Toda arte se desenvolve lutando contra seus próprios limites.
Bernard Pingaud
Godard, assim como fazem todos os grandes escritores, quer ultrapassar a sua própria linguagem (…).
Leda Tenório da Motta
1.
Examinando várias cavernas e os desenhos pré-históricos nelas contidos, a maior parte delas na França e Espanha, Edward Wachtel deparou-se com uma experiência estranha: iluminadas com luz elétrica, elas apresentavam desenhos confusos, uns sobrepostos aos outros. Mas, segundo descrição presente no ensaio The first picture show: cinematic aspects of cave art, “com lâmpadas mais primitivas, o segredo dos pintores das cavernas foi exposto”.
“No espaço de alguns momentos, vi cortes e fusões, mudança e movimento. Formas apareciam e desapareciam, cores deslocavam-se e mudavam. Resumindo, eu estava vendo um filme”, continua Wachtel no mesmo texto. “Os componentes destes efeitos são superfícies irregulares, uma fonte de luz que move e bruxuleia, e um olho que se movimenta. Sob circunstâncias apropriadas, não veremos múltiplas imagens fixas, em vez disso, uma imagem movente e mutante.”
A última frase, aliás, é uma ótima definição do cinema.
Tudo indica que os artistas das cavernas pré-históricas tivessem a intuição e o desejo das “imagens em movimento”, que é outra definição sintética do cinema, quando pintavam os animais que os fascinavam dentro daqueles espaços primitivos.
Edward Wachtel, em mais um trecho do ensaio, continua:
Os artistas do Paleolítico tinham as ferramentas do pintor, mas os olhos e a cabeça do operador cinematográfico. Nas profundezas da terra, eles fabricavam imagens que parecem se mover, imagens que “cortavam” para outras imagens ou dissolviam-se em outras imagens, ou ainda podiam aparecer e desaparecer. Numa palavra, eles já faziam cinema underground.
2.
Numa sequência que, por coincidência (Freud dizia que não existe coincidência…), também se passa numa caverna, no livro VII de A República, Platão dá a palavra a Sócrates, que dialoga com seu discípulo Glauco, no que veio ser conhecido, interpretado e nomeado pela filosofia ocidental como a Alegoria da caverna.
Este diálogo, no qual Sócrates cria toda uma cena — ou sequência? Sócrates não escreveu nada, na verdade, seus ensinamentos só existem reportados na obra de Platão e alguns outros (poucos) escritores — com alguns personagens, detalhes e acontecimentos, foi assim comentado pelo teórico de cinema Arlindo Machado, em Pré-cinemas & pós-cinemas:
A primeira sessão de cinema nos moldes em que a conhecemos hoje, ou seja, numa sala pública de projeção, aconteceu há mais de dois mil anos, muito antes que Louis Lumière mostrasse as paisagens animadas de La Ciotat no Grand Café de Paris.
À parte a ironia que a cena e as pinturas nas cavernas são muito anteriores a Platão, ela é extremamente bem imaginada, escrita (e roteirizada) e visualmente cheia de detalhes relevantes e plenos de significado. Acompanhemos a descrição de Sócrates:
— Imagina homens em morada subterrânea, em forma de caverna, que tenha em toda a largura uma entrada aberta para a luz; estes homens aí se encontram desde a infância, com as pernas e o pescoço acorrentados, de sorte que não podem mexer-se nem ver alhures exceto diante deles, pois a corrente os impede de virar a cabeça; a luz lhes vem de um fogo aceso sobre uma eminência, ao longe atrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa um caminho elevado; imagina que, ao longo deste caminho, ergue-se um pequeno muro, semelhante aos tabiques que os exibidores de fantoches erigem à frente deles e por cima dos quais exibem as suas maravilhas. (…) Figura agora ao longo deste pequeno muro homens a transportar objetos de todo gênero, que ultrapassam o muro, bem como estatuetas de homem e animais de pedra, de madeira e de toda espécie de matéria; naturalmente, entre estes portadores, uns falam e outros calam.
Arlindo Machado comenta esta cena platônica com as seguintes palavras:
Chega a ser impressionante a precisão com que Platão evoca o aparelho de projeção. Em primeiro lugar, ele jamais recorre ao expediente da luz natural (…). A luz que projeta as sombras na tela-parede é artificial, obtida por intermédio de fogo que queima por detrás dos prisioneiros, lembrando os carvões do aparelho de projeção. Tal fogo encontra-se estrategicamente colocado atrás e acima das cabeças dos prisioneiros, pois Platão sabia muito bem que, colocado em outro lugar, o foco de luz faria projetar os próprios espectadores na tela (…). Necessário é reconhecer ainda uma outra sutileza na montagem do dispositivo de Platão: em vez de fazer projetar na tela-parede da caverna as sombras dos próprios objetos naturais (…). Platão recorre a um simulacro da realidade, “estátuas de homens e animais” já codificadas por artesãos ilusionistas.
