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"O sentido de um fim", de Julian Barnes, carrega uma estrutura engenhosa e nenhum sentido
Ilustração: Julian Barnes por Leandro Valentim
01/01/2013

Olhe para a imagem do livro nesta página. Retire mentalmente as pequenas letras que se interpõem ao título e ao nome do autor. Quando Suzanne Dean, que era muito experiente, chegou a essa imagem, 19 outras capas e algumas semanas extras já haviam sido gastas. Ela pensou primeiramente em algo que me lembrou ossos, ou um cérebro humano; depois em uma agenda ou um diário, em que a palavra “sentido” somente era visível graças a um rasgo de várias folhas que a expunha, numa página mais avançada — era possível escolher qualquer capa para um romance como aquele. Por um momento chegou a considerar opções tristemente convencionais: os rostos colados de um jovem casal, dois velhinhos caminhando abraçados. Mas, não demorou, estava manipulando imagens de relógios e outros tipos de ferramentas de medida. Então, chegou a esse fundo branco e a essas letras fugidias, acompanhadas de um relógio de pulso com a face virada para dentro, que logo foi trocado por um de bolso, espatifado, parecido com os de Dalí, e finalmente às pétalas de dente-de-leão que se vêem agora — quase como uma desistência, percebe?

O esforço valeu. Repare na sofisticação da imagem em que os únicos elementos negros são na verdade objetos brancos ofuscados por uma névoa ainda mais clara. Veja como os movimentos dessas pétalas delineiam sua origem, sem que uma flor, de fato, apareça. Note como a área escura, à qual as letras se encaminham, estende-se ao longo das páginas de cor clara e borda negra. Perceba como tudo isso conflui para que algo pareça esconder-se atrás da névoa. Somente nesta última versão, Suzanne teve a sensibilidade de não pôr as letras amarelas que mencionariam o prêmio Cohen recebido pelo autor; e quando Barnes recebeu o Booker, circulou a piadinha de que a organização julgou o livro pela capa. Ela havia dito que queria captar a “alma” do romance e, de fato, a sensação de quem fechava o livro era, por assim dizer, de estar ali, perplexo diante do nada. Mas sempre tive a impressão de que essa “alma” ficou no processo. Dispersa em meio a vinte imagens sem qualquer relação entre si. Na cena de uma profissional séria incapaz de decidir-se a respeito de um romance.

Compreensão
De todo modo, nem Suzanne e muito menos eu podemos oferecer uma metáfora ao romance. Ela ainda foi a única a pensar em uma alma para ele. O interesse geral era por outro de seus aspectos. Algo a que senhora presidente do júri do Booker fez menção, dizendo que o romance tem o registro clássico inglês e traz profundas revelações a cada leitura, mas que, só depois de o livro se tornar um best-seller, uma simpática jovem americana chamou graciosamente de “kind of astounding structures of cognitive inducement” [tipo de chocantes estruturas de indução cognitiva]. É da opinião de alguns ingleses, e da qual compartilho, que o auge tardio de Barnes supere até mesmo o melhor de Ian McEwan, cuja indução, como se sabe, também é “chocante”.

Anthony, ou Tony, narra com uma linearidade despretensiosa como conhece Adrian no colégio e posteriormente namora Verônica, na faculdade. Depois, como Adrian começa a namorar Verônica e, em poucos meses, suicida-se. Então, como recebe de herança da mãe de Verônica, quarenta anos depois, uma pequena quantia e o diário do amigo de escola — o qual já deveria ter recebido, caso este item não tivesse sido roubado por Verônica. E, enfim, como descobre — de modo a evidenciar uma fresta em sua comportada cronologia — que o motivo desse roubo é o de ocultar a história do homem mentalmente deficiente que Adrian concebeu, não com Verônica, mas com a mãe desta. Hoje, não há mais dúvida sobre isso. Mas, na época, houve quem jurasse teorias alternativas, como a mãe de Verônica ter somente assumido a criança da filha ou o verdadeiro pai ser, na verdade, Tony.

E tudo isso não é fruto de leituras meramente ingênuas. Pelo contrário, leitores atingidos tão somente graças ao sucesso de vendas foram os que menos tiveram dificuldade de entender os fatos do enredo e mais distantes ficaram de sua compreensão. O caso era que aquele simpático romance — ou mesmo novela, para os mais conservadores — fluía de forma agradável, é verdade, mas sem qualquer preocupação de que seus personagens causassem empatia no leitor, até que — surpresa! — uma reviravolta na última página o obrigava a convencionalmente compreender os sentimentos de cada um deles.

Essa compreensão, no entanto, acaba sendo efetuada a partir de um insistente exercício de memória, cuja linha segue do fim para o início, pondo para fora as engrenagens da perfeita ordenação de fatos que se sucedeu até então. Apesar de ser uma situação muito diferente, isso me lembra as longas notas sobre seus personagens que fazia Faulkner e que, após ter se tornado um clássico, começaram a ser incluídas em posfácio aos seus romances.

