“Meu padrão para a verossimilhança é muito simples e eu sempre o usei quando comecei a escrever: foda-se o leitor comum”, disse David Simon a Nick Hornby em uma entrevista realizada durante o final da quarta e o início da quinta temporadas de The wire, o seriado de TV produzido pela HBO entre 2002-2008, criado por Simon e o ex-policial Ed Burns — e que naquela época havia se firmado como o melhor drama policial feito na televisão americana. Nesta conversa, sem hesitar um milímetro em sua argumentação, Simon continuou a explicar para Hornby qual era o seu objetivo na hora da escrita: “Sempre me disseram que, durante os meus dias no jornalismo diário, eu deveria escrever para esse leitor comum. Eles imaginam que esse sujeito é algum assinante suburbano com duas-crianças-e-meia e três carros, um cachorro, um gato e um gramado bem aparado na varanda. Ele não sabe de nada e precisa que tudo seja explicado direitinho, para que a exposição dos fatos se transforme em um mata-prazer na hora de contar uma história. Foda-se esse cara. Que ele vá se foder no inferno”.
Este tipo de atitude sempre foi a marca registrada de David Simon, desde os tempos em que começou como jornalista no Baltimore Sun, cobrindo a seção policial da cidade que era a matéria-prima de vários resmungos do grande H. L. Mencken. Apesar de ter nascido em Washington e da sua ascendência judaica, Simon começou a ter um carinho idiossincrático por Baltimore e seus habitantes, independentemente da questão racial ou étnica. Ele via o lugar onde morava como um microcosmo que refletia não só o que acontecia com a América, mas, sobretudo, com o resto do mundo que se dizia “democrático”.
Essa visão foi aprofundada no seu trabalho como repórter policial e na obsessão meticulosa de contar uma história com todas as nuances possíveis — algo que não cabia mais na reportagem diária e que logo foi expandida em Homicide — A year on the killing streets (1991), um relato gigantesco de mais de 600 páginas que cobria o cotidiano do departamento de homicídios de Baltimore. O livro tornou-se um sucesso na lista dos mais vendidos, possibilitando assim a sua transformação para uma bem sucedida série de televisão realizada pela NBC, comandada pelos cineastas Barry Levinson e Paul Attanasio.
A passagem da literatura do new journalism para a feitura de roteiros cinematográficos foi gradual. Apesar de saborear as benesses de ter uma obra sua sendo exibida na sala de estar de cada americano, Simon ainda não via as possibilidades de contar uma história neste meio considerado predatório e comercial. Preferiu continuar no ramo das grandes reportagens e, em parceria com Ed Burns (um detetive que conheceu durante a pesquisa de Homicide), escreveu The corner — A year in the life of an inner-city neighbourhood (1997), em que aprofundava o procedimento do livro anterior, mas desta vez acompanhando a destruição de uma família que tentava sobreviver no corrosivo universo do tráfico de drogas.
The corner teria maior impacto do que Homicide na imprensa porque Simon e Burns lidavam com um tema polêmico: a derrota inerente na chamada “guerra contra o narcotráfico” promovida pelo governo americano. Mas ambos os livros se impunham pelo método e pela escrita talentosa que eram evidentes em cada linha. Com um estilo detalhista e minucioso, quase levado ao extremo da insanidade, essas duas reportagens faziam o leitor entrar em um processo de imersão do ambiente retratado e da linguagem que o refletia, dando a sensação de que testemunhávamos a existência de um mundo à parte que, contudo, se comunicava com o nosso por meio de conexões assustadoras e imprevisíveis. Se, em Homicide, acompanhávamos o cotidiano de sujeitos que tinham de lidar com o fracasso de impedir que o mal e o sofrimento atingissem os cidadãos comuns e viviam isso como uma vocação da qual não tinham nenhuma saída, em The corner víamos essa mesma derrota como algo típico de um sistema democrático que, por meio da sua busca pela igualdade, paradoxalmente deixava que outros cidadãos mais necessitados ficassem à margem de si mesmos e dos outros.
The wire conseguiu realizar algo antes impossível para quem queria contar uma história na televisão americana: desenvolver uma abordagem complexa dos problemas sociais em conjunto com o retrato ambivalente dos personagens — o que torna o conjunto inesquecível na memória do espectador.
Desespero e resistência
O sucesso de Homicide e The corner permitiu que Simon e Burns começassem a tratar a televisão como um veículo interessante para contar essas histórias de desespero e resistência. Com o resultado das boas audiências de Homicide na NBC, Simon conseguiu convencer a HBO para que The corner fosse transformado em uma minissérie de seis episódios. A aposta deu certo: apesar de não ter sido um sucesso de público, a crítica adorou o feito e o considerou “revolucionário”. E foi com essa “carta-branca” em mãos que Simon e Burns conseguiram a autorização da HBO — então nas nuvens devido ao fenômeno que se tornou The sopranos — para realizar o seu projeto mais ousado: The wire.
