — caso se estabeleça…
Charles Bukowski foi um obstinado, é isso que mostram suas cartas. Mesmo tendo uma vida repleta de conflitos: com a bebida, com as mulheres, com o dinheiro, com a própria imagem, com o mercado editorial… O fato é que, bem ou mal, ele sobreviveu a todos esses percalços.
Ressentimento
Por mais glórias que tenha, todo autor acha que o reconhecimento à sua obra é pouco. Com Bukowski não foi diferente. O sentimento mais latente que pulsa dos seus relatos é o ressentimento em relação à recepção de sua escrita e, depois, ao tardio reconhecimento. Bukowski é tomado por uma espécie de síndrome de vira-lata quando se compara ao primeiro time das letras americanas de seu tempo.
Ele reclama para um de seus tradutores sobre as alterações feitas pelo editor John Martin no livro Mulheres, seu quarto romance, em que o alter ego Henry Chinaski narra alguns relacionamentos amorosos após um hiato sexual.
“Você teria feito isso com William Faulkner?” E ele certamente não teria feito isso com um professor universitário, e não teria feito com [Robert White] Creeley, nem mesmo uma vírgula.
Acho que é o fato de eu ter vindo da classe baixa trabalhadora, da mendigolândia, que o faz pensar que eu não sei bem o que estou fazendo. Mas instintivamente eu sei, e ele deveria notar isso.
Os anos de ralação, no underground literário, deixaram Bukowski ressabiado e com o coração peludo. A vinculação com os beats, por parte da crítica, também o deixava irritado.
Nunca gostei dos beats, eles se promoviam demais e as drogas deixaram todos eles com paus de madeira ou os transformaram em escrotos… Eu sou da velha guarda, acredito em trabalhar e viver isolado.
Para além dos momentos tensos, Bukowski enumera e fala em detalhes sobre suas influências literárias, o que pode indicar mais um caminho para que o leitor entenda como foi forjada a literatura do autor.
Ao final, Sobre a escrita soa como uma conversa franca de um autor cuja maior característica foi ter revelado seus sonhos, fraquezas e qualidades sem nenhum filtro aos olhos de seus leitores.
Eu sou poeta, porra
Charles Bukowski ficou conhecido no Brasil nos anos 1980 por conta de seus livros em prosa, primeiro com os romances que fizeram sucesso em edições da Brasiliense e depois com coletâneas de contos em versões pocket da L&PM.
Mas nos Estados Unidos o esforço do autor era para ser conhecido e consagrado como… poeta — “A verdade é que não tô nem aí pra nada, e isso é uma pena: ando recebendo umas cartas de um jovem poeta dizendo que um dia com certeza seriei reconhecido como um dos maiores poetas do mundo. Poeta!”, diz o autor em um poema.
Talvez por conta do pouco apelo comercial do gênero, esse Bukowski lírico só começou a chegar ao leitor brasileiro depois que a fama do autor como prosador já havia se consolidado. E esse turning point se deu por conta de esforços isolados, de tradutores independentes como o curitibano Fernando Koproski e o editor catarinense Fabio Soares, que publicaram ótimos trabalhos sobre a poesia de Bukowski, quando ainda esse lado do Velho Safado era praticamente desconhecido do leitor brasileiro.
Por isso, um dos destaques da nova leva de obras do escritor publicada por aqui é a coletânea de poemas Arder na água, afundar no fogo.
O tomo abriga quatro livros com poemas escritos entre 1955 e 1973: Meu coração em outras mãos, Crucifixo na mão de uma caveira, Rua do Terror esquina com Via da Agonia, além do livro que dá nome à edição.
E aqui quem estava acostumado à prosa suja de Bukowski, com muito sexo e álcool, pode se surpreender ao encontrar um autor mais plural, ainda que guiado sob o signo da marginalização na vida e na arte.
Há poemas fortes sobre política, em que o niilismo bukowskiano aflora, sobre as artes (música e pintura, mais do que literatura), sobre o comezinho da vida, reflexões a respeito da condição humana, além de poemas mais abstratos, que flertam com o surrealismo.
Ou seja, um Bukowski que se deixa ir mais longe em suas reflexões e é menos literal do que na prosa. Nesse sentido, o poeta parece ser um artista mais completo e menos óbvio.
“Você é um fantoche do Estado, da igreja/ você vive um sonho do ego/ você tem que conhecer sua história, estudar o sistema monetário, perceber que a guerra racial já dura 23 mil anos”, escreve em queria derrubar o governo mas tudo que consegui foi a esposa de outro cara.
O tom rebelde, contestador, permeia todo o livro, sempre conduzido pela poesia em prosa, outra marca de Bukowski como poeta que influenciou muito a poesia que se faria nas décadas seguintes — com seus títulos extravagantes e sempre tão afirmativos.
Romances
Das três facetas de Charles Bukowski como escritor, a menos inspirada é a de romancista — ficando atrás do Bukowski poeta e contista. Seus dois romances mais aclamados, Cartas na rua e Mulheres, têm estruturas muito parecidas com a de seus livros de contos, com os capítulos curtos e muitas vezes autônomos.
Das narrativas longas reeditadas recentemente, Factótum e Hollywood guardam similaridades com Henry Chinaski errando “abençoado” pelos santos marginais sob a égide do desemprego, da miséria e do alcoolismo.
São livros pesados, principalmente Factótum, com sua melancolia deprimente — uma narrativa que guarda muitas similaridades com Fome, um dos livros mais conhecidos do norueguês Knut Hamsun, autor caro a Bukowski. É possível também ouvir ecos do “homem do subsolo” de Dostoiévski, e sentir o estado de espírito alterado pela depressão de Raskólnikov nos movimentos de Chinaski.
A literatura de Bukowski é introspectiva, apesar de os cenários serem sempre muito marcantes. Mas ela é pouco visual e muito intimista. O que não é bom para o cinema. E vejo que esse é um dos motivos para que as adaptações cinematográficas das suas obras tenham ficado muito aquém dos livros.
Esses filmes são pouco atrativos para quem não é leitor de Bukowski, então vivaram uma espécie de souvenir de sua escrita, um penduricalho — em alguma medida, foi o que aconteceu com On the road, um bom filme que está anos-luz da importância da obra literária de Jack Kerouac.
Hollywood é um romance mais divertido, em que Bukowski está leve depois de sua escrita começar a aparecer para o grande público. O livro narra a experiência de um autor que ganha um belo cachê para fazer um roteiro de cinema. Logicamente inspirado no que aconteceu com o autor quando escreveu o argumento de Barfly, filme dirigido por Barbet Schroeder e estrelado por Mickey Rourke e Faye Dunaway.
Bukowski foi um sopro de liberdade na literatura. Seu jeitão despojado e simples de narrar deu uma rasteira no pedestal que ancorava a prosa e a poesia de seu tempo. Mas para além do âmbito literário, essa narrativa está viva na maneira com que muitas pessoas — que nunca ouviram falar de Bukowski — se expressam nas redes sociais, em textos intimistas que narram suas próprias experiências de vida. E isso não é pouco.