A arte da conversação

Flora Süssekind utiliza rascunhos, cadernos, apontamentos de traduções para estudar a poesia de Ana Cristina Cesar
Flora Süssekind, autora de “Até segunda ordem não me risque nada”
01/03/2008

Olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas.
(Ana Cristina Cesar)

Até segunda ordem, não me risque nada, de Flora Süssekind, traça uma detalhada análise crítica sobre a produção literária de Ana Cristina Cesar. Foi poeta, tradutora, pesquisadora e ensaísta, cuja vida e obra foram interrompidas, precocemente, com o suicídio aos 31 anos de idade, num momento de intensa criatividade artística e intelectual. O ensaio de Flora Süssekind chama a atenção para a necessidade de uma releitura da poeta “não só como ‘drama autobiográfico’”, mas, “especialmente tendo em vista material autoral tão particular quanto o rascunho, a verificação do processo de adensamento crítico por que deveria estar passando o seu método de escrita no início da década de 80”. Ou seja, ao utilizar como objeto de estudo rascunhos, cadernos, apontamentos de traduções, “poesia-em- vozes”, desenhos, rabiscos, correspondências e fragmentos, dá um tratamento privilegiado ao processo de produção, no qual cada traço, enquanto letra ou risco, tem um papel construtivo e significativo na obra como um todo.

Esta discussão é de fundamental importância, pois, com uma abordagem aparentemente despretensiosa, possibilita o movimento de tornar público caminhos tão particulares da escrita, seus abismos, labirintos, fragilidades e linhas de força.

O ensaio, escrito originalmente em 1989, como introdução a um livro de Ana Cristina Cesar, que não se viabilizou na ocasião, traz agora, quase duas décadas depois, as reflexões sobre a subjetividade, suas contaminações e trocas efetivas dentro do universo lírico e ficcional, numa relação direta e ao mesmo tempo forjada com e pela experiência. Arte, artifício, construção “em vozes” que se projeta, se encadeia e tece a teia-tecido do texto literário. Neste sentido, o poema tem um corpo e dentro dessa corporalidade materializada por letras sobre uma folha branca, de seus espaços e vazios, emerge, “a se perder de vista”, a incorporalidade de um sujeito que se confronta com a busca compulsiva de expressão e sentidos, que lhe escapam. O tom e o caráter íntimo que caracterizam seus poemas são escolhas estéticas e não, propriamente, o reflexo de uma intimidade genuína. Como explica Ana C., em debate, sobre crítica e tradução a respeito de seus diários: “Aqui não é um diário mesmo, de verdade,… /aqui é fingido, inventado, certo? Não são realmente fatos da minha vida. É uma construção”. O tom confessional, os dramas íntimos, não são realmente fatos da vida, não porque não se queira, “é que a intimidade… não é comunicável literalmente”. Ou, seja, “se você vai ler esse diário fingido, você não encontra intimidade aí. Escapa…” Configura-se, portanto, uma tensão entre arte e vida, entre sujeito e experiência estética, comunicação e incomunicabilidade.

O ensaio estrutura-se em quatro breves capítulos: A arte da conversação, Diários de escrita, Exílios, verbetes e Pictografia. Na primeira parte, Flora enfoca a poesia de Ana C. enquanto uma “arte da conversação”, compreendendo que “o seu movimento em direção própria também parece passar por uma série de diálogos propositamente explícitos com técnicas literárias diversas”. Esta perspectiva dialógica, alimentada pelo trabalho de tradução de outros poetas e da crítica literária, é que acaba imprimindo a marca de singularidade na produção artística de Ana C. São escolhas estéticas claramente definidas na discussão crítica e implementadas na elaboração artística, que apontam para uma dicção própria, contudo em processo permanente de questionamentos e construção.

Produção cotidiana
Na segunda parte do livro, através do estudo dos muitos cadernos, recortes, folhas soltas, pastas de rascunhos, é traçado um registro da produção cotidiana da poesia, em suas variedades de versões a partir de uma mesma matriz, com cortes, supressões e acréscimos. Por outro lado, apresenta-se uma multiplicidade de procedimentos estéticos de construção textual, que apesar de serem muitas vezes diversos e opostos, não se excluem e são utilizados como exercício prático da experiência do fazer poético. Esses procedimentos vão desde o texto breve, o poema-minuto, por exemplo, marca da geração 70, até texto maiores e trabalhados na construção de imagens, rimas e ritmo que reportam a recursos utilizados por Drummond, Bandeira e outros. Tudo isso, como destaca Flora Süssekind, funciona como “exercícios de adestramento do próprio artesanato literário”.

Em Exílios, verbetes, retoma-se a discussão da tradução, especialmente da poesia, e observa-se, através das anotações, recursos e procedimentos implementados por Ana Cristina Cesar, nos quais se “evidencia o imbricamento das duas atividades”, a de tradutora e a de poeta. Os verbetes utilizados para ordenação e seleção vocabular das traduções, também se torna um procedimento de produção da poesia. Temáticas, referências explícitas ou implícitas e vozes dos poetas traduzidos, passam a tomar parte e constituir suas própria composições poéticas.

