Na casa de Sênior, Júnior dorme, Júnior acorda. Um dia, acabou a pilha do relógio da cozinha. Outro dia, acabou a luz: o relógio da sala pisca e mostra sempre a mesma hora. As frases sucedem-se rápido, os fatos repetem-se, às vezes idênticos, às vezes um pouco modificados. Marca-se assim uma cadência, um ritmo implacável que acompanha a desintegração do personagem principal e do mundo que o cerca.
O protagonista desenha obsessivamente, com uma caneta Bic, figuras que ilustram uma fração de seus transtornos. O livro A arte de produzir efeito sem causa, de Lourenço Mutarelli, transforma-se assim em um objeto um pouco diferente de um romance usual. Os grafismos do autor, atribuídos ao personagem, compõem e moldam a narrativa. O apelo estético do livro ultrapassa o texto e faz lembrar a obra de Mutarelli, em quadrinhos, que antecedeu sua experiência com a escrita de romances (a associação da imagem deste autor a romances se consolidou, para mais gente, e ultrapassou as fronteiras dos leitores de quadrinhos, com a adaptação para o cinema de seu livro anterior, O cheiro do ralo).
No início da narrativa, o desajuste de Júnior parece ter uma explicação social. Depois de abandonar o emprego e o casamento, ele vai para a casa do pai, Sênior, que aluga um quarto para Bruna, uma jovem estudante de artes. Sênior compreende a situação difícil e cuida do filho. Oferece, como possível, condições emocionais e materiais para que Júnior se recupere.
Conforme o tempo passa, o desajuste do protagonista torna-se mais agudo. Em diversos momentos, fica evidente sua dificuldade em dividir os espaços e conviver. Torna-se mentiroso e traiçoeiro, embora ainda guarde algumas qualidades com as quais o leitor pode simpatizar. Neste momento, as relações entre os personagens, em particular os divertidos diálogos que têm entre si, apresentam um sistema de valores em que o convívio social parece mais bem avaliado pela narrativa do que o isolamento.
No entanto, logo fica evidente uma força externa para governar a vida dos personagens, algo misterioso e intangível. Júnior passa a receber, pelo correio, caixas anônimas contendo objetos e mensagens com sentido difícil de decifrar. Essas aparições fantasmáticas acompanham a corrosão do personagem em um ser com enormes dificuldades de comunicação. Ele não consegue mais elaborar pensamentos em linguagem porque não consegue encontrar palavras que expressem seus estados internos ou o mundo.
Desse modo, arma-se uma perspectiva trágica em que a vida social é valorizada, mas que não pode ser atingida apenas pela escolha dos indivíduos, na medida em que elementos que escapam do controle determinam o destino dos personagens. Falha a explicação do desajuste social simples. O mundo do personagem, apresentado no livro, parece mais com uma doença física que tem conseqüências comportamentais.
Vale dizer que a decadência trágica do protagonista não é acompanhada apenas pela apresentação de valores destrutivos. Como já foi dito, a experiência coletiva e não utilitária entre os personagens é descrita de um modo que a valoriza. Ao avesso, a decadência de Júnior é acompanhada com sua cada vez mais aguda incapacidade de se relacionar.
Um dos elementos do texto que destoa da perspectiva trágica é a personagem Bruna, a estudante de artes. Ela, em alguns momentos, consegue subverter a dificuldade de comunicação de Júnior tanto pelo diálogo despretensioso quanto pelo apelo estético. Com ela, quando a experiência coletiva não é suplantada e instrumentalizada por algum interesse individual, Júnior obtém doses de boa convivência. A arte, figurada nesta personagem, valoriza a experiência comunicativa e o tempo presente, e interrompe, ainda que apenas por uns instantes, a tendência destrutiva que governa as ações do protagonista.
O enunciado do livro desdobra-se, assim, fruto de dois motores que não se excluem: a visão fatalista segundo a qual a decadência se impõe indiferente às vontades, e a valorização das atividades humanas em torno da vida coletiva, da comunicação e da arte.