A poesia não tem onde cair morta. Todo mundo sabe disso. Está ainda tentando encontrar esse lugar para se despedir especialmente do Brasil. Mas mesmo diante e dentro desse cenário desalentador, de vez em quando há algum alento, uma espécie de aceno para tempos melhores. É o caso da coleção Ponte Velha, da Escrituras. Essa coleção que publica poetas portugueses no Brasil representa uma iniciativa que se deve louvar. Explica-se: a poesia é sempre aquele gênero que não merece atenção de quase ninguém, infelizmente. No entanto, a poesia representa sempre o que há de melhor na literatura de qualquer país. No que se refere ao Brasil, é salve-se quem puder. Seja como for, a poesia vai trilhando seus caminhos. Vai aos tropeços, é verdade, mas alguns poucos poetas não se curvam e insistem em produzir Poesia. São poetas na contramão dos tempos bárbaros.
A coleção de poetas portugueses no Brasil tem o apoio do Ministério da Cultura de Portugal e do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas. No Brasil é coordenada por Carlos Nejar e em Portugal por António Osório. Estão saindo agora cinco novos volumes de poesia: Olhares perdidos, de Nicolau Saião; Palavras noturnas & outros poemas, de Isabel Meyrelles; Armas brancas e outros poemas, de Armando Silva Carvalho; Música do mundo, de Casimiro de Brito; e Lições de trevas, de Fernando Guimarães.
Ponte velha era o nome de uma revista que Carlos Nejar e António Osório publicavam em Lisboa. O editor Raimundo Gadelha aceitou o nome para a coleção. Nejar afirma que a coleção realiza um velho sonho de unir Portugal e Brasil, fazendo — como diz — “com que todos possam redescobrir a melhor literatura de hoje daquele país que nos parece tão próximo e é tão distante”. Nejar observa que Portugal também tem de descobrir o Brasil: “Já vários poetas e prosadores foram publicados num projeto que não é dos governos, mas dos criadores de ambas as nações amigas”. Assegura que não há oceano que afaste os dois povos, “estando vivo o amor à terra de Camões e Pessoa”. Mais: “Posso dizer com a autoridade de quem já organizou e publicou sozinho, sem embaixadas ou intermediários, uma antologia de poesia portuguesa contemporânea no Brasil e uma antologia de poesia brasileira contemporânea em Lisboa, pela Imprensa Nacional”.
Desse trabalho participa ativamente o poeta Floriano Martins, que organizou vários livros da coleção, como os de Cruzeiro Seixas, Ana Hatherly, João Barrento e três dos cinco que estão saindo agora, de Isabel Meyrelles, Nicolau Saião e Armando Silva Carvalho.
Floriano Martins observa ser inevitável mencionar a importância de uma coleção de autores portugueses no Brasil, que assim existe, de maneira sistemática, pela primeira vez em nossa história editorial. Esclarece que não há propriamente intercâmbio, considerando a inexistência, da parte do governo brasileiro, de um programa da mesma ordem que este instituído pelo Ministério da Cultura de Portugal. Floriano lembra que, dessa forma, a publicação de autores brasileiros em Portugal se dá de maneira assistemática e sempre com o mérito de editoras privadas: “A coleção cumpre assim uma função já de muito indispensável, de trazer para o leitor brasileiro um amplo painel que lhe permitirá confrontar poéticas distintas, de distintas gerações, os desdobramentos e confirmações estéticas da lírica portuguesa e, naturalmente, comparando esse ambiente todo com a nossa própria tradição”.
Os autores
Nicolau Saião é autor de Olhares perdidos. O poeta lembra que costuma dizer que não tem fantasmas mas tem muitas nostalgias. Se a ele se apresentarem os fantasmas, promete enfrentá-los com suas “pobres mais implacáveis palavras”. Não são pobres, como quer. São palavras fortes dentro de um poema de bela elaboração. Saião nasceu em Monforte do Alentejo, em 1946. Vive em Portalegre. Autor de alguns livros de poema que revelam um poeta sabedor de seu ofício: “Não faças nada que te coloque/ Um pouco a norte do que não sabes/ Seja uma página seja horizonte/ Ou uma pausa na morte alheia”. Saião faz parte do movimento surrealista de Portugal, no seu segundo movimento. Cultiva uma poesia que se elabora nas sombras a colher momentos que algumas vezes — como diz — são infinitos: “Não te direi poemas e sim vulgares palavras/ — como café, cadeira, naco de pão, um copo/ de água para refrescar os minutos/ ou “cuidado com o carro” ou “que te deu ?” ou ainda “não estejas triste, está aqui a minha mão”/…/. Num texto em prosa, o poeta escreve que “vivemos mergulhados em pleno drama”. Mais adianta assegura: “No entanto, as palavras continuam”. Para finalizar num poema: “Não faças nada que não te ponha/ De novo dentro do tempo inteiro”. O poeta segue a risca o que se diz.
