A arte que brota do chão

Referências culturais de países africanos, da literatura à música, perpassam as narrativas de José Eduardo Agualusa
José Eduardo Agualusa, autor de “As mulheres do meu pai”
01/07/2024

Como qualquer leitor, tenho minhas preferências literárias. Não falo de autores ou livros preferidos, mas de determinados aspectos do literário que, quando estão presentes, me fazem mais interessado na obra que estou lendo. Não que uma obra precise ter essas características para que seja boa, mas são formas de fazer que facilitam meu apreciar, e fazem com que eu admire o autor quando bem-feitas. A prosa que sabe bem aos ouvidos, o uso consciente da metalinguagem, a coragem de abusar da forma quando é isso que o conteúdo pede para se enriquecer. Nada disso é trivial. São habilidades raras, desenhos de texto que exigem, e muito, do autor. Tudo isso engrandece uma obra a meus olhos e gosto. E nos textos de José Eduardo Agualusa, encontro não só esses elementos como vários outros, combinados com rara harmonia.

Meu primeiro encontro com o autor foi tão literal quanto fortuito. Aconteceu numa feira literária em Araxá, cidade pequena de Minas Gerais que, de uns anos para cá, tem sido palco de uma fantástica feira literária. Agualusa, que até então só conhecia de renome, foi anunciado como uma das grandes atrações do evento. Em minha visita, vi uma mesa redonda e gostei de sua participação. Perambulei pela livraria onde mais tarde o autor daria autógrafos, comprei uma de suas obras e li os primeiros capítulos ali mesmo. Queria descobrir se valia a pena pegar a fila enorme que já começava a se formar. Não precisei de muitas páginas para decidir que sim. O livro em questão era As mulheres do meu pai.

O título, em si, já me pareceu intrigante. Os capítulos variam com sutileza entre os pensamentos de um escritor e uma história possivelmente contada por ele, se deixando conectar com leveza e abrindo espaço para a interpretação do leitor.

De um lado, temos um escritor-personagem que, à medida que viaja e conhece gente e lugares, esboça a história de Laurentina, sua personagem. No início dessa história, a mãe de Laurentina morre, e como um de seus últimos atos confessa à filha que não é sua mãe biológica: Laurentina é adotada. Ela, então, voa para Angola em busca de seu pai verdadeiro, e descobre que o mulherengo músico que lhe teria concebido deixou filhos espalhados por toda a África em suas turnês. Laurentina decide, então, viajar pelo país, retratando em documentário todas as mulheres que tiveram filhos com seu pai.

O escritor/personagem nos conta, ainda nos primeiros capítulos, que a reviravolta ao fim da estória surge quando descobrimos que Faustino Manso, o suposto pai de dezenas de crianças, na verdade era estéril — talvez seu nome mesmo uma piada? Podemos acreditar nesse escritor ficcional, se quisermos, ou esperar para ver se é assim mesmo que a trama de Laurentina vai se desenvolver, se ele não mudará de ideia, se as personagens não desobedecerão a seus planos iniciais. Pode até ser que topemos com alguma outra reviravolta ao longo de toda essa estória.

É interessantíssimo ver o escritor-personagem tentando criar Laurentina, tentando conhecê-la. À medida que ele conhece outras mulheres e convive com elas, vemos que suas experiências exercem uma sutil influência nas caraterísticas da mulher que ele tenta criar, na qual ele passa grande parte de seu tempo pensando — mas a relação entre “realidade” e ficção não é direta.

Criador e criatura
Escritores passam a vida inteira respondendo o quanto de si existe em seus personagens, e a resposta nunca é “nada” nem “tudo”. Um personagem pode revelar uma experiência, um traço observado, uma ponta de si ou de como se entende um amigo. Se for inspirado em alguém muito próximo, ainda que seja o próprio eu, não raro porta traços de personalidade que nenhum conhecido tem — mas fazem todo sentido na trama. Se for um desconhecido completo, tende a ser a combinação de personagens lidos, traços retirados de inúmeras pessoas ou intuídos a partir delas, às vezes de modo inconsciente. Agualusa demonstra essa relação entre criador e criatura com maestria, nos deixando sentir a conexão entre o desconhecido e o familiar — mas sem exageros, nem transferências diretas de pessoa real para personagem. Ambos são complexos demais para isso. Mesmo que se perceba a linha tênue que os conecta, Laurentina não é espelho de ninguém — a não ser no sentido dos filmes, em que um ator se olha mas vê no lugar de seu reflexo uma pessoa que não reconhece bem.

