Preste atenção: se você vivesse num país em que 50 milhões de seus 180 milhões de habitantes são miseráveis; em que 13,6% da população acima de 15 anos é considerada analfabeta (mas no Patropi considera-se alfabetizado quem consegue escrevinhar seu nome); em que cada habitante lê em média 1,8 livro por ano (mas os livreiros trabalham com um mercado de 26 milhões de pessoas que lêem quatro livros por ano cada); em que as pessoas gastam mais com cigarro, perfume, cabeleireiro e manicure do que com livros; levando tudo isso em consideração, você ainda assim se arriscaria a escrever um livro? Claro, ninguém nesse país escreve livros para viver deles. Escreve porque gosta e acha que tem algo diferente a dizer, algo que ou ainda não foi dito ou que já foi, mas de outra maneira. Assim, felizmente — para aqueles que lêem —, os quixotes literários continuam em sua batalha, apresentando-nos seu trabalho.
Este mês temos dois novos romances frescos, os primeiros de seus autores. E, descontado isso e o fato de ambos também trabalharem para jornais, nada mais pode ser dito sobre ambos. Claro, sem esquecer a coragem de quererem ser escritores naquele país descrito logo acima.
O primeiro livro da safra é A paixão de Amâncio Amaro, do pernambucano André Laurentino. Em linhas gerais, ele conta a história de três personagens que são ao mesmo tempo cômicos e trágicos. Cômicos porque são real e genuinamente engraçados, de uma graça ingênua, aquela que comove por mostrar o quanto uma pessoa sem inteligência pode ser inocente. Mas trágicos porque sua graça vem da falta de condições de serem mais inteligentes, mais espertos. Cômicos, pois se vêem em situações por vezes bizarras; trágicos, pois neles se vê o quanto vale pouco a vida humana atualmente.
Amâncio Amaro é um garoto com mais de 50 nomes, uma homenagem de gosto duvidoso dada por seu pai quando de seu nascimento. Tal profusão de nomes prejudica-o de diversas formas. Primeiro ele concentra enormes esforços mentais para tentar relembrar todo o seu nome. Isso para nunca parecer mal-educado ao não responder os outros que eventualmente poderiam estar lhe chamando. Ou como coloca melhor Laurentino, “o menino crescia sem saber quais das coisas que ouvia eram ou não parte do seu nome, de onde adquiriu o hábito de virar a cabeça sempre que ouvia um grito”. Nada que cresça dessa maneira pode vingar.
Outra protagonista é Maria da Imaculada Conceição, dita Culadinha. Ela espera um príncipe encantado, mesmo que não faça a menor idéia de como ele seja. Em uma ocasião, confundiu-o com um cachorro. Culadinha não faz nada, a não ser esperar. O terceiro protagonista do livro é José Aurino Curió, um homem que vive eternamente disfarçado para não ser descoberto. Em comum entre os três, o fato de estarem à procura de si próprios, tanto fora quanto dentro de si. E o fato também de terem uma lógica de pensamento peculiar.
Laurentino coloca os seus personagens nesse universo literário definido como sertão brasileiro, sem nunca com isso delimitá-los a esse universo. Com uma linguagem lírica e às vezes poética, chegando até mesmo a ser metalinguagem (“Caminhou sem rumo e sem pensamentos. Deu por si quando estava na subida para o Brejo das Contendas. Como andou Amâncio Amaro neste parágrafo de três frases!”), Laurentino nos conta um belo drama humano, sem ser piegas, usando com sabedoria diversos tons de voz — alegria, tristeza, graça, desgraça — e compondo uma história que dá gosto de ser lida.
André Laurentino nasceu em Olinda, em 1972. Atualmente trabalha como redator de publicidade e colunista do Guia do Jornal do Estado de S. Paulo. Laurentino já colaborou em programas do núcleo Guel Arraes da Rede Globo.
Futebol
A segunda estréia em romance é da jornalista Clara Arreguy. Segunda divisão é sua primeira incursão nesse campo, já que ela havia escrito antes um livro de memórias, Fafich (Conceito Comunicação), e participado da coletânea de crônicas esportivas A bola que rola (RHJ, 2003).
Em uma frase, Segunda divisão é a história da decisão fictícia do Campeonato Brasileiro da segunda divisão entre o Santa Fé, time mineiro, e o paulista Arapiara. Clara escolhe um período de tempo bem limitado — com início às 23 horas da véspera do jogo até o momento logo após a sua decisão — para fazer um amplo relato do futebol brasileiro. E escolher dois times fictícios da segunda divisão — mas que representam tantos times pequenos que granjeiam pelo país — torna a narrativa de Clara um instantâneo menos glamouroso do esporte nacional, em que o dinheiro é pouco e o esforço é grande.
Na prática, Segunda divisão é uma coletânea de pequenos retratos de todos os personagens envolvidos na decisão. Há os dois jogadores ex-campeões do mundo pela seleção; há os jogadores medianos que nunca conseguirão jogar em um time de destaque; há as promessas que um dia pode ser que venham a brilhar; há os jogadores entregues ao vício e o juiz cuja única torcedora é a mãe; há os técnicos esforçados e os “professores” que tentam ensinar ludopédio aos jogadores; há a repórter que sonha em um dia ter seu próprio programa, enfim, há todo um enredo de personagens que representam todos os boleiros que não estão sob os holofotes da mídia.
Não é necessário dar o resultado final do jogo, nem que ele importe. Interessante é acompanhar as emoções desses personagens, pois mais que falar de futebol, Clara fala de vidas humanas e de como elas se relacionam com esse mundo de promessas de riquezas quase instantâneas que é o futebol. Usando uma linguagem que em muito se parece com a crônica, Clara consegue desviar o foco dos aspectos táticos (ou “cháticos”) do futebol para falar de gente. E gente é a mesma em todo lugar, com seus sonhos e desejos e fantasias e aspirações. Assim, mesmo quem não gosta de futebol pode aproveitar os dramas humanos descritos por Clara.
E a autora, mineira, jornalista e editora de cultura do Correio Braziliense, usa a linguagem jornalística para deixar o texto direto, acessível. Nada de “pedaladas”. Clara parte para o drible seco e para o arremate a gol. E mesmo lançando mão de todos os clichês possíveis do mundo do futebol, inclusive aqueles que não agüentamos mais ouvir na televisão ou no rádio, Clara consegue deixá-los fluidos e soltos. Pode parecer implicância, mas chega uma hora em que o uso do “futebolês” se torna demasiado, e gostaríamos que o futebol não fosse tão cheio de clichês, de “é a gente tamos preparados, o professor orientou o time, vamos fechar a defesa e atacar no contra-ataque e, se Deus quiser, vamos ganhar”. (Será que o outro time é muçulmano, judeu, ateu ou budista? Ou Deus torce para alguém?).
Outro incômodo são as três orelhas do livro, escritas por três pessoas diferentes. Na orelha um, a verdadeira, está um texto da editora-executiva do programa global Esporte Espetacular. Na contracapa, um texto do Tostão. E no interior, um posfácio — que já é uma resenha — de Marcelino Rodrigues da Silva. Precisa tanta gente para referendar o livro? Não precisa, ele é bacana por si só.
Enfim, dois novos livros, dois novos romances, um muito mais poético, outro mais realista, que fazem a gente ter esperança de que a situação daquele país descrito lá no começo possa ser diferente um dia. Pelo menos, quixotes lutando há aos montes, felizmente. E se todos fossem como Laurentino e Clara, a luta seria muito mais prazerosa.