A utopia — a socialista em primeiro lugar — sonhava em sua temeridade técnica com o cidadão completamente culto. Conjurava-se um estado de coisas em que o ser humano, libertado das labutas do cotidiano e contemplado com um tempo livre desmedido, poderia dedicar-se às artes, ativa e passivamente. A ciência e a técnica facilitariam nossa vida de tal maneira que poderíamos — enfim!— abandonar o reino da necessidade e transferir-nos para o reino da liberdade.
Por que essa idéia, outrora verossímil, não se concretizou? Não é verdade que temos mais utensílios, mais aparelhos, mais máquinas do que nunca, para ganhar tempo para coisas mais importantes que o trabalho? E temos também mais tempo que as gerações antes de nós — por que não o aproveitamos de maneira esperada? Apesar da crise econômica, continuamos sendo privilegiados com segurança material. O bastante para seguirmos nossas inclinações criativas e receptivas — por que sentimos mesmo assim um mal-estar na cultura? Por que nosso interesse pelas criações culturais é tão moderado?
Nos difíceis velhos tempos, que por causa da importância abrangente da arte eram bons tempos, um livro ainda provocava discussões; uma exposição, polêmicas; uma representação teatral arrebatava o público. Águas passadas. Ficou somente a questão da atribuição de culpa. A culpa é nossa, dos leitores, espectadores, ouvintes, de ficarmos tão pouco impressionados, ou a responsabilidade cabe às obras, aos autores? A cultura continua em expansão, constroem-se museus, apresenta-se um número cada vez maior de livros nas feiras, realizam-se concertos — e apesar disso manifesta-se como que uma sensação de abatimento. A gente não espera mais com curiosidade o novo romance de Fulano ou o novo filme de Sicrano.
As atividades ainda continuam. Publicam-se livros, escrevem-se críticas, mas tem-se a impressão de que as atividades se esgotam no vazio. Ontem impresso, hoje lido, amanhã esquecido. A literatura sobretudo dá a impressão de estar acometida de um peculiar processo de decomposição, que reduz a resistência temporal da publicação, ou até a elimina completamente. A prova dos nove é tentar lembrar-se das próprias leituras de cinco ou dez anos atrás. Caso a gente ainda se lembre de alguns títulos ou nomes de autores, é porque tem sorte ou apenas uma boa memória. Para mim é claro que as editoras não podem ter constantemente um Thomas Mann em seu programa, um Kafka, Musil ou Brecht. E supondo que esses milagres ainda acontecessem — a recepção da grande literatura não teria a menor semelhança com a de antigamente. Não somos mais os mesmos leitores de ontem. Nossa atenção mudou, juntamente com nossas paixões; sim, poder-se-ia dizer: com nosso sensório.
Não se trata aqui de uma reprimenda à técnica, nem de queixas e lamentações sobre a cultura; trata-se da tentativa de investigar as transformações da arte, da literatura e as dos leitores, pois essas transformações condicionam-se e fomentam-se mutuamente. Embora tenhamos mais tempo livre, como foi mencionado acima, falta-nos o sossego para aproveitá-lo. Nosso biorritmo individual, influenciado pela aceleração crescente de nossa maquinaria social, não corresponde mais ao processo já arcaico de ler com calma. Faz tempo que estamos contagiados pela impaciência, pela inquietação, que exige uma distração cada vez mais intensa, estímulos cada vez mais fortes, para ser suportada. Quantas vezes se ouve a frase, pronunciada provavelmente para expressar lástima: “Só nas férias é que tenho tempo de ler”. Se a gente insiste, fica sabendo que o livro ficou em casa ou dentro da mala, pois a pessoa queria “descansar de verdade”. Para isso, no entanto, a literatura não se presta, na melhor das hipóteses a literatura trivial.
Aquela notória frase de Heinrich Mann: “os livros de hoje são os atos de amanhã” há muito que saiu de cotação, se é que teve validade alguma vez. Caso sim, então só no sentido negativo, de que os livros de certas filosofias de vida duvidosas contribuíram para os crimes subseqüentes.
A convivência rápida com a literatura, sua recepção apressada, desde que exista uma recepção, prejudicou a capacidade de se envolver a fundo com a matéria escrita. Mal a gente abre a primeira página de um livro, já vão brotando nas tipografias os novos lançamentos, pedindo para serem comprados. A produção de livros foi engolida pelo sorvedouro da produção em massa generalizada, o que naturalmente não ficou sem as conseqüências correspondentes. Não é só o leitor que tem pressa; também a editora, que precisa apresentar permanentemente novos lançamentos, criando com isso uma atmosfera que incita o autor à pressa. Um escritor sobre o qual não se fala durante dois ou três anos deve ter morrido, ou então mudou de profissão.
De forma alguma a aceleração do ritmo deve ser atribuída somente à aceleração geral dentro da sociedade. Ela é produzida por um motor que excede tudo o que existiu até hoje, no que diz respeito à produtividade pseudo-artística: a televisão. Este meio de comunicação fornece ao espectador, numa coerência incrível com ele, aquilo que ele necessita, aquilo para que foi adestrado e condicionado: velocidade, distração, adaptação total dos sentidos da visão e da audição. Tudo isto fazendo uso de um meio roubado à literatura: a narrativa. A televisão adota a estrutura de uma narração, com começo, auge e catarse final. Contudo num ritmo que um leitor jamais conseguiria acompanhar, se quisesse ler a história mostrada na televisão em forma de livro. E nem estou falando com isso dos diferentes princípios e qualidades estéticos, mas somente da forma de recepção.
