Sobre cães, lobos e homens

Clássico da literatura norte-americana, "Caninos Brancos" encanta ao narrar a história de um lobo domesticado pela civilização
Jack London, autor de “Caninos Brancos”
15/01/2016

Jack London viveu a infância e a juventude em condições próximas da miséria. Quando criança, chegou a morar com a mãe e o padrasto em asilos para mendigos. Aos catorze anos abandonou a escola e foi trabalhar numa fábrica de enlatados, cumprindo uma jornada de até dezoito horas diárias. Trabalhou também em uma pista de boliche, depois como jornaleiro e, aos quinze anos, passava o tempo roubando ostras cultivadas na baía de San Francisco por empresas privadas, tendo sido durante breve período integrante da guarda que fiscalizava a pesca na região.

Viveu uma vida marcada por viagens e aventuras, lendo e escrevendo vorazmente, sempre com urgência. “Você não pode esperar a inspiração, tem que ir atrás dela com um porrete” é uma de suas frases mais conhecidas. Aos quarenta anos, quando morreu, deixou dezenas de livros publicados, entre os quais figura Caninos Brancos, romance traduzido para mais de oitenta idiomas e que conquistou legiões de leitores em todo o mundo.

Cabe destacar o poder descritivo de Jack London ao compor o cenário do romance conferindo expressivo valor estético à personificação da natureza, como se pode ver já no parágrafo que abre a obra:

Pinheiros escuros debruçavam-se, carrancudos, dos dois lados do rio congelado. Um vento que soprara havia pouco tinha despido as árvores do manto de geada branca que as cobria, e elas pareciam se inclinar na direção umas das outras, negras e ameaçadoras, na luz mortiça. Um silêncio imenso reinava sobre a terra. A terra em si era uma desolação, sem vida, sem movimento, tão solitária e fria que seu espírito nem sequer era triste.

A narrativa tem início à época da corrida do ouro, nas florestas geladas do norte do Canadá, onde dois homens avançam em um trenó puxado por um grupo de cães tendo como destino o forte McGurry. Eles carregam o corpo inerte de um terceiro homem e durante a travessia, que dura vários dias, são seguidos cada vez mais de perto por lobos famintos.

Na noite ártica a alcateia se aproxima do acampamento e perto da fogueira os dois homens se veem cercados por um círculo de olhos cintilantes, que faiscava na escuridão. Daí em diante, após o desfecho do drama que ocupa os primeiros capítulos da obra, a alcateia se divide e vemos nascer Caninos Brancos, o filhote cinzento que será protagonista da história.

Assim, acompanhando o pequeno lobo, Jack London nos mostra o ambiente selvagem da floresta boreal, governado por leis inflexíveis. A atração do filhote pelo mundo exterior à caverna onde é alimentado pela mãe é apresentada da seguinte forma:

A vida do seu corpo e de todas as fibras do seu corpo (…) ansiava por aquela luz e incitava seu corpo a se mover em direção a ela, do mesmo modo que a engenhosa química de uma planta a estimula a se mover em direção ao sol.

Mas esse mundo é governado também pelo acaso:

Se pensasse ao modo humano, o lobinho poderia ter descrito a vida como um apetite voraz e o mundo como um lugar habitado por uma multidão de seres cheios de apetite, perseguindo e sendo perseguidos, caçando e sendo caçados, comendo e sendo comidos, sempre às cegas e confusamente, com violência e desordem, um caos de glutonaria e matança regido pelo acaso, inclemente, sem planejamento e sem fim.

A grande atração exercida pelo livro reside no fato de o autor ter adotado como estratégia narrativa o ponto de vista do lobo, sem que para isso tenha sido necessário atribuir de forma explícita características humanas ao animal como ocorre nas fábulas.

Caninos Brancos é capturado antes de completar um ano de idade, usado como puxador de trenó e obrigado a enfrentar uma matilha hostil. Ao longo da narrativa tomamos contato com a sua submissão a vários donos e a consequente domesticação perpetrada pelo aprendizado de hierarquias e por mecanismos de punição e recompensa.

