A aridez da travessia

"Canadá", de Richard Ford, é um romance de formação em cujo centro estão um menino e os desafios da vida
Richard Ford, autor de “Canadá”
25/03/2016

Algumas histórias são simplesmente boas. Algumas outras se tornam (ainda) mais interessantes diante do ponto de vista escolhido para a narrativa — como seria O sol é para todos, de Harper Lee, se não fosse narrado pela Scout? Ou, para escolher um exemplo mais contemporâneo, A festa do covil, do mexicano Juan Pablo Villalobos, não seria uma história muito mais banal não fosse a narração de Tochtli? Canadá, de Richard Ford, publicado no Brasil no final de 2015, é mais um desses casos.

O narrador é Dell Parsons — que, mesmo já adulto, resolve recuperar os acontecimentos da adolescência — assim como sua aura — com um distanciamento temporal de mais de quarenta anos. Os eventos que aconteceram no início da década de 60 no sul dos EUA e que alteraram completamente o curso da sua vida são anunciados brevemente já no primeiro parágrafo:

Para começar, vou contar o assalto que meus pais cometeram. Em seguida, os assassinatos que aconteceram mais tarde. O assalto é a parte mais importante, já que serviu para mudar o rumo da minha vida e o da minha irmã. Nada faria sentido, se eu não contasse desde o início.

Durante a narrativa, o Dell eventualmente faz breves comentários, como “o que aconteceria depois” ou “nunca mais vi essa pessoa”, mas sem anunciar completamente detalhes posteriores da história ou o que pensa sobre eles. O narrador parece tentar de maneira insensata e infrutífera não só revisitar o passado como também buscar a perspectiva que tivera na época, como que tentando conectar a cadeia de acontecimentos improváveis que viveu. E, se o esperado de um livro cujo narrador já tem cerca de 60 anos e relata o que viveu quando era adolescente for um livro de memórias fragmentado, cabe notar que com exceção dos breves comentários, esse livro apresenta uma narrativa relativamente linear.

Filho de um militar com uma judia, Dell é um tanto ingênuo e parece ter confiança plena nos pais — diferentemente de sua irmã gêmea, Berner (que é um interessante contraponto ao personagem principal, ressaltando ainda mais a ingenuidade e até passividade dele). O início do livro é usado para descrever a dinâmica da família de Dell: devido ao trabalho do pai, mudaram-se diversas vezes, nunca mantendo muitas raízes ou conhecidos pelas cidades pelas quais passaram. Além disso, os membros da família parecem ter laços relativamente fracos entre si, pouco conversando ou sabendo de si próprios.

Essa rotina acaba por esconder algumas características dos personagens: a infelicidade e incompatibilidade conjugal, a falta de dinheiro e segurança, a fragilidade das relações familiares. E, ainda que camufladas para o Dell adolescente, essas características são evidentes para o Dell adulto, são chave para o enredo e deixam os personagens complexos de uma maneira muito sutil.

Considerando-se todo esse contexto, Dell jamais imaginaria o que aconteceu perante as evidências que tinha. É claro que notara uma mudança na dinâmica normal da casa, mas não imaginaria algo da magnitude de um assalto a banco.

Essa é a grande questão do ponto de vista. Se fosse narrada pelo pai ou mesmo pela mãe, a história seria apenas a justificativa para um ato atrapalhado de desespero tomado por dois adultos em um momento errante de suas vidas. Narrada por Dell, que não sabia nem suspeitava o que acontecia, a história assume um tom de descoberta muito mais interessante para o leitor.

A escrita de Ford é direta e seca, o que talvez contribua com o tom apático do personagem diante do que viveu.

 

Continuação
Enquanto a primeira parte do livro se ocupa em narrar como Dell se separa de sua família, a segunda dá conta do que acontece logo na sequência, o que dá título ao livro.

A primeira e a segunda partes são um tanto desconexas entre si. O ponto comum é o protagonista, claro, mas o autor cria todo um novo núcleo narrativo e um novo cenário, com um acontecimento tão ou até mais marcante do que o ocorrido na primeira parte.

Por meios que não se cabe descrever nesta resenha, Dell chega a um desolado Canadá, onde deposita a confiança que tinha nos seus pais parcialmente nos adultos (de caráter duvidoso) com quem conseguiu refúgio. Começa a trabalhar e seus dias de criança ficam gradativamente para trás.

Ainda assim, algumas características do protagonista chamam a atenção. Mesmo não se sentindo à vontade com os outros personagens e com sua situação, Dell não foge ou tenta de qualquer maneira mudar o estado das coisas. Ao contrário, quer depositar confiança nos outros, quer encontrar aquela mesma passividade que podia ter com os pais. No fim, é assim que chega a presenciar os assassinatos anunciados no primeiro parágrafo do livro.

Enquanto o sul dos EUA é narrado como um cenário civilizado e normal na primeira parte do livro, o Canadá é descrito por Ford como um lugar completamente desolado, hostil e que parece não ter lei. As pequenas cidades pelas quais Dell passa são um cenário muito mais árido para um personagem que antes tinha alguma estabilidade. Essa mudança de cenário — de um lugar ideal para um estranho — acontece em paralelo com a inesperada ausência dos pais.

Com o relato dos assassinatos, a segunda parte chega ao fim. O livro ainda tem uma terceira parte, que brevemente faz um desfecho da história, contando o que aconteceu com Dell nos próximos anos de sua vida, inclusive com uma menção também à irmã Berner.

Por fim, Ford apresenta um romance de formação, ainda que com um foco bastante específico. O leitor se depara com uma narrativa extensa de duas passagens marcantes para o personagem, que aconteceram em um pequeno período turbulento de sua vida, permeados com relatos brevíssimos de outros momentos.

Canadá traz poucos comentários ou reflexões, não ficando completamente claro como esses fatos alteraram a vida do personagem principal. Talvez o distanciamento temporal (considerando que a história é narrada cerca de 40 anos depois que tudo aconteceu) faça com que os acontecimentos sejam relatados de uma maneira mais fria e apática. Ainda assim, o livro é uma narrativa sobre um menino, as dificuldades por que passou e como continuou com sua vida.

A escrita de Ford é direta e seca, o que talvez contribua com o tom apático do personagem diante do que viveu. A única variação desse estilo é um toque leve de humor, como que ressaltando a improbabilidade de todos os acontecimentos na vida de um mesmo personagem.

Uma característica interessante de Ford é brincar com imagens (ou até clichês) — a dos criminosos de banco, do adolescente introvertido, da vida destruída dos filhos dos desajustados sociais, da terra de ninguém representada pelo Canadá, mas mostrando lados que nem sempre fazem parte da imagem comum. Além disso, o livro se torna particularmente original pela escolha da narrativa e pela voz do personagem — uma opção incomum para histórias aparentemente familiares.

Canadá
Richard Ford
Trad.: Mauro Pinheiro
Estação Liberdade
456 págs.
Richard Ford
Nasceu no Mississippi em 1944 e estudou Artes pela Michigan State University. É autor de oito romances e três coletâneas de contos. O seu romance Independência recebeu os prêmos Pulitzer e PEN/Faulkner Award of Fiction.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

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