Não satisfeito com a minuciosa engenharia de seu projeto de caverna, Platão faz intervir ainda a voz, completando a projeção das imagens com uma reverberação de sons que parece nascer das próprias sombras (…). Ou seja, não é apenas o dispositivo do cinema que Platão antecipa, mas sobretudo o cinema falado (…).
As artes plásticas, a literatura, a filosofia e a poesia imaginaram o que seria o cinema (basicamente, imagens em movimento) desde tempos imemoriais.
3.
Diante deste brilhante pequeno trecho escrito por Platão, interpretado não só por Arlindo Machado, mas por quase toda filosofia ocidental, o que dizer? Que estamos diante de uma ficção científica, escrita por volta dos anos 400 antes de Cristo, que claramente antecipa o cinema e uma sessão cinematográfica — como querem Gilles Deleuze, Luce Irigaray, Jean-Louis Baudry, Bernard Pingaud, Arlindo Machado, Laymert Garcia dos Santos e tantos outros? Obviamente. Ou diante de um texto ensaístico, filosófico, de um dos mais importantes pensadores que a humanidade já teve o privilégio de ler? Também. Mas, sobretudo, diria, resumindo: trata-se de uma ficção (científica), de um jogar com as palavras e o sentido delas, da exploração de todos os possíveis e os impossíveis da linguagem e de uma situação.
O que lemos, portanto, é nada menos que um texto também literário, mais apropriadamente, poético. Platão poeta? (Em prosa, evidentemente, como o foram Nietzsche, Hegel, Heráclito e quase todos grandes filósofos. Parece que os filósofos precisam da concisão poética para expressar suas ideias.) Definitivamente sim, apesar da ironia enorme da situação: não foi ele que sugeriu que os poetas fossem expulsos da cidade (por escreverem não baseados na ciência, mas no irracional, e por serem quase todos eles subversivos e inconvenientes)?
Diante desta obra-prima da literatura-filosofia-ensaio-poesia, não poderíamos deixar de chamar a atenção para um fato: esta é talvez a primeira vez que a literatura, a filosofia e a poesia, ao mesmo tempo, mostram um desejo pelo que viria ser o cinema. É como se as palavras, a imaginação, a fantasia, o jogo, o brincar, o desejar, todos eles presentes em todas estas e outras artes, fossem e não fossem suficientes. Era necessária uma outra, que reunisse quase todas elas e suas características — e, principalmente, seus recursos de linguagem. Para que isto acontecesse em toda plenitude, a humanidade teve que esperar mais de dois mil anos: todo processo da invenção do cinema, com uma grande quantidade de inventores durante séculos, e os irmãos Lumière, é claro, em 1895.
4.
Cerca de 350 anos depois desse livro de Platão, Lucrécio imaginou e descreveu alguns efeitos que antecipavam, curiosamente, recursos de linguagem cinematográfica. Sobre a natureza das coisas, assinado pelo cientista e poeta, é um texto que tenta descrever a natureza e como ela funciona.
Do ponto estritamente científico, são muitos os escritores, articulistas, cientistas e filósofos que afirmam que Lucrécio antecipou muitas descobertas posteriores com seu texto, e influenciou muitos cientistas depois dele, como Isaac Newton, Galileu Galilei, Copérnico, Giordano Bruno, Darwin e os filósofos Leibniz, Spinoza e Montaigne, entre outros.
Mas o quase inacreditável foi outro “pequeno” detalhe: desaparecido não se sabe quando, este livro somente foi redescoberto — existiam apenas referências esparsas e mínimas sobre Lucrécio e trechos do seu livro, em obras de terceiros, durante seu desaparecimento — muito tempo depois, no ano de 1417, num convento alemão.
Escrito não em prosa, como seria comum em se tratando de um assunto científico, mas em quase sete mil e quinhentos versos, épicos e didáticos, em hexâmetros. Pura poesia (mas também ciência e filosofia), eis a reputação que De rerum natura adquiriu nestes seiscentos anos depois que foi redescoberto: um dos maiores poemas da história da literatura, isto escrito por uma enorme quantidade de escritores, ensaístas e críticos, das mais variadas correntes literárias, críticas e filosóficas.
Ouçamos o que Otto Maria Carpeaux, o genial escritor brasileiro-austríaco tem a dizer sobre este autor e livro — em trecho da História da literatura ocidental:
De rerum natura é, entre todos os poemas didáticos da literatura universal, a única obra de poesia autêntica: obra de lirismo sincero, do poeta mais original em língua latina e do poeta mais moderno da Antiguidade.
