A alma profunda de James Baldwin

Engajado nas lutas políticas dos Estados Unidos, escritor foi também um ficcionista que assumiu a imperfeição como característica humana incontornável
James Baldwin, autor de “Notas de um filho nativo”
26/11/2020

O lançamento de Notas de um filho nativo oferece um bom pretexto para falar de James Baldwin, voz notável de um século 20 pródigo em grandes escritos de língua inglesa. Sua obra vem experimentando certo revival na esteira do documentário Eu não sou seu negro (2016), dirigido por Raoul Peck, com base em texto inacabado do escritor. Não que Baldwin tenha sido esquecido algum dia. Foi muito aclamado, principalmente no início da carreira, embora virasse depois alvo de críticas estridentes de fundo homofóbico. Quando se mudou para a França, onde viveu de 1970 até a morte, em 1987, a autorreferente cultura dos Estados Unidos o deixou um pouco de lado. Sua obra foi resgatada na década de 1990 por Toni Morrison, entre outros, e ressignificada para uma nova geração. Na era do movimento Black Lives Matter e da erosão de noções binárias de gênero, o autor vai obtendo finalmente o grau de reconhecimento que merece.

Não é a primeira vez que Baldwin atinge a celebridade audiovisual. Na década de 1960, ele virou figurinha fácil da grande mídia e, um tanto a contragosto, porta-voz do movimento pelos direitos civis da população negra. A TV norte-americana fez amplo uso de sua eloquência e elegância como contraponto tanto ao bom-mocismo de comentaristas liberais quanto ao sectarismo de grupos como os Panteras Negras e a Nação do Islã.

Escritor de força incontestável, e portanto não redutível ao rótulo pejorativo de token black, Baldwin foi içado paradoxalmente à condição de intelectual negro de plantão, instado a responder por uma coletividade com a qual nem sempre se entendia. Defensor intransigente da subjetividade, crítico e contestador por natureza, o autor não decepcionava com sua habilidade de formular as questões raciais em toda sua complexidade. Suas falas, como sua escrita, pulsavam com a autoridade de quem viveu a opressão na carne, mas recuavam sistematicamente diante das respostas fáceis para perguntas difíceis.

Demolição
Notas de um filho nativo, lançado em 1955, é o livro mais conhecido de Baldwin. Ao longo de muitas décadas, constou de currículos escolares dos Estados Unidos como leitura obrigatória. É uma coletânea de dez ensaios, oferecendo um panorama amplo do pensamento do autor, então com 31 anos. Os textos de crítica que compõem a primeira parte são dedicados a demolir três obras que, em princípio, não cabem no mesmo balaio: A cabana do pai Tomás (1852), de Harriet Beecher Stowe; o romance Filho nativo (1940), de Richard Wright, ao qual o título do volume faz referência; e o musical Carmen Jones (1954), dirigido por Otto Preminger. Após enterrar a avó do romance de denúncia, matar o pai literário e repelir o forasteiro enxerido, Baldwin prossegue ao exame da questão de fundo. Na segunda parte do livro, três ensaios mergulham no próprio passado do escritor — em especial, sua infância e juventude no Harlem nova-iorquino — e nos efeitos do racismo estrutural sobre a vida íntima das comunidades negras. A terceira parte contém quatro ensaios que tratam das primeiras experiências de Baldwin na Europa. Como para muitos americanos — norte, centro e sul; negros, brancos e outros —, sair da América propiciou-lhe a distância necessária para subverter as hierarquias hereditárias. A partir de Paris, o autor pôde enxergar de fora o sistema que insistia em reduzir sua identidade à cor da pele e, a duras penas, se libertar dele.

O apuro estilístico de Notas de um filho nativo pode soar antiquado para quem está acostumado com as regras atuais do jornalisticamente correto. Mesmo assim, o texto ainda reverbera com grande urgência. “Arrebentar alguma coisa é a necessidade crônica do gueto”, escreve Baldwin no ensaio que dá título à coletânea.