Isabel Meyrelles assina Palavras noturnas & outros poemas. Também tem ligações com o Surrealismo. Daqui a pouco vai dar a impressão que em Portugal só tem poeta surrealista. A bem da verdade, já ser poeta é surreal. Mas não. Isabel Meyrelles é poeta e isso lhe basta. Autora de respeitável obra poética, faz pequenos retratos de situações bem elaboradas num poema incisivo, certeiro: “Se alguém hoje te beijar/ esse alguém tem a minha boca/ eu serei todos os rostos/ de olhos ávidos/ serei a própria noite/ que te apertará a garganta/ como um assassino/ até que a manhã te leve e te adormeça/ longe de mim”. Nasceu em Portugal 1929 e tem trajetória na poesia contemporânea de Portugal de uma postura séria, distante das facilidades literárias. Cada poema representa um fragmento da vida por viver ou experimentar. Como a dizer-se numa descoberta de palavras para libertar os demônios: “…de nada serve atravessar/ este mar encristado de cavalos selvagens/…/”. No fim, num poema de 1966, ela se revela a si e ao poema, consciente desse universo tantas vezes ausente e diz como a se concluir — e se conclui: “Todos os poetas fazem versos./ Não eu”.
Armando Silva Carvalho é autor de Armas brancas & outros poemas, em que o poeta mergulha nas ocorrências existenciais, sem pensar em retorno, já que esse mergulho pode ser também um ato definitivo dentro do poema. Nasceu em 1938. Autor de vários livros de poesia, Silva Carvalho afirma: “Quando escrevo não deixo de ser um cidadão da vida. E não gosto muito de ouvir os que afirmam o contrário ou assumem uma posição de indiferença absoluta ou até desprezo pelos movimentos do corpo cívico, o que não tem nada a ver com arregimentações partidárias”. Sentencia: “A literatura, se quiser continuar, não pode ficar parada e pasmada na palavra pela palavra, nem cair nas mãos do negócio”. Fora o discurso, o que vale mesmo é a poesia que escreve: “Limpo o poema do seu estado/ de sítio/ dou-lhe a porta mais estreita/ e vejo-o partir/ sem mim danado cão/ Os pilares do poema recusam/ a sabedoria/ as falas que mendigam no lugar/ dos mortos”. Num dos poemas o poeta se declara ao poema e à poesia, verso a explicar sua condição de poeta: “Penetro nas palavras como um falo descalço”. E ainda, como a se dizer a si mesmo: “A palavra esplendor sai-te do ânus/ como a estrela enferma/ que o céu a si próprio recusa”. Este é um poeta perfeito, com todas as letras.
Outro poeta igualmente significativo é Fernando Guimarães, autor de Lições de trevas, um poema de grandeza poética. O poeta nasceu no Porto, em 1928. É autor de vários livros de poemas, de ficção e ensaios. Aqui o poeta lida com a existência, especialmente no que se refere ao envelhecimento e a morte presentes sempre a todo instante, em todo lugar, em toda palavra. Belíssimo poeta. O que vale mesmo é a palavra. A palavra que ainda não nasceu. A palavra já escrita em forma de poema, de uma carta, de um grito, seja lá o que for. Belíssimo poeta: “Coloquemos um lenço sobre o rosto. Não para o ocultar, mas para que fique mais nítido o que vemos. Essa há-de ser a margem das nossas feições, a sua mais próxima brancura”. Um poeta que caminha na direção do silêncio, talvez para colher as palavras que se perderam para sempre, essas que fugiram da vida. Essa linguagem de poema mais como prosa contagia por sua beleza. Um poema que também remete à solidão do homem diante de si mesmo. Que mais pode se pedir a um poeta ?
Por fim, Música do mundo, de Casimiro de Brito. Nasceu no Algarve, em 1938. Seu poema é um duro exercício de aprendizagem, se é que assim se possa dizer. Como que escondido atrás das palavras, o poeta nega a si mesmo dentro do poema: “Não creias em nada/ Não creias em nada seja qual for o livro/ Que tenhas lido a pedra/ Onde esteja gravado/ Não creias em nada seja quem for/ Que te tenha dito”. Seu roteiro está descrito no primeiro poema do livro: “Silêncio: a palavra/ respira. Corpo deitado/ no mar. Silêncio de fogo/ e música”. Uma declaração poética em forma de poema bem portuguesa faz o retrato do poeta: “Houve um tempo/ em que eu dizia/ lírica filosofia/ que a morte vai com as aves e vem/ com os rios. Não sabia/ que também os meus olhos/ partem tristes”. Por fim, uma constatação poética que de alguma maneira pode explicar sua poesia: “Todas as coisas se parecem com/ as nuvens pois nenhuma delas/ é perfeita no bazar da vida”. Ou ainda, mais textualmente: ”Nem sempre os meus versos são tão simples/ como as coisas que meus olhos vêem/ sem nelas se deterem”.
Essa coleção Ponte Velha tem de ser elogiada pelo que representa em favor da poesia. Tudo que for pela poesia tem de merecer respeito. No caso, a iniciativa tem o apoio do Governo de Portugal. O que tem um significado especial no que diz respeito à cultura. É de se respeitar mesmo. Até porque — repetindo o início deste texto — a poesia não tem onde cair morta. Infelizmente é assim. Principalmente neste país. O quinto mundo anda à deriva, naufragado nos seus oceanos de incertezas e banalidades constrangedoras. Assim, a publicação de livros nessa coleção dá algum alento e até faz respirar diante dos descaminhos e da brutalidade reinantes. Dentro e fora da literatura.