🔓 A alma do Brasil

"Trilogia Brasil" reúne três romances fundamentais de Antônio Torres para melhor entender o país
Ilustração: Antônio Torres por Ramon Muniz
01/04/2023

Entre os escritores da família Torres Cruz (eles são muitos) conta-se que, ao publicar Essa terra, em 1976, Antônio Torres recebeu um veredito de seu irmão Tom Torres: você vai demorar toda uma vida para se livrar desse livro. A profecia parece se cumprir. O romance ganhou duas continuações, O cachorro e o lobo, de 1997, e Pelo fundo da agulha, de 2006. Foi traduzido alhures e aqui, respectivamente, lá se vão 29, 6 e 4 edições, sem contar com a mais nova delas, a Trilogia Brasil, lançada pela Record, reunindo os três romances num único volume.

Algumas características marcam os romances, como a paisagem do Junco em contraponto às imagens paulistanas e as referências literárias e musicais, no entanto, certamente são os livros de Antônio Torres que mais de perto dialogam com a tradição narrativa latino-americana surgida a partir da década de 1960, quando o protesto político e social e a irrealidade cotidiana eram quase uma ordem.

Essas irmandades narrativas, assim, se concentram como um legado maior do escritor. Mesmo transitando outras artérias, como as impossibilidades vivenciais de Um táxi para Viena d’Áustria, e as peculiaridades de nossa formação cultural, de Meu querido canibal, ainda é o apelo do migrante, do eterno estrangeiro, que marca toda a prosa do escritor. Não é apenas Nelo, o filho desejado e esperado, que está fora da ordem vivencial descrita por Torres, todos os seus personagens, de uma maneira ou de outra foram ferrados com o fogo e os ferros incandescentes de um Brasil profundo que insiste em não avançar no tempo.

Como diria Ariano Suassuna, mesmo trocando o jumento por uma moto, a essência telúrica não largou este homem.

Suicídio
O capítulo inicial de Essa terra aponta para uma esperança, o desejo do pai de rever o filho que migrou para São Paulo. E Nelo volta, mas já não é o mesmo rapaz que sonhava fortunas e sucessos. A cidade grande o tornou bruto, insensível, fracassado em todos os momentos, mesmo quando desfrutou de instantes felizes.

Desta depressão previsível, da impossibilidade de corresponder às expectativas geradas na partida, nasce a cena mais emblemática do livro, quando o irmão Totonhim encontra Nelo pendurado, com a corda no pescoço, num armador de rede. É desfecho consagrado à maioria que migra, estender uma corda fatal para quarar e secar a alegria de reconstruir a vida livre da determinante previsível e natural dos sertões, de todos os sertões.

O sentido emblemático do gesto, no entanto, é que o protagonista não mata apenas ele próprio, mas todo sonho de sua comunidade; a esperança de deixar a miséria intrínseca, atávica.

Antônio Torres conta que começou a desenhar seu livro depois de uma visita ao Junco. A cidade, há anos, mudou de nome, chama-se Sátiro Dias, mas o escritor ainda se apega ao topônimo e aos sentimentos de antanho. Por isso o suicídio do migrante que voltou contado por um tio inquietou tanto o romancista. Somente se livrou do “fantasma” quando o jogou no papel e celebrou a desgraça de saber que nem sempre a felicidade está além das próprias fronteiras.

É o que não sabe, ainda, o narrador Totonhim:

Quem não mudou em nada mesmo foi um lugarejo de sopapo, caibro, telha e cal, mas a questão é saber se meu irmão lembra de cada parente, (…) um dia pegou um caminhão e sumiu no mundo para se transformar, como que por encantamento, num homem belo e rico. (…) Um monumento, em carne e osso.

A cidade grande devolveu, de vera, apenas fracassos, pois o chamado exigia bem mais que apenas coragem e vontade.

Chamado
Anos depois quem volta é Totonhim. A exemplo de Nelo, ele também migrou e voltou carregado de desesperanças. Veio para ver o pai, pois faltara às comemorações dos oitenta anos do velho. “Uma festa de arromba, me disseram. No dia seguinte!” Durante pouco mais de um dia perambula por ruas que o rejeitam. Não traz na aparência, nem nos bolsos, as riquezas que São Paulo promete despejar em cada ponto de cada esquina.

O cachorro e o lobo é também uma história de fracassos, embora menos fatais que o romance que abre a trilogia. Totonhim, ao seu modo, prosperou, mas tendo que entregar a alma aos inimigos do pai, os bancários. Para pagar um empréstimo de um incentivo federal para plantar juta, o velho terminou falido, tendo que vender a pouca terra que tinha. A mulher mudara para Feira de Santana, em busca de estudos para os filhos, e ele, o velho, é um lobo solitário em terra alheia, enquanto o filho circula por uma cidade que mudou e o rejeita, como quem enxota um cachorro que perdeu todas as referências.

Persiste nesse texto o sentimento das diferenças. O lugar mudou, mas a transformação se dá como arremedo do que seus habitantes — ou poderosos de plantão — pensam ser o sentido real do marco civilizatório: estradas, comércios, televisões. Ou seja, possibilidade de fuga, pão, circo. E os filhos, com os mesmos aparatos de antigamente, continuam buscando educação e saúde em outros cantos. “Um homem passa a cavalo, chapéu de couro, jaleco de couro, perneira de couro, sapato de couro cru — deve ser o último vaqueiro.”