Em outro, afirma que a supremacia branca é “a própria trama e urdidura da herança ocidental”. Tais frases de efeito serviam para estourar a bolha de complacência em torno do delirante sonho americano: uma casa nos suburbs, dois carros na garagem, mulheres na cozinha, maridos armados, meninas de rosa e meninos de olho roxo. Transparece de alguns dos ensaios certa acidez típica do jovem intelectual revoltado; porém, apesar da relativa crueza, a alma profunda de Baldwin está toda lá. Como, por exemplo, nesta observação: “Imagino que um dos motivos que as pessoas se agarram aos seus ódios com tanto afinco seja porque sentem que, quando o ódio se for, serão obrigadas a lidar com a dor”. Ou, ainda, a fina distinção entre o compromisso com o ser humano, essencial a todo escritor, e a devoção à causa da humanidade, que pode servir de mote para matar gente.

Os protagonistas de Baldwin são redondíssimos — complicados, contraditórios, cheios de dúvidas, sobretudo vivos.

Ficcionista
Antes de ser ensaísta ou ativista, Baldwin era ficcionista. É impossível compreender o furor em torno do seu aparecimento na década de 1950 sem levar em consideração seu primeiro livro, Go tell it on the mountain (1953), nunca traduzido para o português. Trata-se de romance de formação, semiautobiográfico, que narra a história de John Grimes, jovem morador do Harlem, sua conturbada relação com o padrasto, Gabriel, um pastor autoritário e hipócrita, e seu conflito existencial entre a igreja pentecostal e os impulsos homoeróticos latentes. O próprio Baldwin chegou a ser pregador na juventude, e o livro é impregnado de um linguajar bíblico que pode ter soado quase alienígena ao meio editorial brasileiro dos anos 1950. Talvez seja este o motivo para que o livro nunca tenha despertado interesse por aqui. Hoje em dia, quando o Brasil encontra-se imerso em cadências e compassos evangélicos, é um fenômeno editorial esperando para acontecer. Um livro de profunda compaixão, que desnuda relações familiares e desmonta o arcabouço do poder religioso, sem deixar de se assombrar diante da fé.

Somente após a consagração no terreno da ficção e da não ficção, o autor ousou dizer com todas as letras o nome do seu amor. O segundo e o terceiro romances de Baldwin — O quarto de Giovanni, lançado em 1956, e Terra estranha, de 1962, disponíveis para o público brasileiro em edições lançadas pela Companhia das Letras em 2018 — tratam, de modo explícito, da atração sexual de homens por homens. O tema é abordado com um misto impressionante de delicadeza e vigor. As cenas de sexo, além de poéticas, são, de fato, eróticas. É um dos indícios mais fortes do domínio de Baldwin sobre a linguagem, dada a facilidade com que o sexo escrito descamba para o ridículo ou o vulgar.

Para confundir um pouco as certezas da época atual — que adora lançar mão de oposições rígidas com o propósito de combater o binarismo —, o autor escrevia com igual fluência sobre o sexo entre homens e mulheres. No experimento social que foi Greenwich Village na década de 1950, os personagens de Terra estranha exploram seus desejos e suas ambiguidades sem precisarem se rotular ou se enquadrar em categorias.

O livro chegou a ser editado no Brasil, em 1965, pela Livraria do Globo, sob o título Numa terra estranha, com tradução de Gilberto Miranda (mítica “personalidade de conveniência” criada por Erico Verissimo e contando às vezes com sua participação). A reação foi de certa perplexidade. Em sua coluna no Correio da Manhã (15/10/1967), Cícero Sandroni invocou o juízo de um amigo anônimo: “Numa terra estranha não é um romance, é uma bofetada”. Não deixa de ser isso, principalmente para quem gosta de apanhar, mas pode ser lido também como uma carícia, e um bálsamo, se a leitora ou o leitor buscam refúgio do facciosismo hoje em voga.

Na visão de mundo descortinada por seus escritos, o ser humano está fadado a errar e, portanto, pode vir a ser perdoado.