A temática da domesticação é central na obra e a trajetória do lobo selvagem que se vê obrigado a se adaptar à crueldade dos homens e aos ditames da civilização pode ser lida também como metáfora da condição humana.

Thomas Hobbes afirmava que a sociedade humana teria nascido de uma espécie de acordo utilitarista no qual as pessoas abrem mão de sua liberdade em troca da segurança oferecida pelo soberano, que passa a ter poder absoluto sobre os seus súditos — O homem é o lobo do homem, sentenciou em poderosa síntese.

Influenciado pelo darwinismo social de Spencer, Jack London vê o destino de Caninos Brancos sendo moldado pelo barro da sua natureza e pelas pressões do mundo — ou seja, pela herança de ancestrais remotos transmitida ao longo de sucessivas gerações e pelas características do ambiente em que vive. Tentando sobreviver em um meio hostil, ele acaba por desenvolver ao extremo suas habilidades defensivas e predatórias, submetendo-se aos fortes e oprimindo os fracos.

Mas a grande atração exercida pelo livro reside no fato de o autor ter adotado como estratégia narrativa o ponto de vista do lobo, sem que para isso tenha sido necessário atribuir de forma explícita características humanas ao animal como ocorre nas fábulas. A personificação do protagonista ocorre de forma sutil, entremeada ao ponto de vista do narrador:

Diferentemente de todos os animais que ele já havia encontrado, os homens não mordiam nem arranhavam. Em vez disso, reforçavam sua força vital com o poder de coisas mortas. Coisas mortas trabalhavam para eles. Assim, paus e pedras, manejados por aquelas estranhas criaturas, cruzavam o ar como coisas vivas e causavam dolorosos machucados nos cachorros.

“O encanto particular de Caninos Brancos depende da descrição da experiência interior do animal selvagem em termos humanos”, observa Daniel Galera na introdução da obra editada pela Penguin/Companhia das Letras, que traz também um perfil biográfico de Jack London escrito pelo historiador britânico Andrew Sinclair.

O interesse de Jack London pelo universo canino e pelos lobos deu origem a outros livros que estão entre os mais conhecidos de sua autoria. Em O lobo do mar (1904), retrata a experiência sangrenta que vivenciou em sua viagem ao Japão para caçar focas. Em O chamado selvagem (1903), narrou a história de um cão domesticado que é obrigado a viver entre lobos e a se adaptar à vida selvagem, exatamente o inverso do que ocorre em Caninos Brancos (1906), onde conta a história de um animal que precisa suprimir seus instintos para sobreviver na civilização.

O mundo selvagem maltrata e esmaga o homem até subjugá-lo — o homem, que é a forma de vida mais inquieta que existe, sempre em revolta contra o desígnio de que todo movimento deve, no fim, chegar à cessação do movimento.

Talvez se mostre aí nessa similitude construída pelo autor uma profunda aversão ao mundo e às coisas dos homens, que o levaria a tentar o suicídio anos depois.

Caninos Brancos
Jack London
Trad.: Sonia Moreira
Penguin | Companhia das Letras
296 págs.
Jack London
Nasceu em 1876 e passou a juventude em San Francisco (Califórnia), sua cidade natal. Em 1893, partiu numa viagem marítima para caçar focas que o levou até o Japão. Quatro anos depois, tomou parte da corrida do ouro no Canadá. Em 1902 foi para Londres, onde se misturou à população pobre do East End. Também fez viagens pelo mar do Caribe e pelos mares do Sul e cobriu a Guerra Russo-Japonesa como repórter. Escritor prolífico, publicou dezenas de livros. Morreu em casa, na Califórnia, em 1916.
Ovídio Poli Junior

É escritor e doutor em literatura brasileira pela USP. Ministra oficinas de criação literária. É curador da Off Flip das Letras e editor do Selo Off Flip.

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