A alma de todos nós

“Recordações da casa do mortos” é um relato sobre a estada de Dostoiévski em uma colônia prisional na Sibéria
Ilustração: Ramon Muniz
01/12/2007

Obra de transição de Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881), situada entre os romances e contos da juventude e as obras-primas da maturidade, Recordações da casa dos mortos não é, a rigor, um romance. Pelo menos, não na definição clássica do termo: falta-lhe, usando aqui a terminologia utilizada por Tomachevski, uma trama e uma intriga — recursos sem os quais o texto torna-se uma “descrição no tempo”, mais próxima de uma crônica do que de uma obra ficcional.

Ao considerá-la um relato baseado na própria experiência de Dostoiévski, poder-se-ia entendê-la também como memória, ou como uma grande reportagem, no melhor estilo do jornalismo literário, não fosse o recurso de colocar a narrativa na perspectiva de um personagem fictício: o ex-proprietário rural Alexander Petrovitch Goriantchikov, ex-detento de uma colônia prisional em Omsk, na Sibéria, onde cumpriu pena por dez anos, acusado de matar a esposa por ciúme. Seria o alter ego do autor, que esteve preso, no mesmo presídio, durante quatro anos, acusado de atividades subversivas pelo governo do Czar Nicolau I.

Não se sabe as razões que levaram Dostoiévski a optar por uma obra de ficção, quando todo o texto — como mostra a longa carta enviada por ele ao irmão Mikhail, após a saída do presídio, e que faz parte do volume agora editado pela Nova Alexandria — reforça a idéia de que os fatos e os personagens, retratados na obra, são todos bem reais, embora com alguns disfarces, e que correspondem à experiência do autor na colônia prisional.

Parece razoável supor que, após sofrer longos 48 meses de trabalhos forçados, o autor de Crime e castigo teria adotado o anteparo da ficção como uma forma de se preservar. Ou para ampliar o alcance da narrativa, com o recurso da imaginação, não se restringindo ao meramente acontecido. A opção é acertada, pois se trata de obra magistral, mas que permite algumas incoerências. Uma delas é o fato de que o perfil do personagem Alexander Goriantchikov não se coaduna com as características a ele atribuídas pelo autor-narrador, na introdução da obra. Isto é, se podemos confiar na tradução, feita diretamente do russo, por Nicolau S. Peticov.

Análise minuciosa
O narrador, que não é nomeado nem identificado, começa o texto descrevendo as paisagens, gentes e habitações das “regiões distantes da Sibéria”, onde vem a conhecer Goriantchikov. Após descrever o comportamento retraído e recluso deste, bem como as tentativas frustradas de travar uma relação mais íntima com ele, tem acesso, após a sua morte, a “uma cesta velha com papéis dele”, dentre os quais estava “um calhamaço cheio da primeira até a página trezentos e tantos com uma letra miúda”. “Certamente”, prossegue o narrador, “o autor não quisera ou não pudera terminar a narrativa que ali se desenvolvia, abordando justamente a vida que havia levado no presídio durante dez anos”.

E acrescenta: “Naquele texto incompleto se alinhavam casos bizarros, recordações por vezes cândidas, redigidas em estilo nervoso, altamente pessoal, também repletas de paroxismos. Reli uma porção de vezes aquelas memórias e acabei chegando quase à conclusão de que tal obra devia ter sido escrita em meio a crises e acessos de alienação mental”.

São afirmações bastante estranhas, considerando-se que o texto é concluído, com perfeição, justamente com a saída de Petrovitch do presídio. E que as características atribuídas ao personagem, não conferem com o que é mostrado no relato deste. Não há, de forma alguma, um “estilo nervoso”, repleto de “paroxismos”. Ao contrário: o relato de Goriantchikov é exato, ponderado e minuciosamente analítico, muito semelhante, aliás, ao do próprio Dostoiévski, na carta por ele enviada ao irmão, conforme dissemos acima.

Afora alguns trechos mais pessoais nos quais Dostoiévski queixa-se do irmão por este não ter respondido uma carta enviada anteriormente por ele e de alguns pedidos eloqüentes de livros e dinheiro, lá está, no livro e na carta, a acuidade impressionante do olhar de um observador arguto da alma humana. E, com nomes trocados, alguns dos mesmos personagens. Exemplo disso é a descrição que ele faz do tirano-mor do presídio, o Major Krivtzof, em tudo igual ao Major descrito por Goriantchikov.

O comandante era um homem decente, mas o major Krivtzof era um canalha entre os canalhas, um indivíduo bárbaro e medíocre, beberrão e implicante, tudo aquilo de mais repugnante que se possa imaginar. Para começar, por causa das razões que nos levaram à prisão, ele tratou a mim e a Durov como imbecis, prometendo nos castigar fisicamente na primeira falta que cometêssemos. Fazia dois anos que ele era major e, durante esse período, já havia cometido injustiças terríveis. Dois anos mais tarde compareceria diante dos tribunais. Deus me poupou disso, diz Dostoiévski, na carta.