É também nesse romance que Antônio Torres define um dos cacoetes mais caros de toda sua literatura, as referências musicais e literárias, que se acentuam em seu mais recente romance, Querida cidade. Estas citações, no entanto, servem como parâmetros de épocas, um contraponto fundamental para se entender toda a obra do escritor.

Retorno
Não o imagine um guerreiro que depois de todas as batalhas finalmente encontrou repouso, abraçado a uma deusa consoladora dos cansados de guerra. Seria um exagero inscrevê-lo na lenda heroica. Esta é a história de um mortal comum, sobrevivente de seus próprios embates cotidianos, aqui e ali bafejado por lufadas da sorte, mais a merecer uma menção honrosa pelo seu esforço na corrida contra o tempo do que um troféu de vencedor.

Este é o Totonhim que volta, pela segunda vez, ao Junco. Vem em busca de suas referências. No tempo que ficou fora, construiu uma vida regular. Agora, bancário aposentado, em crise conjugal, distante dos filhos, procura o elo perdido. E também a família que abandonou, que nunca deixou se aproximar de fato da outra, a que construiu em seus dias paulistanos. Os netos civilizados não conhecem os avós sertanejos.

No meio disso tudo está o protagonista e seus fantasmas.

Em Pelo fundo da agulha, Torres se utiliza da dicotomia da expressão para dizer do eterno drama do migrante. Há no título uma referência bíblica: é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino do céu. No entanto, há também uma simbologia de resistência. A velha mãe preserva a capacidade de botar a linha no buraco da agulha sem precisar de óculos. Suas visões, a natural e a do mundo, continuam sólidas.

E no protagonista permanece o legado da dúvida. O que teria sido se não migrasse? É a angustia do migrante Ferreira Gullar em seu Poema sujo:

Se tivesse me casado com Maria de Lourdes,
meus filhos seriam dourados uns, outros
morenos de olhos verdes
e eu terminaria deputado e membro
da Academia Maranhense de Letras;
se tivesse me casado com Marília,
teria me suicidado na discoteca da Rádio Timbira.

Mas Ferreira Gullar, como Totonhim, migrou. O poeta deixou um Maranhão de possibilidade até felizes, o protagonista de Torres, apenas as incertezas. Poderia ter casado com a primeira namorada, que desvirginou. Na volta ela estava descasada, o marido a rejeitou na lua de mel, por saber que não era virgem. É o mesmo sertão de preconceitos e dores, onde a condicionante do desconhecido continua a ser uma saída para quem fica.

Sem direito à paixão ou ao reencontro com o passado, o protagonista retoma o invencível desejo da partida. A cidade já não é a sua cidade.

Círculo
Trilogia Brasil se estabelece como num círculo, começo, meio e fim não denunciados na leitura avulsa dos romances. Em tudo, no entanto, sobrevive a impossibilidade de felicidades para quem busca fugir do sentido da própria vida. Lelo, mesmo tendo sido feliz um dia, com casa e família, vê tudo desmoronar no fim do trabalho e das esperanças. Totonhim, com estabilidade de emprego e família constituída, depois de aposentado, vê tudo escorrer, e já não tem referências de vida onde se apegar.

Linguagem e enredos se apresentam com o sotaque próprio do escritor. O clima, no entanto, lembra o mais profundo do realismo-mágico da literatura hispano-americana. É possível encontrar ecos das incertezas e buscas inúteis do filho de Pedro Páramo, de Juan Rulfo, como a inadaptabilidade diante da opressão e do imponderável de Garabombo, o invisível, de Manuel Scorza. Este diálogo prova que nossos escritores nunca estiveram isolados do resto do continente. Somos, dizem eles, uma literatura unificada por nossos medos, sonhos e dramas, bem mais comuns entre si do que parece a quem a olha de maneira superficial.

A leitura da Trilogia Brasil revela um autor preocupado com o seu tempo, mais ainda com aquilo que o passado entranhou no presente e desenhou para o futuro. Seus personagens são marcados por sentimentos incapazes de serem apagados. Trazem na alma o profundo de uma cultura que se gestou com os séculos. Em São Paulo ou no Junco é o mesmo homem diante de um destino imutável.

Esses homens e mulheres, que de certa forma permearam toda a geração de escritores de 1930, continuam modernos, pois, como prova a prosa certeira de Antônio Torres, são o retrato da própria alma brasileira.

Trilogia Brasil
Antônio Torres
Record
529 págs.
Antônio Torres: 50 anos de literatura
Org.: Aleilton Fonseca
Mondrongo
424 págs.
Antônio Torres
Nasceu em Sátiro Dias (BA), em 1940. Antes de chegar à literatura, passou pelo jornalismo e, já em São Paulo, pela publicidade. Viveu três anos em Portugal e por décadas no Rio de Janeiro. Estreou na literatura em 1972 com o romance Um cão uivando para a lua. De lá para cá, publicou mais de vinte livros, o mais recente, Querida cidade, em 2021. Sua premiada obra, que passeia por cenários urbanos, rurais e históricos, tem várias edições no Brasil e traduções em muitos países. É membro da Academia Brasileira de Letras.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

Rascunho