Quando perguntaram a Clarice Lispector por que ela escrevia, a resposta foi certeira: para me manter viva. Passados quase 40 anos, a portuguesa Ana Cássia Rebelo também parece escrever para que possa estar entre nós, os vivos. Ana de Amsterdam, seu livro de estreia, é uma colagem do blog homônimo criado em 2006, pouco depois de tentar o suicídio — tomando uma caixa inteira de antidepressivos.
As postagens selecionadas pelo crítico português João Pedro George são pedras brutas, poderosas e viscerais. Elas deixam à mostra uma mulher cheia de falhas e medos, mas com coragem suficiente para descer às profundezas e voltar — às vezes até mais forte. É preciso colidir para entender que a vida não é uma via de mão dupla. Todos os textos são breves manifestos de sobrevivência, como se fosse necessário lembrar o motivo pelo qual se vive.
Ana Cássia é uma mulher comum: tem seu emprego, é mãe de três filhos e precisou lidar contra a insatisfação de um casamento moribundo. Tudo está no livro com uma minúcia obsessiva. São percepções e reflexões de uma mulher atenta aos paradoxos cotidianos, ao sexismo que, após anos de luta, parece voltar à tona e, principalmente, à batalha contra a depressão.
Advogada como Kafka, Ana Cássia não é o contrário do colega checo: transborda a emoção dos dias difíceis, contesta a genuinidade do contentamento dos instantes alegres e, acima de tudo, assume a sua própria fragilidade. Assim grita em um trecho de 2013:
Corpo atravessado na cama. Nu, salgado, suado, morto. O quarto muito escuro. Fecho os olhos. Penso em pulsos cortados.
Quem sabe só a infelicidade lhe seja autêntica. Desde o título, uma referência à canção de Chico Buarque da peça Calabar, de 1973, até o ponto final do livro, Ana Cássia se coloca em xeque. É possível que a autora duvide de si mesma enquanto ser humano, mas também cabe em suas palavras a imprecisão dos sentimentos, desejos e vontades que formam nossa sociedade. Parte de tanta dúvida vem de sua própria origem, a mistura de mãe alentejana e pai goês. Não lhe interessa a Índia, o país, apenas a região de Goa. Essa combinação molda seu caráter. É como se o fado fosse contrabandeado pelo estoicismo indiano.
Ainda que Ana de Amsterdam traga consigo toda a carga de uma autora à caça de uma forma de expurgar suas angústias, os relatos criam uma espécie de quebra-cabeça a revelar uma mulher em sua essência, mas em silêncio. Ana Cássia não se amedronta diante da chance de jogar ao mundo seus questionamentos sobre a maternidade — o que, obviamente, faz pensar sobre todas as mães que se calam diante do choro desesperado de um filho e de uma manha renitente. O amor aos filhos é incondicional, entretanto, as dúvidas também o são. Fala abertamente que não desejava a última gravidez e relembra uma discussão com o ex-marido sobre a possibilidade de um aborto. No final, acaba por desejar a criança, o que não significa que, dali para frente, as situações sejam mansas. Diz a anotação de setembro de 2010:
Nunca poupei os meus filhos ao meu sofrimento. Partilho com eles para o horror de muitos, a solidão e a angústia.
Engana-se quem acha que essa é uma obra feminista: Ana de Amsterdam é uma autoafirmação. São diversas poéticas combinadas em um prisma desesperador, impingindo autor e leitor para fora da sua zona de conforto. É sim um texto que incomoda, nos mostra que somos incompletos e estamos à mercê de nós mesmos. A vida comum, repleta de convenções e quietude coloca um peso morto sobre Ana Cássia, que por vezes se descreve apodrecendo ainda viva. E quem não está?
São diversas poéticas combinadas em um prisma desesperador, impingindo autor e leitor para fora da sua zona de conforto.
Sujeira no ventilador
Em Textos para nada, Beckett descreve uma criatura na sarjeta, imersa em um grande lamaçal. Assim está Ana Cássia, enfiada dos pés à cabeça na areia movediça do dia a dia. É engraçado pensar que se sai mais forte da leitura de Ana de Amsterdam. Talvez por uma identificação imediata. Na reunião familiar de Festa de família, do cineasta dinamarquês Thomas Vinterberg, todas as hipocrisias e mentiras ficam expostas, toda a sujeira é jogada no ventilador. Ana Cássia faz o mesmo: se desnuda em frente ao leitor e se mostra crua, capaz sim de chocar e também de fazer pensar.
Cada texto é um diagnóstico melancólico, como se um planeta estivesse a chocar-se contra a Terra. Apesar de todo o desastre que se aproxima, Ana Cássia vê um mar de gente indiferente, gente que permanece passiva ao sofrimento que rodeia o mundo. Existe na escritora um quê de indignação em relação a quem vê a banda passar, mas há também a sensação de impotência por não poder fazer a roda da fortuna — aquela de que tanto falou Oscar Wilde — girar. Ana Cássia Rebelo faz evocar o lirismo de outro contemporâneo lusitano, Valter Hugo Mãe. Se António Jorge da Silva, de A máquina de fazer espanhóis, está à procura de uma solução para tudo, e Camilo, de O filho de mil homens, buscava um pai, a Ana Clara, espécie de pseudônimo da autora, quer somente permanecer sóbria, figurativamente. Embriagada pela tristeza que lhe amassa o peito, por vezes só há uma saída: uma janela qualquer aberta e, se possível, nos andares mais altos de um prédio lisboeta.
De psiquiatra em psiquiatra, ela não se reconhece e debocha dos clichês da profissão. A linguagem é afiada, irônica e sarcástica ao extremo — como se cutucasse aquele homem ou mulher sentados à sua frente. É impossível manter o equilíbrio. É como se nós, com o livro em mãos, estivéssemos sentados naquele divã em um processo de autoflagelação. E assim anda a narrativa, como se o leitor estivesse também usando o cilício a rasgar-lhe a pele a cada passo.
As lembranças da infância ardem pela linguagem dolorosa e pela saudade de um tempo que já se foi. Não volta. Perto de morte, Renato Russo confessou à mãe: “Só fui feliz na infância”. Ana Cássia também. De certa forma, Ana de Amsterdam é um catálogo de evidências, de aprendizado, mas que, como é de se esperar, deixa às claras que sua autora vive em paralelo, nunca se encontra, não esbarra e, quando cai, cai sozinha.
Pela fechadura
Ana Cássia Rebelo é uma mulher vista pela fechadura. Um detalhe pequeno amplia-se e lá está um crime, geralmente, contra si mesma. Em tanta amargura existe um quê de graça que brota da ironia e da sagacidade com que vê a vida. Explora ao máximo seus próprios sentidos, gozando a alegria de estar imersa na realidade mais dura capaz de existir. Se ainda carrega nos pulsos cicatrizes é para jamais esquecer que existe sofrimento e que é preciso saber lidar com ele, dosá-lo como seu Cipralex ou Xanax.
A solidão é um mal-estar moderno, talvez o mal do século, e não se consegue estar indiferente. A cada linha há uma catarse um expurgo e, ponto, o ciclo não se encerra. Certa vez, em uma entrevista a um blog português, Ana Cássia revelou o que agora parece óbvio: a cura — se é que podemos chamar de cura — de sua depressão se deveu, em parte, aos textos que escreveu contando ao mundo sua dor. É como se Werther não escreve as cartas, mas um blog. É de deixar qualquer Ian Curtis parecendo um saco de risadas.