A Bíblia “não é literária nem não literária”, afirma Northrop Frye, em seu estudo O código dos códigos: a Bíblia e a literatura (1982). Ou seja, ela possui marcas da literatura, mas não deve ser encarada como tal em sua totalidade.
Em suas passagens poéticas, a Bíblia é mais fiel à poesia do que é à história em suas passagens históricas. Ainda assim, não se pode considerar a Bíblia como um grande poema: além de longos trechos não serem poéticos, há passagens que esbarram no problema da ficcionalização (como as parábolas de Jesus, com criação de personagens por um outro “personagem”, o próprio Jesus).
O sentido histórico, por sua vez, não é claramente delimitado no relato bíblico, e, quando há, está a serviço da “profundidade ou significado espirituais”. Erich Auerbach, no Mimesis (1946), diz algo parecido: “a intenção religiosa condiciona uma exigência absoluta de verdade histórica”. Ele acrescenta que o narrador precisava acreditar na verdade objetiva da história que estava contando, já que a Bíblia não visa à realidade, mas à Verdade.
De acordo com o crítico canadense (em referência a Aristóteles), em vez de relatos históricos particulares, a narrativa poética bíblica é de caráter universal. E a história pela qual se interessa a Bíblia é a heilsgeschichte, a história da salvação com repetições das sequências míticas; e não a weltgeschichte, a história do mundo, na qual nada se repete. No relato bíblico, essas duas modalidades históricas ocorrem no mesmo tempo e espaço, mas constituem perspectivas diversas sobre a vida e jamais coincidem.
Assim, a mitologia da Bíblia não se relaciona com o real, mas com o possível. E, enquanto programa de ação para uma sociedade, não ignorando a história, pode ir de encontro a esta. É o caso dos mitos de libertação, como o da alforria de Israel das mãos opressoras dos egípcios. Depois de concluído esse relato na weltgeschichte, ele continua na heilsgeschichte, na forma do Egito simbólico, que pode oprimir, por exemplo, os negros escravizados na América do Norte no século 19. O relato bíblico sobrevive em encorajamento e promessa de salvação. Pode-se dizer que o mito central da Bíblia, a perdição do homem pelo pecado e futura redenção por meio do Messias (o herói da narrativa), é um mito de libertação, já que trata de algo a que a história do mundo não atribui credibilidade.
Northrop Frye aponta que é comum a tentativa de explicação dos mitos bíblicos por meio de interesses contemporâneos de explicação, critérios de verdade exteriores à Bíblia, típicos da linguagem descritiva (contemporânea, clara separação entre sujeito e objeto) e negados pelo próprio fundamento do texto sagrado. O chamado populismo cristão anti-intelectual reivindica a verdade literal do texto bíblico, refutada pelo crítico canadense, para quem “a Bíblia não podia dar importância menor ainda, pois não dava nenhuma, ao fato de alguém achar ou não uma arca no Monte Ararat: tais ‘provas’ pertencem a uma mentalidade muito diversa daquela, seja qual for, que concebeu algo como o Livro de Gênesis”.
Três estágios
Com a finalidade de descrever o contexto histórico da linguagem empregada na Bíblia, Frye, baseado no estudo de Vico sobre as idades de um ciclo histórico, comenta os tipos de expressão verbal em três estágios da linguagem: hieroglífico, hierático e demótico. O Velho Testamento foi escrito, em grande parte, no primeiro estágio, poético. Anterior a Platão, essa fase se caracteriza pela primazia da metáfora e a identidade entre o homem e a natureza; desse modo, as palavras, agrupadas em afirmações epigramáticas ou oraculares, eram revestidas de uma energia dinâmica própria, e as concepções hoje tidas como abstratas eram exatamente físicas, imanentes. No relato do Gênesis, por exemplo, as palavras exercem poder de criação — “E disse Deus: Haja luz; e houve luz” (1:3).
O teor epigramático do Velho Testamento também foi observado por Auerbach no ensaio A cicatriz de Ulisses, no livro Mimesis. O autor demonstra como o laconismo do relato do sacrifício de Isac, no capítulo 22 do Gênesis, possui um propósito significante. Nessa narrativa épica, somente as palavras dos interlocutores — Abraão, Deus, Isac e o anjo — são manifestas. O estilo é simples e direto. Na presença do divino, apenas os gestos essenciais de obediência de Abraão são descritos sucintamente, como se o servo de Deus controlasse suas manifestações vitais. Diferentemente da narrativa homérica, observada por Auerbach na primeira parte do ensaio, nessa passagem bíblica, como em várias outras, os sentidos são ocultos, advindos de um Deus solitário e sem forma que surge do desconhecido.
