À beira da oralidade

Novelas de João Paulo Vereza alternam com habilidade discursos narrativos e flertam com o realismo fantástico
João Paulo Vereza, autor de “Noveleletas”
01/11/2013

Noveleletas, de João Paulo Vereza, segue na trilha de uma literatura brasileira original. Com cinco pequenas novelas, sendo quatro delas ambientadas longe dos grandes centros, em flerte com um regionalismo inusitado e quase atemporal, as histórias apresentam personagens telúricos e sonhadores, não deixando de lado a relação de poder entre proprietário e empregados nem a religiosidade do homem do povo. Ao mesmo tempo, os textos transitam em meio ao que se costumou chamar de “realismo fantástico”, provocando desfechos em aberto, que torcem o trágico na direção de possíveis finais felizes.

A primeira história, O trem nascente, começa com uma cantiga, que retorna e se interpõe aos vários trechos da narrativa, como uma espécie de ciranda. Tal estratégia alivia os momentos de tensão e desvia de modo inteligente o foco do enredo a outros segmentos, revelando e ampliando fatos que pouco a pouco tornam o leitor prisioneiro do texto. A primeira parte, em forma de um falso diálogo (apenas um dos personagens fala e pressupõe a escuta de outro), apresenta um morador do lugarejo tentando negar informações a um recém-chegado que pergunta sobre Almirante, espécie de mandachuva local. Mas este narrador, com o intuito inicial de nada falar sobre tal personagem, elogia-o tanto que acaba produzindo um efeito contrário: deixa à mostra toda a crueldade do “senhor”, dono da única usina do lugar. Tal foco não é, no entanto, o que há de maior na novela, mas sim a habilidade do autor em transitar por vários tipos de narração, partindo da fala de personagens, poemas, monólogos interiores e narrativas em terceira pessoa.

Estratégias
O mistério da Barra Pequena é a segunda novela e, talvez, a mais pungente. Inicia-se em forma de diálogo entre um pescador e seu Vianna, o proprietário local, dono de terras e de quase todo o comércio da pequena cidade. É ele que cede o barco para a pescaria. Uma vez que chega sem os peixes, o pescador é acusado de bebedeira. Mas este teria testemunhado a aparição de um monstro no mar que lhe teria roubado todos os peixes. Entrega um bilhete onde está escrito “Deutilande”, palavra a princípio misteriosa, mas que depois revelará grande parte da violência que a história comporta. Com o desenrolar da novela, a versão do pescador se mostra próxima da verdade: apesar de não se tratar de monstro nenhum, é algo misterioso, que deverá permanecer oculto aos moradores da pequena Barra. A seguir, a história deixa a característica dialógica para ser narrada por um jovem órfão de mãe, cujo pai é alcoólatra e violento. O aparecimento de um padre, homem de intensa alegria, mudará o destino desse rapaz. O religioso contrasta a todos os princípios severos da Igreja, assinala o prazer como realização máxima e afirma que o ser humano já não carrega o pecado, mas, ao contrário, tem todas as possibilidades, desde que saiba apreciar o que a vida lhe tem a oferecer.

A narrativa empreendida pelo garoto soa plena de desejos e descobertas. Na verdade, torna-se quase um pequeno romance de formação. Primeiro é o amor pela menina Laura, depois, vendo-se só devido ao desaparecimento do pai, apega-se ao irmão mais velho. Mas este quer ser soldado e parte para a guerra — a Segunda Guerra Mundial. Por isso a pungência da história. Quase totalmente desamparado, com apenas a figura do padre a lhe insuflar que todo homem é responsável pelo seu destino, esse narrador quer descobrir o mundo. No microcosmo de sua Barra Pequena, se depara com os problemas que a vida impõe a todos os homens. Mesmo assim, não desiste, o amor é mais forte e ele empreende a sua aventura. No final, novamente o desfecho em aberto e a presença do realismo mágico amenizam a tragédia e proporcionam a nós, leitores, alguma esperança, em meio a uma narrativa de conflito e solidão.

A maçã do Chorume é protagonizado por um cachorro que já tomou parte da primeira novela. Mas o autor adverte que “não são histórias relacionadas”. Aqui, o cão aparece sozinho e faminto, anda pelas ruas da pequena cidade num dia de festa de santo em busca do que comer e acaba por se fixar numa maçã do amor. Mas Chorume, nas suas travessuras para surrupiar o doce, acaba por provocar um incêndio. Daí em diante começa uma intensa correria para capturá-lo. O narrador nos faz acompanhar o cachorro na sua fuga e na superação das diversas armadilhas que os moradores criam para lhe barrar o caminho. O que sobressai, entretanto, é a solidão humana, agora sob o ponto de vista de um animal.

Todo em versos, Canção de Mané Cotó traz à tona a violência da colonização portuguesa na sua impetuosa busca pelo ouro no Brasil. Embora narrado em terceira pessoa, o conto (podemos dizer assim) parte do ponto de vista de um menino negro, escravo fugido que esconde uma pepita de ouro. Mas a sorte não lhe é favorável. Ele se defronta com certo capitão do mato conhecido como Juba de Leão. Dom Moncorvo, um emissário em busca de indícios de ouro na colônia, sai como vencedor. O menino é o ladrão, mas não deixa de ajeitar as coisas para o nobre português. De acréscimo há a presença de escravos e mais escravos, soldados e índios, todos a serviço da Coroa.

A última novela é A perna do rei, única que destoa do universo telúrico que o livro aborda. Transcorre num transatlântico, durante um cruzeiro. A narrativa, ambientada nos dias atuais, traz como personagem principal um homem da burguesia que teima em discordar da esposa. A bordo, há um cantor muito famoso, chamado de “rei” pelos seus fãs. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. Contra ele trama um homem que permanece à sombra, cuja identidade só será revelada no final.

Oralidade
A leitura do livro de Vereza traz à memória o texto O narrador — Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, de Walter Benjamin, em que o filósofo discorre sobre a arte de narrar e compara o trabalho do narrador ao de um artífice: “a experiência que passa de pessoa em pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”. Nesse texto, Benjamin aponta a narrativa como uma experiência coletiva, pois “quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance é solitário”. O filósofo distingue a narrativa próxima à oralidade da narrativa de romance, dizendo que esta última já teria perdido a mística do narrador oral e refletiria a solidão e a fragmentação do homem moderno.

Percorrendo as diversas narrativas desse simpático livro não é difícil detectar a filiação literária de Vereza ao universo ficcional de Guimarães Rosa. Mas não se trata de imitação; o motivo e as questões aqui apresentadas remetem o leitor nesta direção.

Noveleletas
João Paulo Vereza
Record
192 págs.
João Paulo Vereza
Nascido no Rio de Janeiro, é redator publicitário, graduado pela PUC-Rio. Tem formação musical e é baterista de garagem. Mora em São Paulo desde 2006.
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

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