A prosa oscila entre o feroz e o rebuscado. Os diálogos são irretocáveis. Baldwin chega a abusar do recurso do narrador onisciente, mas não há dúvida que o faz com o intuito de se aproximar do âmago de cada um dos seus personagens. A todo momento, em Terra estranha, a empatia está presente. Mesmo nos pontos de maior crueldade da narrativa, nunca some de vista a habilidade do autor de se colocar no lugar do outro.

Protagonistas
Os protagonistas de Baldwin são redondíssimos — complicados, contraditórios, cheios de dúvidas, sobretudo vivos — e o autor se desdobra em múltiplos alter egos em Terra estranha. O baterista negro Rufus Scott, carismático, criativo, conflituado, objeto de desejo generalizado, mas incapaz de qualquer entrega que não seja à pulsão da morte. Sua irmã Ida, obsedada, ambiciosa, raivosa, que passa o livro a torturar o namorado branco com a impossibilidade da relação, na tentativa manifesta de antecipar o fracasso. O namorado é Vivaldo Moore, escritor, talvez o personagem desenvolvido com maior carinho. Único amigo de Rufus, de quem busca se aproximar por meio do relacionamento com a irmã, ele passa o livro a se debater entre seu encanto por Ida, seus desejos homossexuais reprimidos e um bloqueio criativo, de relevo cômico. Aproxima-se do ator Eric, caso antigo de Rufus, o qual busca, por sua vez, consolar-se com a amiga em comum Cass, esposa do mentor de Vivaldo, enquanto Eric desenreda seu amor pelo francês Yves. As tramas complexas de sexo e amizade, ambição e medo, abrigo e abandono, entre esses e outros personagens vão constituindo a tragédia das boas intenções quando esbarram nos desejos inconfessos. O cenário, também personagem, é a “cidade mais impiedosa do Ocidente: Nova York” (no dizer do autor numa entrevista de 1964).

Guerra cultural
Conhecer o Baldwin ficcionista ajuda a dimensionar o tamanho do seu esforço ao se engajar nas lutas políticas dos anos 1960. Como se manter fiel à compreensão matizada do ser humano, demasiado humano, e, ao mesmo tempo, servir a uma causa pautada no sentimento de nós contra eles? É uma pergunta que todo escritor, digno da alcunha, se faz em tempos de guerra cultural.

Baldwin oferece uma resposta possível ou, no mínimo, um exemplo radiante em The fire next time, lançado como livro em 1963. O burburinho foi tamanho que ecoou até no Brasil. No mesmo ano, “o já famoso texto” foi citado por José Condé como “um dos mais lúcidos e corajosos depoimentos sobre os problemas raciais nos Estados Unidos”. Leo Gilson Ribeiro o saudou, em 1965, como “abalador testemunho” e se maravilhou do fato de ter passado 29 semanas consecutivas na lista de best-sellers. Apesar desses entusiasmos, o volume demorou até 1967 para encontrar editora brasileira, saindo na Coleção Polêmica, da Biblioteca Universal Popular, sob o título Da próxima vez, o fogo: Racismo nos EUA. É um livro que não merece ser relegado às prateleiras de sebos, mas antes precisa ser reeditado com urgência.

The fire next time é um volumezinho de noventa a cento e poucas páginas, dependendo da edição. Para quem tem preconceito com livro fino, vale lembrar que O manifesto comunista conta menos de cinquenta páginas. A comparação é esdrúxula, mas o livro de Baldwin comunga do tom profético de Marx e Engels, acrescido de certa dose de Velho Testamento sugerida pelo título (após o dilúvio, Deus prometeu a Noé não mais destruir o mundo pela água e criou o arco-íris como sinal da promessa).

O volume consiste de dois ensaios, ambos escritos em 1962: o primeiro curtíssimo, My dungeon shook, publicado inicialmente na revista The Progressive, e outro mais longo, que saiu na The New Yorker, originalmente sob o título Letter from a region in my mind. Juntos, compõem um enunciado sobre a praga do racismo digno de figurar ao lado de escritos fundamentais da mesma época, como A autobiografia de Malcolm X (1965).

Seus personagens tropeçam e caem, brigam e se derrubam, se levantam de novo na velha esperança de acertar o incerto.