Os objetivos de cada texto são diferentes: o relato da Bíblia não se interessa pelo encantamento sensorial; a Odisseia, sim. Homero quer agradar o leitor, nutrir seu comportamento narrativo; a Bíblia pretende ser o texto de autoridade absoluta.
A narrativa da Odisseia apresenta cada acontecimento em um plano específico, explicitando todos os detalhes necessários à visualização da cena bem como à compreensão do caráter de cada personagem envolvido, sempre determinado e sem profundidade. Na Bíblia, porém, a multiplicidade da vida psíquica é latente, e o silêncio e os segundos planos da narração ocasionam uma tensão no texto. Os objetivos de cada texto são diferentes: o relato da Bíblia não se interessa pelo encantamento sensorial; a Odisseia, sim. Homero quer agradar o leitor, nutrir seu comportamento narrativo; a Bíblia pretende ser o texto de autoridade absoluta.
Na segunda fase da linguagem, que tem início em Platão e se estende até o século 16, a metonímia é a base da língua escrita, produzida por uma elite; já existem abstrações, e as metáforas estão a serviço de conceitos numa prosa contínua. Um único Deus era o receptor de toda a analogia verbal. E, por Ele ser perfeito, as premissas tinham de ser lógicas, lineares, irrefutáveis.
Como resistência ao aspecto transcendente da linguagem dessa fase, a partir do século 16 e, principalmente, do 18, firma-se a linguagem demótica, que, com sua produção horizontalizada, não favorece, em suas formas extremas, o desenvolvimento de questões religiosas, já que a palavra aponta para o mundo objetivo dela separado. Acentua-se, assim, a dicotomia entre ilusão e realidade: o objetivo tido como real; o subjetivo, como irreal; a fé não é mais lugar-comum. Nessa era, a ciência ocupa em definitivo o lugar da mitologia. Frye chega a dizer que “é impossível ler a Bíblia desse modo”, devido ao caráter metafórico e retórico do texto sagrado.
Uma das elocuções mais importantes do Novo Testamento — “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (João 1:1) — é uma demonstração clara de metonímia. Ainda assim, segundo Frye, a segunda parte da Bíblia se mantém próxima do Velho Testamento no que diz respeito ao emprego da linguagem, pois não contém argumentações racionais, nem proliferação de uso funcional de abstração.
O idioma linguístico do texto bíblico, kerygma (“proclamação”), mesmo que influenciado pelas características das três fases, não coincide com nenhuma delas. Esse idioma é marcadamente oratório, com destaque para os aspectos metafórico e empenhado, que se misturam e ocasionam o que se denomina de revelação.
Reiteração, figura
Frye chama a atenção para o aspecto reiterativo do mito na Bíblia, o que origina unidades estruturais, os arquétipos. No livro de Juízes, por exemplo, a ênfase recai na estrutura: conteúdos diversos são narrados em uma forma repetitiva mítica, para atingir o interesse moral. Importa mais o esboço da história que o conteúdo desta.
Assim como, nos Evangelhos, a prioridade não é biografar a vida de Jesus, mas apontar o que, nela, observa-se como cumprimento das profecias relacionadas ao Messias no Antigo Testamento — “E neles se cumpre a profecia de Isaías, que diz: Ouvindo, ouvireis, mas não compreendereis, e, vendo, vereis, mas não percebereis” (Mateus 13:14). A esses esboços antecipadores do que iria ocorrer no Novo Testamento Frye denomina tipos. Eles fazem da Bíblia um livro tipológico por excelência, pela abundância de reiterações.
Em Auerbach, a qualidade reiterativa do texto bíblico é atribuída ao conceito de figura, que dá nome a um de seus ensaios (1944). Após traçar um panorama das alusões ao termo na antiguidade e seus respectivos significados, Auerbach se detém no uso dessa palavra no mundo cristão, pelos padres da Igreja, que iniciam uma nova abordagem desse conceito, de Tertuliano a Santo Agostinho, e observa na Divina comédia o método da figuração. Nesse contexto, a figura é real e histórica e anuncia um acontecimento com as mesmas características. Similaridades ou um acordo concretizam a relação entre a figura e o que ela preenche. E a identificação do “cumprimento” da figura depende de intenções interpretativas, que reconheçam em um evento a prefiguração de outro.
