A barbárie na berlinda

Fenômeno de vendas no século 19, "A cabana do Pai Tomás" foi crucial para escancarar as atrocidades da escravidão negra
Harriet Beecher Stowe, autora de “A cabana do Pai Tomás”
28/05/2017

Se, ao olhar para trás, ainda nos espantamos tanto com as barbáries da escravidão negra, imagine o quão chocante seria a publicação de um romance que, em pleno século 19, denunciasse este sistema covarde, confrontando até mesmo o mais cristão dos escravocratas. Foi o que aconteceu em 1852, com a publicação de A cabana do Pai Tomás, da estadunidense Harriet Beecher Stowe, que acaba de ganhar nova tradução para o português.

O livro foi lançado dois anos depois da adesão de várias regiões dos Estados Unidos à chamada Lei dos Escravos Fugitivos, que proibia os americanos de oferecer abrigo a quem fugisse de seu senhor. O episódio fez repercutir o nível da desumanização a qual estavam submetidos os negros e é em meio a este pano de fundo que Stowe, uma das mais importantes entusiastas pelo fim da escravidão, escreve o romance que se tornaria uma das obras mais lidas da história.

Publicado inicialmente sob a forma de folhetins no jornal abolicionista The National Era, entre 1851 e 1852, A cabana do Pai Tomás apareceu como livro em 20 de março de 1852. No ano seguinte, a publicação da narrativa verídica de Solomon Northup, um homem negro livre que é escravizado por 12 anos na mesma plantação em que viveu o protagonista de Stowe, reforça as situações apresentadas na ficção da autora. Não por acaso, a autobiografia Doze anos de escravidão (1853) é dedicada a Harriet.

Ao mostrar as contradições humanas, sociais e teológicas do comércio de pessoas, a autora buscou desconstruir a visão da sociedade de seu tempo para a qual a escravidão era um mal necessário, um negócio indispensável. Ao longo do romance, casais de escravos se separam por conta de negociações de seus senhores, negras perdem seus filhos e, a todo o tempo, os envolvidos nestes contratos se esforçam para ignorar o caráter vivo de suas propriedades.

Mas o contraste entre a razão e o ridículo construído pela narradora é capaz de rasgar carapuças, endossando a comoção em prol pelo fim da escravidão — que, àquela altura, já estava em vias de acontecer por questões econômicas, uma vez que o Norte repleto de indústrias em ascensão buscava ampliar seu mercado consumidor interno e via na abolição da escravatura um caminho para isso.

A obra até hoje é lembrada como um dos estopins para o início da Guerra de Secessão (1861–1865), na qual o Norte abolicionista e industrializado enfrentou o Sul escravagista e agrário. Diz a lenda que o presidente Abraham Lincoln chegou a se dirigir a Harriet como “a pequena mulher que escrevera um livro capaz de iniciar uma grande guerra”. 

Estética
A cabana do Pai Tomás está centrada na história de um escravo passivo, bondoso e fiel, que, mesmo com o seu bom caráter, é submetido às mazelas do mercado de negros, sobretudo, a partir do momento em que seu dono, embora seja considerado um bom homem, o vende para poder quitar dívidas, o que obriga o escravo a viver longe da esposa, a cozinheira Mãe Cloé.

Mas o romance não se restringe à história de Tomás. Por vezes, outros núcleos ligados ao protagonista ganham destaque na obra, como o de George e Elisa, que buscam chegar ao Canadá para viverem livres e em paz com o filho. Inquieto e cético, George tem reações muito diferentes da de Pai Tomás frente ao que sofre. George é combativo, aventureiro e ajuda a equalizar a imagem do negro que nunca se rebela, figurada pelo personagem principal.

Aliás, este é um ponto que merece ser citado. Como uma obra romântica, A cabana do Pai Tomás possui vários personagens de caráter idealizado. Para muitos especialistas, a construção de Tomás teve grande influência de Rousseau, que, há não muito tempo, pregara na França que o estado natural do homem era a bondade plena.

Entretanto, a abordagem de Stowe chegou a revoltar muita gente que lutava pelos direitos da população negra e não apenas no século 19. Na década de 1960, por exemplo, militantes do movimento negro encararam o caráter servil e passivo de Tomás de maneira negativa. O personagem seria uma amostra equivocada de luta por estar preso à submissão e à abnegação suprema. 