Vejamos a descrição feita por Goriantchikov:

Tudo o que Akimitch disse eu pude comprovar durante os dois anos em que vivi sob a tirania daquele homem, e a única coisa que diferiu mostrou-se mais assustadora que a descrição. Aquele homem terrível exercia poder quase absoluto sobre duzentos e tantos detentos. E ele não passava de um sujeito sem compaixão e disciplina. Era como se cada prisioneiro fosse seu inimigo natural, o que anulava qualquer possibilidade de que tivéssemos alguma qualidade a seus olhos. É verdade que possuía qualidades genuínas, mas todas elas, as boas e as más, eram distorcidas por sua personalidade. Violento, de instinto bestial, irrompia por vezes pelo alojamento e, ao se deparar com um prisioneiro dormindo sobre o lado esquerdo ou de bruços, mandava castigá-lo na manhã seguinte. ‘Isto é para você não se esquecer que tem que dormir virado para o lado direito!’ Todos no presídio o odiavam e temiam como a uma peste.

Painel analítico
Na fronteira, portanto, do romance, das memórias, da crônica e da reportagem, o relato pungente da estada de Dostoiévski/Goriantchikov na colônia correcional poderia perder as melhores qualidades de cada um desses gêneros: do romance a possibilidade de mergulhar mais fundo na psicologia de cada um dos personagens, como faria o autor nos seus romances posteriores; das memórias a precisão entre o ocorrido e o narrado; da crônica e da reportagem o levantamento de informações que contextualizassem o drama narrado. No entanto, ocorre justamente o oposto: a caracterização dos personagens (detentos, soldados, carrascos, etc.) é perfeita a partir do olhar externo de um “nobre”, deslocado entre eles; os dados factuais são colhidos no que têm de essencial à narrativa, preservando sua densidade dramática e sua perenidade. E, na precisão do relato de Goriantchikov, nada permite afirmar que não seja um relato preciso das condições reais de vida dos detentos no presídio.

Tudo isso permite ao autor traçar um amplo painel analítico da colônia prisional e de todos os elementos que a compunham: as instalações do presídio, a paliçada sombria, os prisioneiros e seus carcereiros, os procedimentos, a rotina, as sentenças e as execuções, os castigados e seus carrascos, o tédio opressivo e a dura impossibilidade de ficar sozinho, as relações entre os presos e o seu estranho código de ética, as festas, as roupas, a alimentação, as enfermidades, o hospital e os médicos, a agonia e morte dos enfermos, os loucos, os animais, os primeiros e os últimos dias no presídio, os habitantes dos povoados próximos, a fuga e a repressão — e, envolvendo tudo, a paisagem imensa da Sibéria com seus ciclos rigorosos de estações: o outono, a primavera, os verões quentes quando ocorre a marcha dos vagabundos, “a serviço do general Cuco”, e os invernos enregelantes com temperaturas de 40° negativos, difíceis de suportar.

A experiência de Dostoiévski na “Casa dos Mortos” é vista pelos críticos como fundamental na construção dos seus principais romances — os mais profundos da sua obra, a exemplo de O idiota, Crime e castigo e Os irmãos Karamázov. Não apenas no sentido de representar os abismos do ódio e do crime, ou do castigo e da redenção — mas de identificar o que o próprio autor chama de “alma russa”. Como diz, em sua carta ao irmão Mikhail:

Mesmo na cadeia, entre os bandidos, eu acabei por descobrir os homens ao longo desses quatro anos. Acredite: existem naturezas profundas, fortes, maravilhosas, e como é bom descobrir ouro sob uma casca rude. E não apenas um ou dois, mas vários. Há os que não podemos deixar de respeitar, e outros absolutamente admiráveis. (…) À propos, quantos tipos de caracteres eu identifiquei na cadeia! Habituei-me a eles, pois creio que os conheci razoavelmente. Quantas histórias de errantes e de bandidos, e toda aquela vida negra e miserável, que preencheriam volumes. Que povo maravilhoso! Em suma, não perdi meu tempo. Aprendi a conhecer, senão a Rússia, ao menos o seu povo, a conhecê-lo bem, como talvez poucos o conheçam. Eis, pois, o meu pequeno orgulho, perdoável, espero.

Perdoemos o “orgulho” do autor, mas que nos permita uma correção: na sombria prisão, nos confins da Sibéria, entre personagens terríveis e admiráveis, como Sirotkin, Gazin, Aristov, Akim Akimitich, Petrov, Miretski, Luka, Isaías Fomitch, Mickhailkov, e até mesmo como os cães Sharik, Kultiapka, os gansos, uma águia e o bode Vaska, que merecem um capítulo especial — ele iria conhecer não apenas a “alma russa”, mas a alma de todos nós.

Recordações da casa dos mortos
Fiódor Dostoiévski
Trad.: Nicolau S. Peticov
Nova Alexandria
327 págs.
Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881)
Um dos mais importantes escritores russos do século 19. Além dos seus romances mais importantes, a exemplo de Crime e castigo, Memórias do subsolo e Os irmãos Karamázov, publicou contos e novelas que estão entre os mais importantes legados da literatura universal. Preso, aos 24 anos de idade, pelo envolvimento com “radicais socialistas”, passou oito meses preso na fortaleza de São Pedro e São Paulo até ser condenado (numa farsa promovida pelo Czar Nicolau I) ao pelotão de fuzilamento, tendo sua execução comutada, na última hora para trabalhos forçados na Sibéria.
Carlos Ribeiro

É escritor e jornalista, autor de Já vai Longe o Tempo das Baleias e O Chamado da Noite, entre outros.

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