Essa relação chama a atenção para uma outra: a que existe entre o próprio Agualusa e o personagem do romance que conta, em primeira pessoa, sobre a vida que levava quando criou Laurentina. Podemos imaginar que esse escritor é o próprio Agualusa, se quisermos. Ele nos deixa perguntar quais são as experiências verdadeiras que inspiraram o romance como um todo, e quais as ficcionais, criadas com cuidado para retratar a relação entre o autor e sua obra. Mais ainda, as mulheres que o escritor-personagem conhece parecem fazer parte de Laurentina de uma maneira que nos faz repensar o título do romance: são mulheres que, a partir de sua relação com o escritor, o ajudaram a conceber Laurentina. São, de certa forma, as mulheres de seu pai, e são descritas de tal maneira que nos fazem pensar se são verdadeiras, se os trechos em que Agualusa mostra sua interação com o escritor-personagem são mesmo ficção. Mas isso ele não responde, e é bem possível (talvez devesse dizer provável) que as experiências apresentadas nesses trechos também sejam completas invenções. Talvez isso seja verificável, mas gosto de me perder na dúvida e na imaginação dessa resposta.

Se o livro se reduzisse a isso, já seria mais que interessante, mas ele tem outros temperos. O pai de Laurentina, Faustino Manso, é um baixista que viajou por toda África trabalhando seu instrumento, e esse contexto permite que Agualusa explore não só as relações pessoais criadas nesse ínterim, mas também a relação de seu personagem com a música e com os países visitados. Mais uma vez, os mundos de personagem e criador se misturam, à medida que o romance insere Faustino na própria cena musical africana. Laurentina descobre que o pai tocou ao lado de grandes nomes do jazz e do blues, artistas excepcionais que, eles sim, são extraficcionais, músicos que de fato fizeram história na arte africana. Ainda tenho uma playlist das músicas que descobri no livro, com Fela Kuti, Duo Ouro Negro, Hugh Masekela, entre outros, muitos dos quais não conhecia, originários dos vários países nos quais tocou Faustino Manso. Além disso, o escritor-personagem que teria criado Laurentina e Faustino nos brinda com outras referências artísticas aos países em questão. Ao chegar em Moçambique, por exemplo, ele cita poemas de Glória de Sant’Anna, Tomás António Gonzaga, Rui Knopfli, entre outros. O próximo capítulo empresta o título a um romance do moçambicano Mia Couto, em mais um exemplo de como as experiências do escritor-personagem se manifestam de maneira sutil nas páginas que ele teria criado.

Além das referências artísticas, Agualusa também nos conta algo da história dos países visitados por Laurentina. Esse não é o foco do romance, mas subjaz à realidade assim como a história está sempre latente ao nosso redor. Ainda no exemplo de Moçambique, vemos comentários sobre como o país, após a independência, em 1975, passou a ser visto como uma espécie de utopia socialista, abrigando revolucionários do mundo todo. A abordagem de Agualusa é interessante: o romance não se aprofunda nessas questões, mas alguns acontecimentos suscitam comentários e pensamentos a respeito delas. Assim, a obra ganha raízes no chão do mundo extracapas, adquirindo o ar de realismo, de evento que realmente se associa à história.

A música, a poesia e o retratar sutil da história de países de África se unem a uma característica comum a outras obras de Agualusa: a complexa relação entre angolanos, portugueses, e os descendentes de ambos (é verdade que em As mulheres do meu pai a discussão de Agualusa não se restringe a Angola, mas o país do autor é, sem dúvida, o lugar de destaque). Vemos pessoas nascidas em Angola que tentam se apegar a um suposto pertencimento a Portugal graças a sua ascendência, tentando por meio disso afirmar uma espécie de superioridade. Vemos também portugueses que, depois de períodos por vezes incrivelmente difíceis de adaptação, passam a entender Angola como seu país, e a deixar o velho mundo de lado.

Teoria geral do esquecimento
Esse é o caso de Ludovica, personagem principal de outro grande romance do autor, Teoria geral do esquecimento, finalista do Booker Prize, em 2016.