Outros não foram menos entusiásticos, conforme trecho do The reader’s companion to world literature:
Ele [Lucrécio] tinha uma enorme capacidade poética (…) via a beleza nas coisas comuns da vida (…) quando necessário, inventava palavras (…) e usou livremente aliterações e assonâncias. Sobre a natureza das coisas é universalmente admitido como sendo um dos melhores poemas do mundo que conhecemos.
Além do mais, grandes ensaístas e críticos são unânimes: ele influenciou Ovídio e Virgílio, e muitos outros grandes poetas depois desses.
5.
E o que exatamente escreveu Lucrécio que faz lembrar o cinema? No livro IV, no qual se fala, sintomaticamente, de “visões mentais e sonhos”, ele anota o seguinte:
Não te espantes, no mais, se os simulacros se movem,
nem que alternados balancem os braços e os membros restantes.
Pois acontece, no sono, que a imagem pareça fazê-lo;
já que a primeira perece, mas outra já nasce em sequência
de outra maneira, e a primeira parece mudar o seu gesto.
Certo é pensar que rapidamente isso tudo se passa:
grande é sua mobilidade e plural é a cópia das coisas,
e tamanha é a cópia, em qualquer instante sensível,
de partículas que pra esse fim servem de suprimento.
(…)
Não seria mais verdadeiro que num instante
que percebemos, ou seja, quando uma voz se projeta,
muitos instantes se escondem: a razão descobre que existem,
e, portanto, acontece que em qualquer um dos instantes
os simulacros estejam em toda a parte dispostos:
grande é a mobilidade, e plural é a cópia das coisas,
já que um primeiro perece, mas outro nasce em sequência
de outra maneira, e o primeiro parece mudar de gesto.
6.
O tradutor da mais recente edição de Sobre a natureza das coisas (Autêntica, 2021), Rodrigo Tadeu Gonçalves, tem o seguinte a dizer sobre esta passagem: “Essa seção provê uma explicação para os movimentos dos simulacros e das imagens nos sonhos que dão conta de sua alternância muitas vezes pouco natural, tal como efeito dos cortes cinematográficos de hoje”. Já o teórico Arlindo Machado faz uma pergunta, referindo-se ao mesmo trecho: “Não é a melhor descrição de um cinematógrafo a desfilar seus fotogramas na sala escura?”. Machado também afirma que “Lucrécio já se referia ao dispositivo de análise do movimento em instantes (fotogramas) separados”.
Várias anotações preciosas: cortes cinematográficos rapidíssimos, que parecem mostrar uma outra coisa, o que nos faz duvidar dos nossos sentidos ou, várias interpretações sendo possíveis, trata-se da mesma coisa, somente vista talvez de um ângulo ligeiramente diferente (ou do mesmo ângulo, mas em outro momento, e colocado em uma ordem diferente). Somente no trecho cita anteriormente podemos notar várias e muitas palavras e conceitos que nos sugerem o cinema: imagens, movimentos, sequência, cópias das coisas, simulacros…
É o bastante para já pensarmos em um cinema moderno, e fantasiar, talvez, Alain Resnais e Jean-Luc Godard? E, além disso, uma máquina de projeção cinematográfica “a desfilar seus fotogramas na sala escura”. Desfilar, ao que parece, imagens, mas também fotogramas separados, que “se movem”, como escreve Lucrécio. Imagens que se movem: existe melhor descrição do cinema?
Não nos esquecendo, é claro, de três outros versos: “Não seria mais verdadeiro que num instante/ que percebemos, ou seja, quando uma voz se projeta,/ muitos instantes se escondem”. Aqui, também, trata-se do cinema falado.
7.
Querendo entender exatamente o que existia em comum entre a literatura e o cinema, o magistral romancista Italo Calvino (1923-1985) fez uma descoberta surpreendente, mas ao mesmo tempo facilmente constatável: as duas artes teriam como antecessores “o encadeamento particular de imagens em narrativas”, que, como ele descreve em seguida neste ensaio fundamental, antecede o romance e a literatura.
A imagem como o começo da narrativa romanesca e literária? Com um parentesco evidente com o cinema, esta arte das imagens em movimento? Imagens que se articulam em narrações orais, antes de se transformarem em literatura? É exatamente o que Calvino parece estar dizendo no texto de 1966, fruto de uma enquete da revista Cahiers du Cinéma #186, e que depois apareceu em um dos seus livros — traduzido em inglês como The literature machine — com o título de O cinema e o romance: problemas de narração.