The wire é uma fusão do que Simon e Burns aprenderam em Homicide e The corner, mas com uma ambição dramática que não existia nos livros anteriores e nas suas adaptações televisivas. Afinal, agora estavam lidando no terreno da ficção. Partindo da fórmula do drama policial, eles tinham a verdadeira intenção de subvertê-la, ao expandir a galeria de personagens em uma espécie de “rede” (o significado real do título da série) que conectasse uns aos outros, para mostrar que, numa cidade grande como Baltimore, cada um dependia do todo e o todo dependia de cada indivíduo. Mas, já que este “todo” se encontrava corrompido pelas políticas sujas de seus governantes e burocratas, a pergunta que o seriado se fazia era ainda mais instigante: onde existiriam os “justos” que poderiam limpá-la dessa imundície sistêmica?
Assim, Simon e Burns montaram um plano detalhado de como seria a progressão dramática da série, muito similar a de um “romance total”, segundo a definição de Mario Vargas Llosa, em que cada temporada abordaria um aspecto da cidade. Na primeira, vemos as relações entre o departamento de polícia de Baltimore e o mundo do tráfico das drogas; na segunda, o universo oculto dos sindicatos portuários — e como o tráfico influenciava as decisões referentes ao trabalho dos homens que viviam nos portos; na terceira, a rede se expandia para as tramas ambíguas das campanhas políticas e para o problema insolúvel da descriminalização das drogas; na quarta, o drama se complicava com a história da falência educacional, mostrando que as crianças que não conseguiam vencer na escola pública se tornavam criminosos na escola da vida; e na quinta e última temporada, o alvo da vez era a imprensa, que acobertava todos esses dramas em uma mentira edulcorada em palavras vazias e reportagens que não tinham significado para aquele “leitor comum” que David Simon tanto desprezava.
No centro dessa teia intrincada que corria o perigo de se transformar em um gigantesco panfleto ideológico, Simon e Burns não se esqueceram do mais importante quando se conta uma história: os personagens. São eles que dão o calor humano necessário e provocam o interesse ao espectador, uma vez que este consegue se identificar tanto com quem está no lado dos “justos” — no caso, o grupo de policiais liderado pelo desequilibrado McNutlty, o bonachão Bunk, o diplomático Sargento Daniels, o genial Lester Freamon e a esperta Kima Greggs — como quem está do lado dos “marginais” — seja o traficante Stringer Bell, o justiceiro Omar Little ou o viciado Bubbles. Neste mosaico, temos também os políticos (como o oportunista Tommy Carcetti e o canalha Clay Davis), os meninos que são jogados como ovelhas ao matadouro (os inocentes Michael, Randy, Duckie e Namond) e até outros policiais, como Prez, que abandonou a força para ser professor na rede pública (igual a Ed Burns, antes de se aliar a David Simon) e que se recusou a participar do “moedor de carne” que se tornou o que, no fundo, é o grande personagem da série: a cidade de Baltimore.
Para conseguirem transformar essa audácia em algo coerente em termos dramáticos, Simon e Burns poderiam ter ido por um caminho fácil, mas, fiéis na intenção de mandarem o leitor e o espectador comuns para aquele lugar, resolveram experimentar de fato, usando e abusando de referências e técnicas literárias ousadas para os padrões habituais da televisão. Antes de tudo, decidiram por algo extremamente contrário para um drama policial: a utilização de um ritmo lento, em que, muitas vezes, o crime que impulsionará a trama e os personagens acontecerá apenas por volta do quinto episódio (um erro mortal para uma temporada composta de dez partes). Com sua finesse peculiar, David Simon justificou o uso desse procedimento comparando The wire com nada mais nada menos que o romance Moby Dick, de Herman Melville. “Quando você lê o livro de Melville, a baleia do título aparece somente depois de cento e cinquenta páginas”, disse ele em outra entrevista. “Até lá, aprendemos um pouco sobre o mundo dos marinheiros, sobre o cotidiano do navio Pequod. Quando a baleia finalmente surge, já estamos imersos naquele mundo e não temos como escapar da leitura. Quis fazer a mesma coisa com essa série.”
Reação subliminar
Além do ritmo lento, que faz o espectador aprender intuitivamente sobre aquela realidade peculiar, os dois continuaram a avançar em outro recurso dramático: o da elipse. Não só o crime principal acontece no meio da temporada, como ele é também narrado de forma indireta, isto é, sem nenhum ato espetacular ou bombástico jogado na cara do espectador — e sim informado por meio de um simples diálogo, como se fosse um evento banal, que acontece todos os dias, o que não deixa de ser verdade no cotidiano da delegacia de homicídios de uma metrópole. O efeito para o público é único, pois provoca a reação subliminar de querer saber mais, já que o espectador é obrigado a ser o próprio investigador da história que está sendo narrada e perceber que “todas as peças têm a sua importância” na lógica dramática elaborada com extremo cuidado por Simon e Burns.
