6 bilhões de solitários seres humanos

A sensação não nos deixa. Aliás, ela é a única companhia enquanto caminhamos pelas calçadas
Sonia Coutinho: profunda solidão em 14 contos
01/07/2001

A sensação não nos deixa. Aliás, ela é a única companhia enquanto caminhamos pelas calçadas. É ainda pior quando vamos às ruas em vésperas de feriados, em dias de comemoração, quando o comércio abarrota o espaço físico com cartazes e caixas de som anunciando ofertas (paliativos?) para deixarem as pessoas felizes. O que vemos, no entanto, são centenas, milhares de pessoas, cada uma fazendo as suas coisas, sem olhar para o lado. Todas parecem buscar a companhia de alguém, ou a harmonia familiar dos comerciais de margarina, ou ainda a alegria da festa com os amigos mostrada nas propagandas de cerveja. No entanto, mesmo acompanhadas, elas seguem sozinhas.

Não são poucas as situações em que percebemos mais claro este sentimento de solidão. Em uma arquibancada de futebol, o que vemos é um grupo de pessoas, cada uma solitária, sozinha, sem conhecer quem é seu vizinho, gritando por seu time, normalmente um agrupamento de 11 profissionais que também não se conhecem, mas a todo momento ressaltam a importância do coletivo. A “galera” tenta agir uniformemente, mas o que se vê é um ajuntamento momentâneo, uma tentativa das pessoas de pertencerem a um grupo, ainda que por 90 minutos somente.

A sensação é que estamos sós. Apesar de todo o aparato tecnológico que temos à nossa disposição hoje em dia — celular, internet, telefones por toda a parte, rádio, televisão, câmaras de vídeo, pagers e o que mais for — o homem nunca foi tão solitário. Mesmo o amor parece ser uma busca desesperada por uma bóia de salvação que nos livre da solidão, nunca uma maneira de dividir boas sensações com alguém. O ser humano, ainda que involuntariamente, é um misantropo. E a situação parece piorar a cada dia.

Descrever este sentimento parece ser fácil, mas não é. Como ele se encontra difuso, são múltiplas as suas manifestações. Conseguir isolar algumas delas foi o mérito de Sonia Coutinho, autora de Mil olhos de uma rosa (Editora 7letras, 120 págs.). São 14 histórias de pessoas solitárias, nunca por escolha própria, mas levadas a uma existência praticamente privada de convívio com outras pessoas. A falta de contato torna a vida das personagens de Sonia factível, pois não é difícil imaginar que muitas pessoas da vida real levem suas existências deste jeito, desapercebidas dos olhos de vizinhos, ignoradas até mesmo por suas famílias.

Veja o exemplo da protagonista do conto Sagrada Família. A protagonista é uma mulher que abandona sua cidade natal, Solinas, um lugar fictício no Nordeste brasileiro, para viver no Rio de Janeiro. A protagonista narra que sempre houve uma sensação de isolamento dentro de sua casa. Ela, aliada ao pai, contra sua mãe, aliada ao irmão, vivia em brigas e jogos de ciúmes. É uma família fragmentada, que nem as mortes poderiam unir, pelo contrário, só foi capaz de separar mais ainda. Cada lance na casa antiga era registrado na memória da personagem, como cicatrizes fundas provocadas por ferros em brasa. A dor acumulada, o isolamento que sentia mesmo rodeada pelos seus, vem à tona quando, por ocasião da morte dos pais, ela tem que escolher entre a casa de tristes memórias, mas de valor comercial, e um terreno de difícil negociação. Para evitar brigas e confrontos, ela fica com o terreno, uma decisão que ao final de sua vida se mostra errada.

O isolamento também vem das atitudes e palavras das Antigas Amigas (no maiúsculo mesmo. Sonia usa a caixa alta para marcar pessoas ou fatos que são centrais na sua narrativa, ou melhor, na vida de seus personagens). Novamente, a história de uma nativa de Solinas que vai para o Rio de Janeiro e, apesar da distância mantém o contato com sua família e as Antigas Amigas. Elas, no entanto, têm o que Tom Jobim uma vez falou que é o grande mal dos brasileiros: a inveja do sucesso alheio. E depois da dispersão de sua família, por morte, roubo e doença, vê a torcida das amigas para que ela também se dê mal. E a nossa protagonista, relutante em acreditar que o ser humano é capaz de tal vileza, só percebe isto quando realmente perde tudo. Neste instante, Baby, uma das Antigas Amigas, ao saber das desgraças da protagonista, troca uma conversa no telefone com a velha conhecida por uma sopa de cebola.

Poderia contar muito mais, mas seria tirar o prazer da leitura. Mas não é possível deixar de indicar Summer in Rio. De tão possível de acontecer, o conto é perturbador. Afinal, quantos são os casos de pessoas desaparecidas que estão nos jornais a cada dia? Mas estes são favorecidos (?) pois têm alguém que se lembra deles. E quantos casos de desaparecimento não estão nos periódicos, pois ninguém se lembra destas pessoas?

Este é o caso daquela mulher de cerca de 40 anos, que mora sozinha e trabalha como autônoma, que sofre com um corpo que já não lhe é mais de seu agrado. Ninguém se importa com sua existência, a não ser um voyeur do outro lado da rua, que esconde a sua solidão atrás dos binóculos. Sonia chama a sua personagem de Mulher que Desistiu de Muita Coisa. Mas ela desaparece, e o único que nota isto, ainda que tente negar, é seu voyeur. Mas ele não sabe exatamente quem ela é, tem apenas uma vaga idéia. E assim passam os personagens de Sonia.

A narrativa passa longe de uma tentativa de dar movimento às ações e aos personagens, para que logo eles se tornem um filme. Sonia concentra sua narrativa nas batalhas mentais, nos devaneios pessoais, no amargor acumulado ao longo dos anos. Sonia usa as palavras com sabedoria e exatidão, sem se perder em longas descrições de espaços, principalmente porque a solidão não carece de ambiente, ela está em todo o lugar. Um estranho paradoxo, há seis bilhões de viventes no planeta, e eles mal se conversam. Sonia, no entanto, sabe dizer o que pensa, e o que a incomoda, ou melhor, nos incomoda.

Eu particularmente gosto de livros que deixem esta sensação. Claro, há momentos para a leitura por prazer, por escapismo, quando tudo o que queremos é um best seller de Stephen King, por exemplo, um livro que não exige trabalho do cérebro. Mas não há como negar que Sonia cutuca um lado que preferimos ignorar no dia-a-dia. No trânsito (em especial no de Curitiba, onde a maioria dos carros leva apenas uma pessoa) somos um bando de solitários que por segundos divide o mesmo rumo, sem no entanto dividir experiência alguma. No ônibus, cada dia mais lotado, não se ouve um bom-dia cordial, nem um bate-papo animado. Os novos bares que surgem buscam, quase todos, recriar o clima dos antigos armazéns e botecos de esquina, onde os moradores do quarteirão se encontravam. Sinais de uma sociedade que isola, e não agrega.

Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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