Tertuliano, em seu Adversus Marcionem, estabeleceu o personagem bíblico Josué, do Antigo Testamento, como uma prefiguração de Jesus Cristo: Josué guiou os israelitas em direção à Terra Prometida, e Jesus guiaria o povo de Deus à eternidade; Josué-Jesus é, assim, a figura do eterno Salvador. O mesmo procedimento associativo foi feito pelo autor cristão com outros personagens e passagens da Bíblia. É importante destacar que o que Tertuliano chamava de figura não pode ser confundido com alegoria, que diferem uma da outra pelo peso histórico. A alegoria geralmente representa virtudes ou fenômenos históricos genéricos; a figura representa acontecimentos históricos definidos.
Avesso ao espiritualismo, Tertuliano atribuía ao Velho Testamento um significado literal e histórico, assim como as figuras também eram fatos concretos. No processo de figuração, o espírito só tem lugar como intelecto para promover a compreensão. As referências aos significados são abstratas, mas o preenchimento da figura, para o que ela se direciona, é carnal, uma realidade histórica.
Auerbach comenta que a partir do século 4, entre os escritores cristãos, a noção de significação profunda foi atrelada ao conceito de figura. Foi assim em Lactâncio, que identificava as figuras como fatos pequenos que indicavam fatos futuros muito maiores. Filo e Orígenes, por sua vez, foram exemplos de autores que deram uma explicação alegórica às figuras, com a finalidade de espiritualizar o caráter histórico do Antigo Testamento.
Já em Santo Agostinho, figura adquire, principalmente, a noção de prefiguração. Ele chegou a advertir os fiéis que evitassem a interpretação alegórica para que, em suas palavras, “não venhais a erguer um edifício como que no ar”. O Antigo Testamento, para o filósofo, é um conjunto de promessas temporais, já o Novo Testamento abarca as promessas eternas, sendo o último o preenchimento do primeiro. E duas grandes promessas perpassam as duas partes da Bíblia, primeiro ocultamente, depois de modo explícito. Os acontecimentos bíblicos, no pensamento de Agostinho, transcorriam no plano da eternidade, que pertence a Deus, no qual as figuras não estão restritas ao passado nem ao futuro.
Entre os primeiros entusiastas da Igreja cristã, as noções de figura e preenchimento nas Escrituras Sagradas foram importantes para a doutrinação. As epístolas escritas por Paulo estão repletas de interpretações figurais. Nesse caso, com o objetivo de contrapor a lei à fé, que seria o verdadeiro meio de salvação, retirando o caráter normativo do Antigo Testamento e enaltecendo o sacrifício definitivo de Jesus Cristo. Assim, Paulo atenuava o peso histórico do Velho Testamento e o atualizava em dramaticidade concreta, afirmando que somente o Novo Testamento possui significação definitiva.
Percebemos, assim, que tanto Frye como Auerbach dispensam um enfoque literário ao texto bíblico. E ambos levam em consideração o aspecto religioso desse texto, tanto em sua recepção como no contexto de produção.
As formas figurais também se contrapõem às formas míticas ou simbólicas. Embora ambas tenham a finalidade interpretativa, a figura se relaciona à interpretação da história, e o mito é uma interpretação direta da vida e da natureza. Por isso, os mitos se dão em culturas em que a relação entre homem e natureza é mais direta e o peso da história é menor.
Ao contrário da visão histórica moderna, na qual os acontecimentos são carregados de autossuficiência, na interpretação figural os fatos são garantidos e definidos pelo propósito divino. “Pois cada modelo futuro, embora incompleto como história, já está preenchido por Deus e já existe eternamente em Sua providência”, nas palavras de Auerbach.
Percebemos, assim, que tanto Frye como Auerbach dispensam um enfoque literário ao texto bíblico. E ambos levam em consideração o aspecto religioso desse texto, tanto em sua recepção como no contexto de produção. Entretanto, o olhar deles para a Bíblia não é dogmático, eles não fazem uma crítica religiosa. A crítica é literária, mas sem ignorar o fato de que a literariedade da Bíblia é um aspecto tênue devido ao propósito primeiro da confecção dessa obra: ser mensagem do Deus cristão para a humanidade. Essa postura, isenta de adequação religiosa, mas ciente do caráter religioso do texto, acarreta seriedade e importância profunda aos estudos dos dois críticos.