Como se tudo isso não bastasse, a dupla decidiu ser ainda mais audaciosa ao se inspirar em dois gêneros literários aparentemente inconciliáveis: os gigantescos romances sociais do inglês Charles Dickens e as tragédias gregas de Sófocles e Eurípedes. Neste ponto, Simon anteviu qual era o elo perdido que conectava esses gêneros — o fato de que tanto Dickens como um Sófocles perceberam que, com o passar da História, a alma do ser humano seria uma mercadoria como outra qualquer, vítima de um terror institucional que se transformava num organismo autônomo que sempre precisaria de mais sangue, esmigalhando vidas na evolução da sua sobrevivência. Esta “ponte secreta” que ligava os romances sociais e as tragédias gregas era construída com a ajuda de uma equipe de roteiristas que, escolhidos a dedo por Simon e Burns, era nada mais nada menos que a elite do romance policial urbano, como Richard Price (uma das grandes influências na escrita jornalística de Simon), Dennis Lehane (o autor de Mystic river) e George Pelecanos (um dos raros pioneiros nos thrillers com contexto social).
Graças a essa “gangue” particular, The wire conseguiu realizar algo antes impossível para quem queria contar uma história na televisão americana: desenvolver uma abordagem complexa dos problemas sociais em conjunto com o retrato ambivalente dos personagens — o que torna o conjunto inesquecível na memória do espectador. Dessa forma, um sujeito como Brother Mouzone, assassino de aluguel com pretensões intelectuais, quer provar aos seus conterrâneos que o principal perigo nos EUA não é apenas o fato de ele ser um negro, mas sobretudo o de ser “um preto com acesso à biblioteca pública” (a nigger with a library card), capaz de matar qualquer um simplesmente porque assim quis o seu pensamento sofisticado.
Eterno dilema
Por meio deste personagem, mostra-se que a questão social do racismo, junto com a do tráfico de drogas, é apenas mais um reflexo do eterno dilema entre o indivíduo versus as instituições — por sua vez, o tema trágico por excelência — que será desenvolvido às últimas consequências quando, no final do seriado, percebemos que Simon e Burns descrevem a entropia do sistema democrático, retratando a sua caminhada rumo ao “estado de exceção” diagnosticado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben.
Neste cenário digno de uma terra devastada, ainda assim há motivos para acreditar em alguma esperança. Para David Simon e Ed Burns, a verdadeira tragédia do nosso tempo é deixar que a audácia do desespero (como indica o nome do blog pessoal de Simon) seja sufocada para que o indivíduo não saiba da existência desses problemas cruciais da nossa sociedade contemporânea — e, por isso, se veja impotente para alterar esse rumo.
Tal caminho não é inevitável. Em The wire, as pessoas se salvam deste “estado de exceção” graças à união pela comunidade, jamais pelas vias de um Estado paquidérmico e burocrático, e somente a escolha individual definirá o resto das suas biografias. É o que mostra o “centro secreto” deste grande painel literário — o viciado Bubbles (interpretado por André Royo). Ele atravessa o inferno das drogas de uma forma tão dolorosa que, ao encontrar finalmente um vislumbre da sua redenção, é de se perguntar se o seu desespero não teria sido justamente a chama que o motivou para lutar pela sua sobrevivência, mesmo no mais inóspito dos ambientes.
Eis o drama da história que o escritor dos nossos dias é obrigado a contar para si mesmo, seja nos livros, seja na televisão: o abandono do indivíduo diante do aparato que tenta administrar as incertezas da nossa humana, demasiada humana condição (um tema que Simon voltaria em sua mais recente obra-prima, a minissérie Show me a hero). Quem não perceber essa tragédia que faz parte do nosso cotidiano, sem dúvida enquadra-se naquela classificação do “leitor comum” feita por David Simon a Nick Hornby. E se ele não se emocionou depois de ter visto The wire, este sujeito merece um bom “foda-se”, pois, como diria Yeats, esta não é uma terra para os fracos de coração, principalmente para aquele que não reconhece o que acontece consigo mesmo e com os outros ao seu redor.
NOTA
Este é o terceiro texto de uma sequencia de seis ensaios que abordará como o sucesso das grandes séries da televisão americana está relacionado com o uso da literatura na criação dos seus enredos e de seus episódios. Em março, texto sobre Breaking bad, de Vince Gilligan.