Grito, novo romance de Godofredo de Oliveira Neto, transcorre por meio da voz de Eugênia em diálogo com um leitor ou entrevistador. A atriz e o jovem ator vivem em Copacabana, os apartamentos de ambos são palcos da vida como arte. Eugênia cria a partir do inspirador Fausto, os atores perspectivam cenas e refazem o cânone teatral e literário.
O grito do artista ecoa pelas páginas do livro literal e metaforicamente. Segundo Fausto, há momentos em que o grito verbaliza a ausência da irmã gêmea morta no nascimento, mas a palavra que dá título ao romance ganha sempre novas conotações: alegria, pranto, desespero, excitação — o gozo da vida.
O autor lança mão de recursos discursivos presentes em duas narrativas anteriores: Menino oculto (ganhador do Jabuti) e A ficcionista. Como fora dito, a narradora dirige-se a um entrevistador, a personalidade da atriz é dissolvida na imagem tecida sobre Fausto — oprimido pelo ciúme obsessivo da mulher. Será por meio do discurso confessional que nós, leitores, receberemos uma série de questionamentos sobre o fazer artístico.
Apesar de o ingrediente temático ser reconhecível, a narrativa sai engrandecida pelo valor estético alcançado poucas vezes na literatura contemporânea. É interessante notar que, com intuito de caber nos clichês da atualidade, as primeiras resenhas sobre o livro ressaltaram o fato de a história se passar em Copacabana, como palco de assassinatos que, aliás, rebaixariam as referências constantes ao cânone literário. Sendo assim, é importante dizer que o bairro seria tranquilamente dispensável, bem como os assassinatos não se apresentam como consequência da cidade, mas de uma motivação exacerbada da arte.
Fuga do clichê
Há nessa mudança de sentido um desejo implícito de ressignificação, num momento em que todos os modelos parecem já estar gastos e desprovidos de originalidade. Grito foge ao clichê urbano e reivindica a fuga. Já que a vida é encenada, o romance foi dividido em vinte e um atos. Há camadas contínuas de diferentes discursos, planejados dentro do teatro cotidiano — numa infindável construção tal qual a arqueologia de Foucault.
Eugênia e Fausto planejam peças em cima do grande palco, teorizam e questionam a autenticidade de suas elaborações:
O texto abordava conflitos de amor na adolescência, as coisas clássicas, vontade de se matar, fugas bombásticas, briga com a família. Muito lugar-comum na minha opinião. O espaço onde se passaria a cena era uma casa no interior do Brasil, perto de uma área deserta e perigosa. Atravessar o sertão nos braços do seu amante ou se suicidar. Essa era a liberdade de escolha.
Propus que esse deserto fosse o Liso do Sussurão, imortalizado por Guimarães Rosa no Grande Sertão: Veredas. Pelo menos abria outras frentes de interesse. Fausto não concordou, dizendo que o nome do espaço geográfico era o menos importante. Valiam mais os problemas da relação entre os apaixonados e as respectivas famílias. Nisso ele tinha razão, mas não vi como dar jeito num script tão pobrezinho.
A sensualização pela arte
A autoconsciência artística de Eugênia mostra-se imperiosa, uma mulher segura, apesar do revés do ciúme. Esquecemo-nos da contumaz fragilidade da velhice, na medida em que adentramos em seu vigor intelectual e físico. A mulher descreve sentimentos ambíguos de desejo por Fausto, desfila com sensualidade como epílogo das cenas que virão.
O autor de Grito também inova nesse quesito. Apesar de a erotização ser uma constante no trajeto de sua obra, aqui temos outros voos. O prazer carnal não importa, mas o prenúncio do desejo, sempre pautado pelos avanços intelectuais em torno da arte. O encontro amoroso transcende e renuncia a finitude da matéria: o interlúdio é responsável pelo êxtase da relação entre os atores.
Reescritura de Fausto
Sabemos que há diversas versões sobre o mito de Fausto, neste romance o autor chega a fazer referência a três delas. No entanto, o jovem ator de Grito parece não corresponder ao ambicioso que se deixa levar pelas artimanhas do demônio. Antes, apresenta-se ingênuo e entregue aos sabores da arte. É vítima do amor inflexível de Eugênia, que transgride perigosamente as barreiras da não ficção.
O romance de Godofredo de Oliveira Neto provoca uma inversão de papéis românticos, no qual há uma idealização do homem, subjugado pela narradora em função da ingenuidade e eloquência juvenis. Eugênia engrandece as belezas exteriores de Fausto, julga-o forte emocionalmente. No entanto, é obsessiva em protegê-lo, achando-o incapaz de resguardar-se das artimanhas dos estranhos. Parece ter medo constante de perder a singeleza do ator, na medida em que ele está envolto pelo mundo corruptível. Eugênia sabe que Fausto está num processo de aprendizado, mas teme por esse processo.
Atualmente, o mundo passa pelo desejo de reconstrução, mas todas as formas de governo também foram desgastadas. Não cabem mais bipolaridades em quaisquer instâncias, todos os modelos fracassaram. Grito lança esse desespero estética e tematicamente. Como leitores, estamos diante de uma experiência multifocal, tudo está fora do lugar positivamente, não há códigos e formatos literários preestabelecidos. Recebemos toques singelos do idealismo romântico, fissurado pela realidade instantânea. Tudo ao mesmo tempo. A encenação da vida parece ser o último subterfúgio para reorganizar a experiência do mundo.