Noveleletas, de João Paulo Vereza, segue na trilha de uma literatura brasileira original. Com cinco pequenas novelas, sendo quatro delas ambientadas longe dos grandes centros, em flerte com um regionalismo inusitado e quase atemporal, as histórias apresentam personagens telúricos e sonhadores, não deixando de lado a relação de poder entre proprietário e empregados nem a religiosidade do homem do povo. Ao mesmo tempo, os textos transitam em meio ao que se costumou chamar de “realismo fantástico”, provocando desfechos em aberto, que torcem o trágico na direção de possíveis finais felizes.
A primeira história, O trem nascente, começa com uma cantiga, que retorna e se interpõe aos vários trechos da narrativa, como uma espécie de ciranda. Tal estratégia alivia os momentos de tensão e desvia de modo inteligente o foco do enredo a outros segmentos, revelando e ampliando fatos que pouco a pouco tornam o leitor prisioneiro do texto. A primeira parte, em forma de um falso diálogo (apenas um dos personagens fala e pressupõe a escuta de outro), apresenta um morador do lugarejo tentando negar informações a um recém-chegado que pergunta sobre Almirante, espécie de mandachuva local. Mas este narrador, com o intuito inicial de nada falar sobre tal personagem, elogia-o tanto que acaba produzindo um efeito contrário: deixa à mostra toda a crueldade do “senhor”, dono da única usina do lugar. Tal foco não é, no entanto, o que há de maior na novela, mas sim a habilidade do autor em transitar por vários tipos de narração, partindo da fala de personagens, poemas, monólogos interiores e narrativas em terceira pessoa.
Estratégias
O mistério da Barra Pequena é a segunda novela e, talvez, a mais pungente. Inicia-se em forma de diálogo entre um pescador e seu Vianna, o proprietário local, dono de terras e de quase todo o comércio da pequena cidade. É ele que cede o barco para a pescaria. Uma vez que chega sem os peixes, o pescador é acusado de bebedeira. Mas este teria testemunhado a aparição de um monstro no mar que lhe teria roubado todos os peixes. Entrega um bilhete onde está escrito “Deutilande”, palavra a princípio misteriosa, mas que depois revelará grande parte da violência que a história comporta. Com o desenrolar da novela, a versão do pescador se mostra próxima da verdade: apesar de não se tratar de monstro nenhum, é algo misterioso, que deverá permanecer oculto aos moradores da pequena Barra. A seguir, a história deixa a característica dialógica para ser narrada por um jovem órfão de mãe, cujo pai é alcoólatra e violento. O aparecimento de um padre, homem de intensa alegria, mudará o destino desse rapaz. O religioso contrasta a todos os princípios severos da Igreja, assinala o prazer como realização máxima e afirma que o ser humano já não carrega o pecado, mas, ao contrário, tem todas as possibilidades, desde que saiba apreciar o que a vida lhe tem a oferecer.
A narrativa empreendida pelo garoto soa plena de desejos e descobertas. Na verdade, torna-se quase um pequeno romance de formação. Primeiro é o amor pela menina Laura, depois, vendo-se só devido ao desaparecimento do pai, apega-se ao irmão mais velho. Mas este quer ser soldado e parte para a guerra — a Segunda Guerra Mundial. Por isso a pungência da história. Quase totalmente desamparado, com apenas a figura do padre a lhe insuflar que todo homem é responsável pelo seu destino, esse narrador quer descobrir o mundo. No microcosmo de sua Barra Pequena, se depara com os problemas que a vida impõe a todos os homens. Mesmo assim, não desiste, o amor é mais forte e ele empreende a sua aventura. No final, novamente o desfecho em aberto e a presença do realismo mágico amenizam a tragédia e proporcionam a nós, leitores, alguma esperança, em meio a uma narrativa de conflito e solidão.
A maçã do Chorume é protagonizado por um cachorro que já tomou parte da primeira novela. Mas o autor adverte que “não são histórias relacionadas”. Aqui, o cão aparece sozinho e faminto, anda pelas ruas da pequena cidade num dia de festa de santo em busca do que comer e acaba por se fixar numa maçã do amor. Mas Chorume, nas suas travessuras para surrupiar o doce, acaba por provocar um incêndio. Daí em diante começa uma intensa correria para capturá-lo. O narrador nos faz acompanhar o cachorro na sua fuga e na superação das diversas armadilhas que os moradores criam para lhe barrar o caminho. O que sobressai, entretanto, é a solidão humana, agora sob o ponto de vista de um animal.
Todo em versos, Canção de Mané Cotó traz à tona a violência da colonização portuguesa na sua impetuosa busca pelo ouro no Brasil. Embora narrado em terceira pessoa, o conto (podemos dizer assim) parte do ponto de vista de um menino negro, escravo fugido que esconde uma pepita de ouro. Mas a sorte não lhe é favorável. Ele se defronta com certo capitão do mato conhecido como Juba de Leão. Dom Moncorvo, um emissário em busca de indícios de ouro na colônia, sai como vencedor. O menino é o ladrão, mas não deixa de ajeitar as coisas para o nobre português. De acréscimo há a presença de escravos e mais escravos, soldados e índios, todos a serviço da Coroa.
A última novela é A perna do rei, única que destoa do universo telúrico que o livro aborda. Transcorre num transatlântico, durante um cruzeiro. A narrativa, ambientada nos dias atuais, traz como personagem principal um homem da burguesia que teima em discordar da esposa. A bordo, há um cantor muito famoso, chamado de “rei” pelos seus fãs. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. Contra ele trama um homem que permanece à sombra, cuja identidade só será revelada no final.
Oralidade
A leitura do livro de Vereza traz à memória o texto O narrador — Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, de Walter Benjamin, em que o filósofo discorre sobre a arte de narrar e compara o trabalho do narrador ao de um artífice: “a experiência que passa de pessoa em pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”. Nesse texto, Benjamin aponta a narrativa como uma experiência coletiva, pois “quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance é solitário”. O filósofo distingue a narrativa próxima à oralidade da narrativa de romance, dizendo que esta última já teria perdido a mística do narrador oral e refletiria a solidão e a fragmentação do homem moderno.
Percorrendo as diversas narrativas desse simpático livro não é difícil detectar a filiação literária de Vereza ao universo ficcional de Guimarães Rosa. Mas não se trata de imitação; o motivo e as questões aqui apresentadas remetem o leitor nesta direção.