A dificuldade de ser [La difficulté d’être (1947)], Démarche d’um poète (1953), Journal d’un inconnu (1953) e La corrida du 1er mai (1957) formam uma tetralogia da poesia crítica. As obras citadas comunicam-se e permitem testemunhar a evolução da escrita de Jean Cocteau durante seus últimos quinze anos de vida.
A dificuldade de ser começou a ser escrito logo após o término das filmagens de seu filme La Belle et la Bête. As filmagens foram um verdadeiro calvário, Jean Cocteau sofria com vários problemas de pele.
A obra pode ser lida como um balanço da vida (autobiografia composta por ensaios críticos) e da produção artística deste Oscar Wilde francês, em que o trágico ocupa lugar de destaque. Importante ressaltar que a leveza é uma das características mais evidentes nos textos de A dificuldade de ser. O trágico não é desprezado, é revelado, no entanto Cocteau não aumenta ainda mais seus efeitos, suas consequências. Relato autobiográfico, Cocteau desfila sua criatividade por vários estilos e gêneros. Confissões, humor, reflexões acerca do ser no mundo, sobre arte, sobre artistas. Conversas, simplesmente conversas ao estilo de Montaigne. Tudo, sempre, sob o signo do existencialismo e um tanto de surrealismo, na vida e na arte. Cocteau se equilibra no afiadíssimo fio da navalha. Uma personalidade incomparável, talvez a Oscar Wilde possa ser dado esse crédito, mas prefiro Cocteau pelo nível de excelência em várias expressões artísticas. Seus filmes Le sang d’un poète (1930), narrativa em que, embora filme de um escritor, a palavra não tem grande importância. Cocteau prioriza as imagens deste que pode ser classificado com um filme surrealista. Em sua adaptação de La Belle et la Bête (1946) muda sua forma de filmar, mas se mantém audacioso e se permite, ou exige?, o risco. Le Testament d’Orphée (1960), um quebra-cabeça em que Cocteau retoma um personagem presente em Le sang d’un poète e filma a paródia de sua própria vida. Um filme sem fim ou filme onde início e fim estão com seus lugares trocados. O mais importante é dizer que Jean Cocteau influenciou vários realizadores, entre eles François Truffaut, Pedro Almodóvar e Woody Allen, sabia como montar seus filmes e usava e abusava dos efeitos, ou dos truques. A nouvelle vague deve muito a Jean Cocteau. Sua montagem fora do convencional, seu desprezo à linearidade narrativa, ausência de moralismo, tudo isso pode ser observado nos filmes do autor de A dificuldade de ser.
Seus filmes não são nada convencionais, Cocteau também não era nenhum pouco convencional. Seja em sua arte, seja em sua vida.
Os três filmes citados integram a lista dos cem melhores de todos os tempos. Outras listas, bem menores, também costumam incluí-los.
Conforme dito anteriormente A dificuldade de ser, embora a gravidade das situações relatadas, do sofrimento do autor, está muito distante daquilo que costumamos chamar de relatos densos, repletos de emoção e afeitos às lágrimas.
Cocteau não “parou” num gênero, longe disso. Em 1917 escreveu o libreto Parade para Serguei Diaguilev, fundador da Companhia Les Ballets Russes. O balé tinha cenário assinado por Pablo Picasso e música de Erik Satie.
Apollinaire classificou Parade como surrealista e daí em diante a obra de Cocteau, em suas várias expressões, passou a ser vista por esse prisma.
Artista plástico, desenhista, deixou suas obras em várias capelas de pescadores, na Provence e na Côte d’Azur.
Chama atenção o fato de apenas dois escritores, Raymond Radiguet e Guillaume Apollinaire, merecerem ensaios. O de Apollinaire trafegou do cubismo ao surrealismo, bem mais extenso.
É por isso que eu gostaria de anotar algumas recordações de um homem com o qual eu nunca me desentendi, porque ele era atento ao ponto de ser obsessivo. Trata-se de Guillaume Apollinaire.
Cocteau costuma se referir a Apollinaire como o poeta da “cabeça estrelada”.
Como prova de sua admiração pelo poeta, Cocteau participou do programa de rádio Un poète, une voix, dedicado a Apollinaire, em 16 de fevereiro de 1963. Cocteau recitou doze poemas do livro Alcools e dois poemas de Calligrammes. Até então nenhum outro poeta recitara tantos poemas de outro. Uma prova de sua admiração, além de demonstrar ausência de vaidade, tão frequente no meio artístico.
A dificuldade de ser é o retrato de seu autor. Um artista guiado pelo riso. O que me permite aproximá-lo de Rabelais.
François Rabelais, em Gargantua e Pantagruel, faz uso de uma mistura de oralidade, escatologia, incidentes divertidos que são descritos muitas vezes como carnavalescos. A visão do riso em primeiro plano pode ter sido um dos fatores a ter contribuído para o tardio reconhecimento da obra. Jean Cocteau também não se conformava com a pouca repercussão de sua obra poética.
Jean Cocteau valoriza o riso, a necessidade do riso.
Rabelais e outros escritores, entre eles Pierre de Ronsard, criaram uma língua literária diferente daquela do dia a dia: uma língua para a arte, marcada pela linguagem figurada, Cocteau não me parece muito distante.
A faculdade da gargalhada é a prova de uma alma excelente. Eu desconfio daqueles que evitam o riso e recusam a sua abertura. Eles temem sacudir a árvore, avaros que são dos frutos e dos pássaros, temerosos que se perceba que nem frutos, nem pássaros se despregam dos seus galhos. Como o coração e o sexo, o riso procede por ereção. Nada que não excita o intumesce. Ele não se ergue por vontade.
Conforme Rabelais na abertura de sua obra:
Melhor de risos que de prantos escrever
Porque rir é próprio do homem.