Aos poucos a literatura brasileira contemporânea vai encontrando o Brasil contemporâneo. A histeria política, o egocentrismo exacerbado, a pieguice das redes sociais e a eterna incógnita a respeito do futuro do país que aflige a todos há tanto tempo, têm rendido romances e coletâneas de contos — Reprodução, de Bernardo Carvalho, e O Brasil é bom, de André Sant’Anna, são alguns exemplos. Luxúria, de Fernando Bonassi, engrossa a lista.
O livro narra a trajetória errática de um metalúrgico que, na sanha de emergir socialmente, constrói uma piscina em sua casa. O personagem principal, que no livro é identificado como “o homem de que trata esse relato”, é acossado pela vida que leva: a falta de perspectivas no emprego, a rotina massacrante, o trânsito violento e um casamento modorrento, que nem a presença de um filho (que o personagem considera meio mongoloide) consegue causar entusiasmo. A piscina é uma forma de redenção. “O menino é estranho. Quem sabe com uma piscina em casa, a gente não atraia algum amigo para ele, pela primeira vez”, pensa o protagonista.
A construção irá mudar a vida de todos, mas de uma forma negativa. A mãe, viciada em antidepressivos, que retira de graça no posto de saúde do bairro, vê sua ansiedade aumentar diante dos problemas que se acumulam em casa por conta da obra. A empregada, que tem uma relação conflitante com os patrões, sente-se ainda mais explorada agora que a sujeira da casa aumentou com o barro retirado do quintal. O filho, cada vez mais isolado, aprofunda sua tristeza quando o pai resolve se desfazer do cachorro da família, também velho e estropiado por doenças.
O livro trata claramente da classe C brasileira, aquela que na última década comprou geladeira, TV de plasma, carro zero quilômetro e passou a se locomover de avião. Uma parcela da população pouco escolarizada e sem muita qualificação profissional, que se beneficiou dos incentivos do governo na economia. Mas as benesses minguaram e a bolha do new milagre brasileiro estourou. E é disso que trata Luxúria, um romance de ideias como há tempos não se via na literatura brasileira. E as ideias em questão dão conta de que, muito provavelmente, o Brasil voltará a regredir depois de um delírio coletivo, econômico e social. Afinal, o que vai acontecer, agora que o emprego sumiu, com a classe que emergiu a partir do crédito fácil — sem que tenha de fato emergido socialmente, por meio da educação?
Mais do que a história de um desenganado, Luxúria apresenta um problema imenso do qual nem os analistas econômicos e sociais do país estão muito preocupados. Até mesmo o jornalismo ainda não se deu conta da pauta. Não fosse a literatura um tema sem importância para o brasileiro, o romance poderia até suscitar debates fora do meio literário. Mas o provável é que não ultrapasse a redoma da qual poucas vezes a nossa ficção saiu.
Ensaio e ficção
O maior perigo de um livro como Luxúria é o de se tornar uma espécie de ensaio e, em um futuro mais distante, um livro datado. O que, parece-me, é pouco provável. Além de ser excepcionalmente bem escrito, o romance, com seus diversos cenários (a casa, o trabalho, o trânsito), personagens (o homem, a mulher, o filho, o chefe) e possibilidades de temas e abordagens, é uma peça de ficção de fato. E são justamente os motivos estéticos que podem moldar sua imagem no futuro. Além disso, é bem provável que seja tomado como um relato que captou um período muito particular da história do Brasil. O zeitgeist que, a meu ver, falta na literatura brasileira, bastante acostumada a olhar para si própria e para fatos remotos.
Esse tipo de livro é bem mais comum em outras paragens. De orelhada, lembro-me de Liberdade, do americano Jonathan Franzen, um romance meio enfadonho, mais jornalístico do que literário, mas que ousou tocar em questões caras aos americanos contemporâneos das guerras que o país travou no Golfo. Mas o trabalho de Bonassi se aparenta muito mais com dois romances recentes: Lionel Asbo — Estado da Inglaterra (2014), de Martin Amis, e Submissão (2015), de Michel Houellebecq.
O livro de Amis é uma sátira à mídia e ao modelo social da Inglaterra, que gera criaturas como Lionel Asbo, uma espécie de hooligan que vive de negócios escusos até tirar a sorte grande na loteria e virar o país de pernas para o ar. Já o romance de Houellebecq é quase um tratado sobre o estado de espírito da França atual, ameaçada pelo islã radical. Ambos os livros, de alguma forma, têm ligação com Luxúria, dadas as preocupações de seus autores em entender os rumos de seus países sob a ótica de temas variados, como política e educação.
Seguindo o exercício de literatura comparada, Submissão, no entanto, se aproximaria mais de Luxúria por conta do ponto de vista político, e se afasta pela visão mais “classe média” de seu narrador, um intelectual da Sorbonne. Já Lionel Asbo tem como foco praticamente o mesmo grupo social do livro de Bonassi: a classe trabalhadora. Em choque, os personagens. Asbo é um homem que optou pela via da delinquência, deu um sonoro foda-se para as instituições e convenções sociais. Já o homem de que trata o relato de Luxúria acreditou no sistema e por ele fez tudo que pôde, mesmo diante de suas imensas limitações.
No plano estilístico, Luxúria ganha força pela linguagem. Contado em capítulos curtos, é repleto de boas artimanhas narrativas, como a intertextualidade dos “diálogos surdos” que os personagens mantêm entre si. Mas certamente é a violência da prosa de Bonassi o atrativo mais imediato ao leitor. Comparado ao escritor Luiz Ruffato, que também tentou entender a classe média baixa em uma série de romances (e com maior brilhantismo em Eles eram muitos cavalos, mezzo conto, mezzo romance), Bonassi apresenta uma escrita mais rebelde, digamos, em que a indignação se sobrepõe aos caprichos estilísticos. O autor mantém uma verve quase punk em seu discurso, que tem na cena final do livro seu apogeu.
Fernando Bonassi surgiu nos anos 1990 como uma grande promessa da literatura brasileira. O bom arranque, no entanto, perdeu força ao longo da década seguinte, com o escritor se dedicando paralelamente aos roteiros de TV e cinema — ainda que nunca tenha parado de publicar. Luxúria não só surge como o melhor livro do autor, mas também é a confirmação de que uma promessa realmente virou realidade.