Como leitor, precisava-se antigamente de várias noites, para um romance de Max Frisch por exemplo, folheando de vez em quando para trás, refletindo sobre a mensagem, exaurindo uma locução, uma frase lida duas vezes. Hoje, como espectador, a gente consome o mesmo romance, processado em imagens, no espaço de noventa minutos. É evidente que com menores conseqüências, porque deixa de existir o esforço de traduzir na mente primeiramente o elemento abstrato do texto para algo visível.
Abstenho-me de resto de qualquer julgamento e pergunto-me apenas se a atual precariedade na literatura alemã não se baseia em determinadas disposições, em disposições que podem ser definidas. Quer dizer, por exemplo, que alguém que pega um livro, mas interiorizou inconscientemente o modo de recepção da televisão, tem de sentir tédio. Sua expectativa subliminar não é satisfeita, porque aquilo que lhe é oferecido exige um outro método de abordagem. Quem está acostumado a caminhos curtos mostra relutância diante dos mais longos.
Além disso ouve-se também que o que falta à literatura de hoje é a experiência de vida de seus autores. Não sei se uma vida emocionante produz ao mesmo tempo livros fascinantes. As experiências de vida de Kafka também não foram excessivamente empolgantes, e sabemos de outros escritores alemães famosos que mal se afastavam de suas escrivaninhas. Provavelmente não é a experiência como tal que falta, e sim a capacidade de processá-la. É bastante plausível que as tais experiências sejam filtradas intelectualmente, antes de poder desenvolver-se na psique. O autor já sabe demais, sua semiformação científica faz com que ele classifique, avalie, julgue tudo aquilo que lhe sucede, antes que possa chegar àquele ponto em que ele deveria ser imortal.
Com o leitor acontece praticamente a mesma coisa. Seu cérebro é uma esponja, encharcada de informações de proveniências as mais contraditórias, repleta de fragmentos das mais diversas áreas do conhecimento, que impedem que ele se entregue ingenuamente a sua leitura. Ele só continua acessível ao exótico, por exemplo o da literatura latino-americana, porque aqui se movimenta em território estranho, sem os flancos dos conhecimentos, o que o torna mais receptivo.
Além disso, parece-me que a palidez dos incontáveis impressos corresponde aos pensamentos de seus confeccionadores. Os autores alemães são ideologizados e politizados em demasia, como em nenhum outro país. Intencional ou involuntariamente, manifesta-se um momento apelatório que prejudica a obra em si. Perdemos a inocência do ver e do experimentar, porque queremos classificar os fenômenos imediatamente de acordo com uma cosmovisão. Não pode haver outra explicação, senão a de que os escritores alemães, no esforço de investigar e esclarecer diversas catástrofes nacionais, sofreram graças a essa circunstância uma certa limitação no que diz respeito à reflexão. Perdeu-se em grande parte a noção de que escrever significa ao mesmo tempo descobrir, sem pressentimento do resultado. A razão, que tudo domina, recusa ao escritor o prazer proporcionado pelo incerto, por personagens e uma história que se desenvolvem por si próprias.
Resumindo em uma palavra: a literatura é comedida, singela, bem-intencionada, avessa a todos os extremos — não há como negar, ela é o reflexo de seus leitores potenciais, pelo menos dos leitores que o autor deseja e imagina para si. Só que, tendo o leitor como parâmetro, não se pode produzir nada de substancial.
Outro fator que coloca a literatura em perigo resulta da ruptura entre as gerações, que é mais incisiva que em quaisquer outras épocas. Como escrever para pessoas que já falam hoje uma outra língua, sentem de maneira diferente, agem e reagem de outro jeito, para além da moral tradicional, que se tornou assustadoramente frágil? Chegamos como que diante de um divisor de águas, em que as palavras de Brecht “depois de nós não virá nada de notável” ameaçam obter um conteúdo completamente novo. O que temos pela frente não são os empenhos resultantes das diferenças de níveis, e sim os empenhos em sobreviver, e aí a importância da literatura será provavelmente mínima.
O filósofo Herbert Marcuse, que quase não é mais lembrado, há tempos expressou esta evolução de maneira profética, ao fazer o seguinte apontamento: “Um fim da arte só é imaginável se as pessoas não conseguirem mais distinguir entre verdadeiro e falso, bem e mal, belo e feio, presente e futuro. Seria o estado da perfeita barbárie no apogeu da civilização — e um estado como esse é de fato historicamente possível”.
Quem vai duvidar? Mais isto não significaria que os escritores representam um gênero em extinção? Primeiro morre a língua, depois seu autor. O que está acontecendo agora não é de forma alguma somente a decadência da língua; trata-se antes de uma redução do significado, de um atrofiamento de sua riqueza semântica. Quando a palavra só é compreendida em seu caráter evidente de signo, sem qualquer noção da riqueza de acepções a ser deduzida, a literatura morre nas histórias em quadrinhos.
A literatura vive de seu ser ambivalente; ela é ao mesmo tempo sucedâneo da vida e entretenimento, compensação da deficiência eterna e educação para um pensamento mais diferenciado.
Esclarecer se a literatura ainda cumpre suas tarefas mediatas é algo que precisa ficar reservado a um estudo mais abrangente. Parece contudo que a cultura, com sua função compensativa, já não possui o mesmo equilíbrio de antigamente. Talvez a literatura tenha perdido o prestígio como mediadora de sentido, resultando sua casualidade da posição perdida. Porém, que sentido ela poderia mediar, que deficiência compensar, numa época em que a palavra transcendência nada mais é que um termo erudito?
Nossa opção historicamente precoce pelo pensamento instrumental contemplou-nos com uma civilização tecnicista, a que estamos amarrados, sejam as vacas gordas ou magras. O tempo de vacas gordas já se foi, o de vacas magras virá. Nada ficará intato no imponente mecanismo que acreditamos comandar — por que a literatura deveria constituir aí uma exceção?
Texto reproduzido da revista Humboldt