A última parte do livro, Pictografia, dramatiza, em linhas gerais, um diálogo entre desenho e escrita verbal. Destaca como a poesia de Ana Cristina Cesar utiliza-se, ou melhor, aproxima-se do burburinho de vozes, sugeridos na idéia de riscos, rabiscos, rasuras, rascunhos. Daí surge o título do livro: Até segunda ordem, não me risque nada,frase deixada ao léu num desses cadernos”. A partir da análise de materiais que reúnem as duas linguagens, estabelece-se uma discussão sobre o efeito desse diálogo na constituição do sujeito e do seu esforço de expressão poética. “O sujeito e a imagem-em-abismo e sua rasura em intensificada progressão: é uma (auto)corrosão que se ensaia nessas últimas aproximações entre literatura e desenho”, apontando tanto para a possibilidade de construção quanto de dissolução desse sujeito. Esta última parte pode parecer um tanto hermética para o leitor. Isso porque só a linguagem ensaística verbal parece não dar conta da complexidade da discussão. Talvez tivesse ficado mais simples se o aspecto gráfico, ou seja, os desenhos e as disposições descritas fossem incluídas na edição do livro, como exemplo mais palpável e compreensivo da relação que está sendo posta em foco. A capa do livro, muito bem realizada, prometia uma atenção especial para esse aspecto, mas no geral foi insuficiente para municiar o leitor nessa discussão.

No geral, Flora Süssekind aponta, a partir do seu estudo sobre todo esse material, “uma espécie de tensão constante entre poesia-da-experiência e auto-reflexão, entre dicção aparentemente ‘muito pessoal’ e postura quase sempre ‘em guarda’ — estrategicamente velada por uma sucessão de outras falas, aspas, citações —, sobretudo quando se trata de esboçar, nos seus textos, um sujeito”.

Processo de construção
Seguindo a lição da autora lida, estudada, de certa forma, traduzida pela leitura crítica, Flora Süssekind, antes de mais nada, olha “muito tempo o corpo de um poema”, ou da escritura de Ana C., “até perder de vista o que não seja corpo”, ou seja, entre outras coisas, a subjetividade e seu processo de construção. Observa as evidências da escrita do outro, como este é apropriado e recriado a partir de uma postura de escuta e de vozes alheias. A análise do registro do trabalho de tradução de Katherine Mansfield, Emily Dickinson, Eliot, entre outros, e o rascunho de poemas escritos na mesma época evidenciam como isso se dá. É um sujeito que se desdobra e multiplica em muitos, e como o Tupi tangendo o alaúde, de Mário de Andrade, se declara um sujeito lírico que se constrói em abismo: “os suspiros que dou são violinos alheios;/ eu piso a terra como quem descobre a furto/ nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos/”. Diferenciando-se, contudo, na medida em que não há a pretensão de uma formulação identitária fixa, com a unificação de todos os trezentos ou trezentos e cincoentas eus, como em Mário de Andrade: “mas um dia afinal eu toparei comigo”. Em Ana Cristina Cesar, a precariedade, a incomunicabilidade do que é íntimo, em busca de expressão, mesmo que fingida, é um dado no qual se trabalha por deslocamentos de sentidos que se sobrepõem e carrega o sujeito lírico “para um inevitável descentramento”, como observa Flora Süssekind. Por outro lado, a apropriação do discurso alheio não está carregado de conteúdo irônico e paródico, como se via, predominantemente, nos modernistas das primeiras décadas do século 20.

Optando por uma linguagem que incorpora a conversação, reproduzida, marcada, mencionada, por muitas vozes, inclusive a do cotidiano mais próximo, esse sujeito se configura em sua singularidade, apesar de lançar mão de violinos alheios. Descobre-se e revela-se como se furtasse de outros seus mais profundos suspiros. Esta postura, de certa forma, antropofágica, herdada dos “modernistas heróicos”, como os definia Antonio Candido, implicitamente, pode ser sugerida pela análise de Flora Süssekind, sobre a obra de Ana C. Com o estudo dos cadernos de rascunho e as anotações do trabalho de tradução, principalmente, evidencia-se que há todo um exercício de apreensão de técnicas e recursos de outros poetas e ficcionistas e incorporação desses artifícios estéticos e dessas vozes em sua própria dicção. Em Correspondência completa, Ana Cristina Cesar deixa claro que o ato de escrever exige esforço e causa desconforto: “Escrever é a parte que chateia, fico com dor nas costas e remorso de vampiro”. Em outros termos, poderemos nos reportar a uma tomada metalingüística da epígrafe desta resenha, quando a cisão, entre dentes, do que é corpo e do que não é corpo no poema se evidencia pelo “filete de sangue nas gengivas”.

Até segunda ordem não me risque nada
Flora Süssekind
7Letras
66 págs.
Flora Süssekind
Crítica literária e pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa. Autora, entre outros, de A voz e a série e O Brasil não é longe daqui.
Vilma Costa

É professora de literatura.

Rascunho