Este era Finn:
Adrian. O qual, embora poucos leitores lembrem ao fim do livro, encara com naturalidade o fato de a mãe ter deixado o pai, possivelmente por um homem mais novo, e possui um senso moral complexo demais para seus colegas. Sendo brilhante e reservado, provavelmente não tarda a achar Verônica imatura e artificial. Seguindo o conselho do amigo ressentido, Tony, consulta Sarah, mãe de Verônica, para saber de sua filha. Começam uma relação às escondidas que, com uma repentina gravidez, coloca-lhe na posição do hipotético jovem amante de sua mãe que fora responsável por “desfazer seu lar”. Ainda assim, é possível que tenha proposto a Sarah uma fuga, ou vice-versa, que qualquer um dos dois teria motivos lógicos para recusar. Em todo caso, impotente em relação ao futuro filho e à mulher pela qual estava apaixonado, mas com a opção de ignorar os fatos e seguir sua vida, o suicídio visceral seria pouco razoável, porém não o sóbrio e ponderado (aliado ainda a uma longa e calma explicação filosófica de a vida ser um presente inusitado ao qual cabe a cada um permanecer ou não com ele, de acordo com suas reflexões).

Estas eram Fords:
Sarah. Mãe de Verônica, através de um ar artístico destoa da família arrogante e mais privilegiada que a de Tony (ou será essa apenas a impressão anacrônica do narrador?). Que o trata com modéstia e lhe diz para não se deixar maltratar por Verônica (seria uma demonstração de caráter ou inveja?). Ousada o suficiente para dar ao filho, supostamente do marido, o nome de um namorado suicida que a filha teve, e após a subseqüente morte do pai de Verônica, em decorrência da bebedeira cada vez mais regular, vender a casa, estudar artes, se mudar para Londres, começar a fumar e a receber inquilinos, mesmo contando com uma boa pensão. De natureza atraente para o prodígio Adrian ou, ainda que não pareça provável, uma dissimulada sedutora de meninos. Estando desencarregada do sustento de seu filho, amparado pelo governo, deixa o dinheiro para Tony, ao que tudo indica por ter sido ele responsável de se conhecerem ela e Adrian.

Verônica. A qual, quando perguntada pela herança em dinheiro, afirma ser “dinheiro sujo de sangue”. Que, portanto, (ainda que cultive grande afeto pelo irmão mais novo) culpa sua mãe, provavelmente com razão, não apenas pela morte de Adrian, mas também pela do pai. Caracterizada, sobretudo, como inapreensível e possivelmente manipuladora, em contrapelo à estrutura do romance que, embora também o seja, não o é a seu favor. 

Espessa névoa
Mas o que me parece é que cada um deles, por mais obscuro que pareça, apenas te induz em retrocesso a uma origem fora de seu campo de visão. Essa origem é Tony, que sempre se julgara manipulado pelas circunstâncias e, no entanto, se descobre responsável por elas; que não cultiva a autocomplacência, mas descobre que sua memória a cultivou por ele; que se surpreende com uma carta que ele mesmo escrevera — “fora seu autor na época, mas não era seu autor agora” — e, afinal de contas, revela-se um astucioso articulador de uma narrativa aparentemente espontânea e subliminarmente calculada — muito embora afirme não ser bom em matemática.

Não parece haver motivos para perguntar-se, ao fim do livro, o que levaria Tony a conduzir seu relato como o fez, de modo ainda mais manipulador que o tempo fora com ele. Afinal, ele só quis seguir a ordem cronológica e “sensorial” dos fatos, não? Ou será isso incompatível com a obscura ordenação de episódios que abre o romance, mencionando obliqua e respectivamente as páginas 12, 36, 121, 43, 99 e 56? Com seus tempos de colégio consistirem inteiramente em aulas de história e de literatura recheadas de espelhamentos? Ou haverá algo de incoerente em que, a meia narrativa, Tony prenuncie seu desfecho através de uma equação numérica? Talvez, não.

Tony descobre que viveu o tempo todo à margem de uma história cuja semente fora ele que plantara. E você descobre que a todo tempo leu uma narrativa à margem do que deveria ser o seu enredo. Não à toa, Tony é historiador e, menos à toa ainda, Barnes é um romancista híbrido. Em Uma história do mundo em dez capítulos e meio ou O papagaio de Flaubert, contudo, os gêneros biográfico e ensaístico se afirmam à medida que estão presentes. Em O sentido de um fim, o modo de organização tipicamente historiográfico apenas é delineado para que você mesmo o efetue. Não cabe deduzir aqui um personagem a partir de um episódio — mas precisamente o inverso — porque, se a concepção e a vida do filho de Adrian não é contada, se a trama central não se compõe de narrativa, o enredo se condensa com a interpretação e torna-se também volátil.

A narrativa não metaforiza propriamente o tempo, ou a memória. Propriamente não metaforiza coisa alguma. “Se mantém com a força interna do estilo.” É um livro sobre nada e sobre si mesmo, onde uma equação numérica diz respeito a seu desfecho e seu desfecho tão somente a uma equação numérica, até que surja algo em meio a ossos e estruturas, rasgos e frestas, sentimentos, engrenagens e uma origem fora de seu campo visão, ou talvez dentro demais da névoa.

O sentido de um fim
Julian Barnes
Trad.: Lea Viveiros de Castro
160 págs.
Rocco
Julian Barnes
Nasceu em Leicester, Inglaterra, em 1946. Foi indicado quatro vezes para o Booker Prize, vencendo-o com O sentido de um fim (2011). Francófono, traduziu Alphonse Daudet para o inglês e tem Flaubert como grande influência. Suas dezenas de livros, entre romances, contos e ensaios, lhe garantiram considerável reputação como “um autor que lida com a história, a realidade, a verdade e amor”. O papagaio de Flaubert, De frente para o sol e Nada a temer são alguns de seus livros publicados no Brasil.
Rafael Dyxklay

É crítico literário e tradutor de obras de Charles Dickens, entre outros.

Rascunho