Ludovica, mais conhecida como Ludo, é uma portuguesa que se muda para Angola quando sua irmã se casa com um angolano abastado. Ludo, apesar de uma vida de luxo, não consegue se aclimatar ao país, e a experiência fica ainda mais difícil após a eclosão de combates cada vez mais intensos pela independência de Angola. Ouvem-se rumores de que os comunistas virão atrás das posses de seu cunhado, mas antes que isso possa acontecer, ele desaparece junto a sua irmã, deixando Ludo sozinha, exceto pela companhia do cachorro Fantasma.

Após afugentar homens que tentam invadir sua casa, Ludo levanta um muro em meio ao corredor que separa o apartamento onde vive dos outros apartamentos no mesmo prédio, cortando por completo o contato entre si e a civilização. A enorme sacada, tão grande que chega a ter palmeiras, serve de horta para que ela sobreviva, comendo vegetais e capturando pombos que assa com o fogo de móveis e livros queimados e compartilha com Fantasma, o único ser vivo com quem tem contato. Isolada, Ludo usa até mesmo os diamantes que o cunhado deixara como isca para os pombos, que se sentem atraídos pelo brilho e caem nas armadilhas improvisadas pela portuguesa. Em meio a tudo isso, ela escreve um diário. Depois que se vê sem papel ou tinta, passa a encher as paredes da casa com letras de carvão.

Por décadas, Ludo sobrevive assim. Após a morte de Fantasma, segue sozinha. Os vizinhos falam numa presença mística, no máximo vislumbrada, naquele apartamento que ninguém sabe como acessar. Ao menos até que o menino Subalu consiga acesso ao apartamento, salvando Ludo da solidão e da fome.

Não sei qual é a impressão que a descrição acima passa, mas não tenho dúvidas: o livro é muito mais interessante do que ela consegue sugerir. Agualusa afirma, em nota prévia ao romance, que apesar de baseado em fatos reais e em diários aos quais teve acesso, o texto é “pura ficção”. Ainda assim, a ficção é poderosa, e é difícil não ler os trechos de diário que estão no romance como se fossem mesmo as palavras de Ludo (mais uma vez, isso deve ser verificável, mas prefiro não o fazer).

Não só isso, mas embora Ludo seja o nexo ao redor do qual o romance se organiza, ela é a protagonista de apenas uma das inúmeras histórias incríveis que encontramos ali. Temos sobreviventes de fuzilamentos, hipopótamos anões treinados para dançar enquanto cantam, inúmeras estórias interessantes e belas que se entrelaçam com a vida de Ludo de uma maneira insuspeita. Ao longo do romance, descobriremos como um pombo correio capturado por Ludo acabou por levar os diamantes que comeu a mãos insuspeitas; como um repórter investigado em desaparecimentos acaba escapando da morte; e como esse mesmo repórter acabará por revelar um grande segredo da vida de Ludo.

Se algo me entristece é que alguns desses personagens parecem ficar pouco tempo demais no palco. É um paradoxo interessante: fossem apenas personagens acessórios, descartáveis, como tantos romances têm, não acho que me sentiria assim. Se não passassem de ferramentas narrativas para que a estória dos principais seguisse o rumo que devia, talvez eu me sentisse menos incomodado em não os conhecer. Mas não: Agualusa faz de tantos personagens figuras interessantes, que me pego desejando deles uma estada mais prolongada. Como se faltasse ao romance um capítulo que me permitisse vê-los mais de perto.

Assim, ao concluir a leitura, desejo o contrário do que Ludo busca na maior parte do romance: um pouco mais desse sabor que a Angola de Agualusa e seus personagens me deram a conhecer. Mas não de imediato. Autores como Agualusa gosto de ler aos poucos. Afinal, é uma tristeza quando procuro outros romances deles, e descubro que acabaram.

As mulheres do meu pai
José Eduardo Agualusa
Tusquets
336 págs.
Teoria geral do esquecimento
José Eduardo Agualusa
Tusquets
192 págs.
José Eduardo Agualusa
Nasceu no Huambo (Angola), em 1960. É autor, entre outros, de A sociedade dos sonhadores involuntários, O vendedor de passados, pelo qual venceu o Independent Foreign Fiction Awards, Os vivos e os outros. Em 2017, recebeu o International Dublin Literary Award pela edição em língua inglesa de Teoria geral do esquecimento.
Bruno Nogueira

É autor de Grito distante (romance) A síndrome do impostor (contos).

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