Era uma vez um padre católico que vivia no Sul da França, em meados do século 13. Este padre andava um pouco descontente com a atuação da Igreja, ou melhor, com as orientações que recebia do Vaticano. Fiel seguidor dos ensinamentos de Cristo, leitor contumaz da Bíblia, o padre não conseguia se conformar com seus colegas de batina. A maioria deles não seguia preceito algum de pobreza, de negação dos prazeres da carne ou de busca de aprimoramento espiritual. Ao contrário, entregavam-se ao sexo, às orgias gastronômicas e ao acúmulo de posses, aproveitando-se de seu mandato divino, de representantes da Igreja em suas comunidades.
A cada dia, este padre interessava-se mais pelas seitas dualistas que proliferavam no Sul da França, na Suíça e naquilo que viria a ser a Alemanha. Estas seitas “encaravam toda criação material como intrinsicamente má, obra de uma divindade menor e inferior. (…) Só no reino do espírito residia a verdadeira divindade” (pág. 23). Havia várias seitas dualistas, entre elas os bogomilos, os maniqueus e os cátaros. Todos eles eram cristãos, mas não seguiam as doutrinas professadas pelo Vaticano. Aliás, tinham verdadeira ojeriza a elas, e consideravam a instituição Igreja uma deformação dos verdadeiros ensinamentos de Cristo.
Não demorou para o Vaticano perceber que estas seitas representavam uma verdadeira ameaça para o seu poder. E, pela primeira vez na História daquela Igreja, que completava seu 12º centenário de existência, ela se viu obrigada a enfrentar dentro das fronteiras européias e perigosamente perto dos limites de influência geográfica do Vaticano idéias contrárias às suas. Para combater estes hereges (julgamento único e exclusivo do Vaticano), foi criada a Cruzada Albigense, a primeira que atuou na Europa, e que usou da mesma violência perpetrada na reconquista de Jerusalém. Foi um verdadeiro massacre, e nosso padre, por receio, escondeu-se.
De alguma maneira, porém, nosso padre chegou ao Brasil do século 20. Novamente descontente com a atuação da Igreja, ele assistiu com verdadeiro júbilo às decisões do Concílio Vaticano II e da Conferência de Puebla (México), que no final dos anos 60 e início de 70, reaproximaram o clero do povo, dos excluídos, aqueles de quem Jesus falava em suas orações. Durante alguns anos, os padres conseguiram atuar junto às populações menos favorecidas, principalmente por meio das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e das Pastorais, que ainda hoje atuam (vide a da Criança, da Terra, dos Presidiários, entre outras). Houve até quem se aventurasse a escrever e teorizar sobre isso, como frei Leonardo Boff, na sua Teologia da Libertação.
Não demorou para a alta cúpula do Vaticano perceber um novo desvio da política central da Igreja. Enquanto na ponta mais próxima aos fiéis se debatiam problemas como a superpopulação, a pobreza, e desigualdade econômica, de violência contra as mulheres, de igualdade dos sexos, dentro dos muros do Vaticano se falava em proibição de toda e qualquer política de controle de natalidade, de permitir a pílula, de indissolução do casamento, da proibição do sacerdócio feminino, entre outros atrasos.
Novamente, os cardeais que mandam no Vaticano perseguiram que ousasse pronunciar sua palavra contra a doutrina central da Igreja. Nesta muitas vozes foram caladas, como a do frei Boff, a freira brasileira Ivone Gebara, a freira americana Carmel McEnroy, o padre do Sri Lanka Tissa Balasuriya, o padre americano Matthew Fox, todos por dizerem o que pensavam. Todas caladas pela Congregação para a Doutrina da Fé, comandado por uma figura que, se entrar para os anais da história, terá como sinônimo vileza: o cardeal Joseph Ratzinger.
A coincidência é por demais assustadora. Afinal, do século 13 ao 21, são quase 800 anos de experiência. No entanto, na Cruzada Albigense nascia a experiência mais retrógrada, repugnante e de triste memória de que pode ter a Igreja Católica, como bem demonstram os historiadores Michael Baigent e Richard Leigh em A Inquisição (Imago, 332 págs., 2001, tradução de Marcos Santarrita). Infelizmente, como se verá a seguir, ela ainda não acabou.
Baigent e Leigh retratam a evolução histórica da Inquisição Católica, que não deve ser confundida com aquela instituição nefanda mais conhecida, que foi a Inquisição espanhola, comandada pelo prior Tomás de Torquemada, que até hoje representa “a face mais aterrorizante da Inquisição” (pág. 82). Das origens na Cruzada Albigense, passando pela institucionalização para perseguir “desvios de fé” até os dias de hoje, vemos o que pôde ser feito (e ainda é, em alguns casos) para preservar a instituição acima das questões de crença.
Aliás, é necessário distinguir entre espiritualidade e religiosidade. Enquanto a primeira é muito mais uma manifestação individual, a segunda representa a formalização de ritos em nome de uma entidade terrena. Muitas pessoas, talvez a maioria do planeta, acreditam em algum tipo de divindade superior como reguladora de nossas atividades na Terra. Em alguns casos, estas crenças foram institucionalizadas, inclusive como forma de sobrevivência de grupos, como foi o caso dos judeus, que ao contrário do que se pensa, não foram sempre monoteístas. Isto está bem explicado no livro Cosmos, Caos e o mundo que virá (Companhia das Letras, 368 págs., 1999), de Norman Cohn.