Em se tratando de um estudo singularmente complexo, seria indispensável citá-lo na sua completude, pelo menos seu primeiro parágrafo, que define tudo — os negritos são meus:
Para encontrar elementos comuns entre uma sucessão de palavras escritas tais quais no romance e uma sucessão de fotogramas em movimento tais quais no filme, é necessário isolar no fluxo das palavras este encadeamento particular de imagens na narrativa que — antes mesmo que o romance e a literatura — era parte constituinte da narrativa oral (mito, fábula, conto folclórico, canto épico, lenda dos santos e mártires, contos eróticos). O filme reconstrói em parte a narrativa oral (cada filme de James Bond é construído como um conto de fadas), e em parte a literatura popular do século XIX (romance de aventuras, romance gótico, romance policial, romance de amor, novela romântica, romance social), onde o aspecto “sucessão de imagens” prevalece sobre o aspecto “escritura”.
Calvino parece estar lembrando uma verdade antiga e conhecida, mas propondo ao mesmo tempo uma novidade: a narrativa oral antecede a literatura — Ilíada e Odisseia, por exemplo, para muitos historiadores criadas oralmente, e só depois escritas —, mas suas imagens (eis a novidade) são comuns à literatura, e séculos depois, ao cinema. Ao mesmo tempo, ele liga o cinema à literatura popular. Segundo o autor italiano, o romance de aventuras, o gótico, o policial, o de amor, a novela romântica e o romance social também desejaram o cinema e o produziram de alguma maneira.
Uma linguagem artística, quando plenamente desenvolvida (e mesmo antes), sonha sempre com outras que a completariam ou talvez fossem mais adequadas para expressar o que está sendo tentado.
8.
Minha tarefa é fazê-los ver.
Joseph Conrad
Se nos deslocarmos para a segunda metade do século 19, e mesmo para os primeiros anos do 20, portanto, imediatamente antes, durante e pouco depois da criação do cinema, o que podemos observar quanto à criação literária mais sofisticada?
Quem estudou esta época e esta relação foram os críticos e ensaístas McFarlane (no livro Novel to film), Alain Spiegel (Fiction and the camera eye) e Keith Cohen (no ensaio Film and fiction). Dizem estes autores que alguns escritores que apareceram significativamente no final do século 19 e início do 20 — quando o cinema estava sendo inventado e começava a sua trajetória —, tais como Gustave Flaubert, Henry James, Joseph Conrad, Marcel Proust, James Joyce e Virginia Woolf, tinham em comum algo muito importante — segundo McFarlane, em Novel to film:
Essa ênfase na descrição das superfícies e no comportamento de objetos e figuras tira alguma importância da voz narrativa do autor e dessa maneira nós aprendemos a ler a ostensivamente não mediada linguagem visual do fim do século dezenove, de uma maneira que antecipa a experiência do cinema, que necessariamente apresenta estas superfícies físicas.
Em outras palavras, esses romancistas mudam o paradigma do romance exatamente quando o cinema começava a aparecer, ou pouco antes, e tendem a mostrar como os eventos se desenvolvem dramaticamente, em vez de contá-los. McFarlane acrescenta que James e Conrad vão
Antecipar o cinema na sua capacidade de “decompor” uma cena, alterando o ponto de vista para focar mais detidamente nos vários aspectos de um objeto, tratando de explorar o campo visual através de sua fragmentação, em vez de apresentá-lo cenograficamente.
Como escreveram Stan, Naremore e McFarlane, a grande mudança na narratividade do romance no final do século 19 vai dar mais ou menos a mesma ênfase na apresentação do que está sendo observado, do observador, e do que este pensa e faz, a partir do que ele vê: o que se procura, neste tipo de romance, é mostrar certas relações, determinadas pelo olhar e pelo sempre mutante ponto de vista. Aqui, o escritor evitaria se interpor com a escritura entre o mostrado e o leitor.
O olhar, os muitos pontos de vista e a relação destes detalhes com a narração: isso é profundamente cinematográfico, mas ao que parece não era menos literário, o que facilitou, e muito, a apropriação desses processos pelo cinema, se apropriação houve. Influência da literatura sobre o cinema, do cinema sobre a literatura ou uma armação do Zeitgeist (espírito ou gênio da época), que vai ressoar primeiro na literatura, e depois no cinema, ou talvez nos dois, mais ou menos ao mesmo tempo?
9.
Como pode ser visto, a relação entre literatura e cinema abriga muitas perguntas e dúvidas. Mas também algo que podemos ter a certeza: as artes plásticas, a literatura, a filosofia e a poesia imaginaram o que seria o cinema (basicamente, imagens em movimento) desde tempos imemoriais; como consequência, o anteciparam, de diversas maneiras.
Mas isto também não é novidade: uma linguagem artística, quando plenamente desenvolvida (e mesmo antes), sonha sempre com outras que a completariam ou talvez fossem mais adequadas para expressar o que está sendo tentado. É como se ela tivesse necessidade da outra arte ou, pelo menos, de alguns de seus recursos de linguagem. Nada humano é completo: a incompletude é parte constituinte do nosso ser. Daí a necessidade dessa invenção constante e incessante.
O ser humano é não apenas homo sapiens (homem sábio), mas também homo inventor.