O primeiro ensaio do volume traz o subtítulo Carta para meu sobrinho na ocasião do centenário da emancipação (a da escravatura, formalizada nos Estados Unidos em 1863). Em tom de conselho paternal para o sobrinho de 15 anos, também chamado James, Baldwin constata sucintamente o poder devastador do racismo sistêmico:

Este país inocente colocou você num gueto, no qual existe a intenção, de fato, que você morra. Deixe-me precisar exatamente o que quero dizer com isso, visto que é o xis da questão e a raiz da minha desavença com meu país. Você nasceu onde nasceu e enfrentou o futuro que enfrentou por ser negro e por nenhum outro motivo. Esperava-se assim que os limites da sua ambição estivessem postos para sempre. Você nasceu numa sociedade que estipulou com brutal clareza, e de todas as formas possíveis, que você era um ser humano sem valor.

O escritor denuncia a pretensa neutralidade com que esse sistema se compraz em destruir, de modo rotineiro, milhões de vidas: “Não é admissível que os autores dessa devastação sejam tidos ainda como inocentes. É a inocência que constitui o crime”. Considerando que essa acusação foi formulada há quase 60 anos, não deixa de ser extraordinário que tenha demorado tanto para se generalizar na consciência coletiva por meio da divisa, vidas negras importam. O que talvez surpreenda mais ainda é a conclusão que Baldwin tira de tudo isso: que recai à população negra a tarefa de libertar a branca do processo histórico em que ambas estão aprisionadas, a fim de refundirem juntas uma nova identidade.

Mundo descortinado
O adversário oculto que ronda a carta ao sobrinho aparece por inteiro no segundo ensaio do volume. Nele, Baldwin enfrenta a questão do separatismo: a ideia de que a comunidade negra devesse se apartar do restante da população, ou em termos de uma militância cultural autonomista, ou fisicamente mesmo ao fundar um estado independente. À época, o principal defensor dessa causa era Elijah Muhammad, líder do movimento Nação do Islã, ao qual Malcolm X esteve filiado de 1952 a 1964.

Após discutir sua própria formação religiosa, Baldwin relata em fascinante detalhe seu encontro com Muhammad, que o convidou para jantar em sua casa em Chicago, em 1961, com o intuito presumível de recrutá-lo para o movimento. O autor recusou a delirante visão de mundo apregoada pelo líder religioso — a qual incluía a demonização, literal, dos brancos e a prognosticação de seu desaparecimento num futuro próximo. Baldwin considerava que os americanos negros eram, fundamentalmente, americanos (e não africanos, muçulmanos ou outra coisa). Pugnava portanto por uma integração plena capaz de abarcar todos em pé de igualdade.

Nos dias de hoje, quando questões de separatismo étnico voltam a pipocar em vários níveis, tanto da macro quanto das micropolíticas, os argumentos de Baldwin ganham renovada relevância. Como devemos pensar as lutas em torno das identidades, passadas tantas décadas? Autonomia equivale a igualdade? Integração significa a assimilação das minorias pela maioria? Até que ponto os interesses coletivos se sobrepõem às vontades individuais, e vice-versa? O objetivo é tomar o poder ou abolir o poder? As palavras deixadas por Baldwin, autor local e universal, interseccional muito antes que se inventasse o termo, são importantes demais para serem negligenciadas. Na visão de mundo descortinada por seus escritos, o ser humano está fadado a errar e, portanto, pode vir a ser perdoado. Seus personagens tropeçam e caem, brigam e se derrubam, se levantam de novo na velha esperança de acertar o incerto. O legado do autor passa por assumir a imperfeição como característica humana. Em Baldwin, a pureza é não somente ilusória, como perigosa. A esperança reside em nos reconhecermos, todos, como vinculados pela impureza.

Notas de um filho nativo
James Baldwin
Trad.: Paulo Henriques Britto
Companhia das Letras
248 págs.
Rafael Cardoso

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1964. É escritor e historiador da arte. Autor de Entre as mulheres (2007) e O remanescente (2016), entre outros.

Rascunho