Discurso político
Apesar das fortes histórias, é inevitável notar que o livro, em grande parte, lembra um panfleto abolicionista. A primeira marca ligada a isso é a conversa com o leitor. Com um tom mais próximo do coloquial, o narrador se aproxima de quem lê para atingir a consciência de seu público e convidá-lo a defender sua causa, ancorada em experiências de personagens que materializam as ideias em questão. Os longos diálogos de caráter político, filosófico e teológico acerca do tema também são exemplos deste fiel compromisso com os preceitos antiescravagistas. Neste sentido, A cabana do Pai Tomás é pretensiosamente uma importante obra política.

De família cristã, Stowe era extremamente religiosa. Filha do pregador Lyman Beecher, muito famoso à época, e da dona de casa Roxana Foote, a escritora defendia fervorosamente o fim da escravidão, questionando a moral religiosa hipócrita dos escravagistas que colocavam a Bíblia em favor de seus interesses econômicos. Para eles, ser escravo ou não era mera designação divina e, como vontade dos céus, deveria ser respeitada.

Mas Harriet contrapõe esse argumento com os princípios evangelísticos de igualdade, amor e respeito ao próximo dos quais os escravocratas estavam a milhas de distância.

Em A cabana do Pai Tomás, as igrejas aparecem como núcleos centrais de sociabilização da população negra, parte da cultura destas pessoas. O protagonista, por exemplo, é tão ligado ao cristianismo que se dedica arduamente a converter um dos seus senhores à religião, ironicamente, de origem branca. Oferecendo sua fé, Tomás oferecia o melhor que podia dar. 

Influência
A luta de Harriet pela libertação dos negros começara ao menos 15 anos antes da publicação de A cabana do Pai Tomás. Na ocasião, vários alunos de seu pai denunciaram publicamente as mazelas da escravidão e um grupo de escravagistas destruiu todas as impressoras de um importante jornal abolicionista. Após esta experiência, a autora escreveu uma carta ao jornal pró-abolição The Cincinatti Journal defendendo o fim do comércio de escravos. Por ser mulher, usou um pseudônimo masculino para dar credibilidade ao documento em uma época machista. A cabana do Pai Tomás veio logo depois e foi um sucesso. Em uma semana, vendeu 10 mil exemplares e as vendas chegaram a 300 mil em um ano. O livro foi traduzido para mais de 40 línguas e, só em 1953, ganhou duas versões em português. No Brasil, arrancou elogios de vários escritores, como Joaquim Nabuco e Machado de Assis.

Mesmo com o fim da escravidão negra, A cabana do Pai Tomás veio atravessando décadas como símbolo de resistência e liberdade, ganhando versões em teatro, cinema e televisão. Toda esta trajetória foi marcada por contradições de diversas épocas, que mostravam o quanto ainda se precisava avançar. Em 1969, por exemplo, a trama foi adaptada para a televisão pela Rede Globo e, embora, pela primeira vez, uma mulher negra assumisse um papel de protagonista, o Pai Tomás foi interpretado por um homem branco de cara pintada. Era uma das tantas máscaras que ainda precisavam cair.

A cabana do Pai Tomás
Harriet Beecher Stowe
Trad.: Ana Paula Doherty
Amarilys
671 págs.
Harriet Beecher Stowe
Nasceu em 1811, nos Estados Unidos. Seu primeiro trabalho foi um livro de geografia para crianças, mas sua mais importante obra é A cabana do Pai Tomás, publicada em 1852, que se tornou um dos maiores best-sellers da história da literatura. Durante sua vida, manteve correspondência com Lady Byron, Oliver Wendell Holmes e George Eliot. Morreu em 1896, aos 85 anos.
Lívia Inácio

É jornalista e já trabalhou em jornal, revista, TV e assessoria de imprensa. Publicou um livro de contos infantis e coordenou um projeto de incentivo à leitura para crianças durante três anos. Natural de Franca (SP). Mantém o blog Rodapé, na Gazeta do Povo, onde escreve sobre literatura.

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