Já a religião significa a formalização de ritos e hierarquias para a preservação de uma organização que, em teoria, serve para garantir o futuro da espiritualidade comum a todos os seus seguidores. Vemos que no início do século 21 o grande problema da Igreja Católica está em conciliar o diálogo multiconfessional com a frase que a “única salvação está em Jesus Cristo”, um de seus dogmas.
Voltando à Inquisição, esta é basicamente a luta de uma instituição contra todo e qualquer tipo de pensamento que tentou modificar uma vírgula sequer de sua doutrina. Dentro desta visão foram perseguidos, em primeiro lugar, os cátaros, pois pregavam uma vida de contrição, pobreza, e cujos pregadores professavam a escolha da pobreza, conquistando a simpatia de muitas pessoas, e a atenção do Vaticano, que viu ali a possibilidade de surgir um enclave no seio da sua área de influência.
Logo em seguida, vieram os judeus, os muçulmanos, os protestantes, os iluministas (estes por pregarem a razão acima da fé irracional), as bruxas e quem quer que fosse contra o Vaticano. O caso das bruxas é típico de como atuava a Igreja para tentar manter o seu domínio de qualquer maneira. As bruxas na verdade eram mulheres, geralmente anciãs, que em sua vila ou aldeia eram as pessoas que detinham o maior conhecimento sobre coisas práticas da vida, como a propriedade de ervas medicinais, o conhecimento sobre as pragas do campo. Eram também as “bruxas” as encarregadas pelos partos da região, e não raro eram também conselheiras de outras mulheres. Os padres da época sentiam uma inveja enorme da influência que estas mulheres exerciam sobre as aldeias, e para acusá-las de práticas de magia negra foi um passo. Muito conhecimento foi queimado nas fogueiras da Inquisição.
Data do início da inquisição, no século 13, a criação de uma das duas ordens fundamentais para a compreensão da Igreja moderna, os dominicanos. Estes nasceram sob a inspiração do subprior Dominic de Guzmán, espanhol. Homem de dons retóricos, ele foi visto à época como a pessoa capaz de combater os pregadores cátaros à altura, pois estes eram cultos e conquistavam fiéis utilizando a Bíblia. A necessidade de haver mais “dominics”, enquanto a maioria dos padres era ignorante, motivou a Igreja a apoiar a criação dos Dominicanos.
Já os jesuítas são de um período posterior, de 1540, e nasceram sob a influência de Santo Inácio de Loyola, outro espanhol que tinha ideais militares, mas que por acidentes de guerra resolveu dedicar sua vida ao ensinamento da palavra de Cristo. O modelo criado por Loyola, de ensinar, pareceu ideal para o Vaticano para levar a fé cristão ao Novo Mundo recém-descoberto. Os jesuítas foram uma inspiração para transformar a Inquisição em Santo Ofício, em meados do século 16. Foram eles também os principais responsáveis por trazer a inquisição para o Novo Mundo. E ainda que ela não tenha surtido muito efeito, tentou em algumas ocasiões lançar seus tentáculos de ódio sobre as Américas.
A diferença entre a Inquisição do Vaticano e a Espanhola é que esta serviu a um propósito nacional, enquanto a outra tinha um “mais nobre objetivo” de proteger a fé. Fernando de Aragão, soberano da Espanha em 1488, ainda lutava para expulsar os mouros da Península Ibérica. Vendo como funcionava bem a perseguição da Igreja aos hereges em outras partes do continente europeu, criou uma inquisição toda sua, ligada à coroa, para expulsar muçulmanos e judeus (estes, com a freqüente acusação de concentrarem muito poder econômico, como se repetiu na Alemanha Nazista) e unificar o reino Espanhol. A inquisição espanhola funcionou como uma polícia secreta a mando do estado, e, pasmem, só foi extinta oficialmente em 1834, depois de três séculos e meio de existência. Segundo os autores, ela deixou “a Espanha num estado do qual só agora começa a se recuperar”.
Entre as razões que existiram para minar a importância da inquisição, e não hesitaria em dizer Graças a Deus, estão o protestantismo, que colocou a Bíblia na língua comum, e não mais em latim, nas casas das pessoas, eliminando a interferência do padre para a sua interpretação ou leitura, e os avanços da ciência, seja técnica como social, principalmente com os iluministas e os ideais da Revolução Francesa, de 1789. A partir daí, a Igreja deixou de ser uma referência central na vida das pessoas, e a inquisição perderia seu poder de intimidação junto à maior parte do planeta.
No entanto, a preocupação com a manutenção do status quo da Igreja não permitiu que ela acabasse de maneira absoluta. Como dito no início do texto, a perseguição a pensadores heterodoxos da fé cristã por parte das altas autoridades do Vaticano lembra muito a época negra da Igreja. Na verdade, a ligação entre a Congregação para a Doutrina da Fé, de Ratzinger, e a Inquisição. Pois bem, a Inquisição, ou melhor, a Sacra Inquisição Romana e Universal, também chamada de Santo Ofício, em 1908 se tornou a Sagrada Congregação do Santo Ofício e, em 1965, Congregação para a Doutrina da Fé. Se a culpa ou é dos pais, pela educação, ou dos avós, pela hereditariedade, o Vaticano é duplamente culpado.
P.S.: A propósito de perseguição, o Index Librorum Prohibitorum (índice de livros proibidos) da Igreja Católica foi abolido apenas em 1966, pelo Papa Paulo VI.