Brasil, 2022. Depois de um segundo turno acirrado, e de uma manobra política, genial e inesperada — Sarney Neto aceita Jesus como seu legítimo Salvador e assume o lugar de vice na histórica Campanha —, as eleições presidenciais são vencidas por eles: Eduardo Cunha e Sarney Neto, membros da nova e poderosa coligação conhecida como Fraternidade Evangélica. Surpreendentemente a economia, que se encontrava em ruínas, começa a prosperar. A chamada Lei do Dízimo, que obriga o pagamento de 15% sobre todas as transações lícitas e ilícitas, faz o Brasil progredir. O bom humor toma conta da população brasileira e o “risco país” despenca influenciando assim os países vizinhos a seguirem os mesmos passos da Nação Doutrinadora.
Começaria assim o novo livro de Michel Houellebecq se ele morasse no Brasil? Seria ele perseguido, crucificado, e também jurado de morte, apenas por vislumbrar ideias tão plausíveis e possíveis, ou acabaria homenageado por um enredo de alguma Escola de Samba carioca? Teria ele que fugir desesperadamente do Brasil, escondendo-se nos cassinos e nas famigeradas festas da nova Cuba (lembrem-se, estamos em 2022) ou cairia no total esquecimento? Ficção, fábula ou prenúncio?
Nesse seu novo e polêmico livro, Michel “Cassandra” Houellebecq apenas mudou alguns personagens, teceu novas redes de influência e contravenções, e pressentiu algo extremamente verossímil. Escritor erudito, satírico e controverso, desponta com mais um best-seller no cenário mundial, não somente pela qualidade literária e pelas referências filosóficas e teológicas, mas também pela arte da adivinhação. Concomitante com o lançamento desse seu livro ocorreu o terrível e midiático assassinato dos chargistas do semanário Charlie Hebdo. O mundo ficou estupefado e o livro explodiu.
Submissão mostra em alguns momentos a genialidade desse autor. Ao discorrer, por exemplo, sobre a vida, a filosofia e a obra de Joris-Karl Huysmans, ou ao narrar algumas cenas de sexo, encontramos certas belezas e sutis digressões, características de uma legítima obra de arte. O narrador e protagonista do livro — apolítico, apático e sereno, mas sempre atento às belas e insinuantes mulheres — dialoga encantadoramente com o desregrado e confuso escritor, Huysmans (que acabou se convertendo e glorificando o cristianismo em sua trilogia Là-bas (1891), En route (1895) e La cathédrale (1898)). Porém, em outros momentos, esse mesmo autor menospreza demais o leitor, sendo muito professoral, didático e banal, ato que talvez diminua o brilhantismo do livro.
Uma parte importante do texto, a questão da conversão, é tratada como uma oportunidade de alfinetar a Academia e seus supostos intelectuais. O protagonista, aposentado compulsoriamente pelo novo Regime por ainda não ter abraçado Maomé como enviado único de Deus, reflete profundamente sobre as implicações práticas da aceitação da religião vigente. Para que essa aposentadoria não se estenda a toda intelligentsia, vários catedráticos acabam acochambrando suas teses e consagrados conceitos filosóficos (como os de Nietzsche) em prol de um benefício pessoal.
Esses supostos grandes professores da Sorbonne, que aceitaram as “virtudes” da conversão, acabam sendo premiados com altos salários e moradias fantásticas, o que, concluem, ser merecido pelo seu notório saber (será que algo assim também acontece com os acadêmicos e intelectuais brasileiros? Ou com os políticos? Ou com os cantores e artistas?). Além disso, além de toda mordomia e glória que a Fraternidade oferece, esses novos “esclarecidos” ainda ganham de brinde a permissividade poligâmica. Antes encoberta, e vista por pudicos com maus olhos, a relação entre professores e alunas é institucionalizada e regulamentada. Jovens ninfetas são obrigadas por lei a seguir “a profissão do lar” virando bibelôs e objetos sexuais desses enganosos sábios franceses. Seria isso algo realmente utópico e surpreendente?
Submissão merece ser lido e discutido. Não pela sua qualidade literária, mas pelas questões contemporâneas que levanta.