O acrobata nas sombras

Georges Perec escreve para tentar entender os acontecimentos mais importantes de sua vida
Georges Perec por Osvalter
15/01/2016

Georges Perec nasceu em 1936, na cidade de Paris, onde viveu a maior parte de sua vida, e morreu em Ivry, 46 anos depois. Seu pai lutou na Segunda Guerra Mundial, sendo morto em 1940, e sua mãe morreu em Auschwitz. Perec, órfão aos seis anos, foi criado por parentes próximos. Sua obra tem início em 1965, com o romance As coisas, seguido por Quel petit vélo à guidon chromé au fond de la cour, Um homem que dorme e La disparition este último, já escrito após sua entrada no OULIPO (um grupo de literatura potencial, formado por escritores e matemáticos que escreviam a partir de regras matemáticas).

Sua rica e enigmática obra, repleta de restrições matemáticas, jogos e mistérios em sua estrutura, linguagem e linha narrativas, vem sendo estudada especialmente após sua morte prematura em 1982. Disposto a trabalhar exaustivamente diante de uma estrutura rígida e restritiva proposta por ele ou pelos colegas de grupo, a obra de Perec também pode ser estudada pelo viés testemunhal. Ao escrever W ou a memória da infância, Perec mistura ficção, memória, infância e autobiografia, e o resultado é um livro que permite analisar profundamente as implicações da Shoah em sua narrativa. Nesse livro, o escritor conta as suas memórias de infância encadeadas pelo nazismo e por um país chamado W que seria uma alusão à estrutura alemã durante a Shoah.

W ou memória da infância tem a seguinte epígrafe de Raymond Queneau: “Essa bruma insensata em que se agitam sombras, como eu poderia clareá-la?”. Assim Perec começa um de seus mais tocantes projetos: clarear e reviver suas sombras e memórias de infância. Sua ambição como escritor e inventor também é grande: “Minha ambição de escrever seria a de percorrer toda a literatura do meu tempo sem jamais ter o sentimento de voltar nos meus passos ou de caminhar novamente pelos meus próprios traços e de escrever tudo o que é possível a um homem de hoje escrever: livros grandes e curtos, romances, poemas, dramas, livretos de ópera, romances policiais, romances de aventura, romances de ficção científica, folhetos, livros para crianças”. Com o intuito de clarear suas sombras (insensatas), lembranças, recordações e invenções, Perec escreve. Escreve para se percorrer e tentar entender os acontecimentos mais importantes de sua vida.

Perec gosta de ludibriar e brincar constantemente com seus leitores. Propõe jogos, cria enigmas, brinca com a língua e com a linguagem em busca de esgotar todas as possibilidades literárias. Porém, mesmo revelando esse seu desejo enquanto escritor, não explicita um dos seus mais fortes temas: o de escrever/testemunhar a sua relação/trauma da Shoah, “evento que justamente resiste à representação” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.373). Ao escrever resistindo, ao trabalhar com a linguagem, com a matemática, com o controle e com as estruturas restritivas, Perec quer testemunhar essa experiência “real” completamente inacessível que foi seu trauma de infância devido às suas perdas. Mas, como seria esse testemunho especial de Perec e como continuar a escrever após tamanha catástrofe? Seria um ato de barbárie, como postulou Adorno? Em Je suis né, Perec dá uma dica do que (e como) está realmente buscando: “A questão não é nem ‘por que continuo?’ nem ‘por que não posso continuar’… mas ‘como continuar?’”. A escrita, em Perec, é necessária e fundamental para enfrentar seus fantasmas e, assim, compõe uma obra distinta e peculiar que trabalha e discute diversos problemas relacionados à literatura e também ao testemunho.

Já que Perec não viveu em nenhum dos campos de concentração, seus escritos não se enquadram no que conhecemos como testemunho primário. Também, como não é filho de sobreviventes, seus escritos não são vistos como um testemunho secundário ou de segunda geração. Mas, infelizmente, a Shoah está diretamente ligada à sua criação, cultura e a seus traumas, como escreve:

Não tenho nenhuma memória da infância. Até os doze anos mais ou menos, minha história se resume em poucas linhas: perdi meu pai aos quatro anos, minha mãe aos seis; passei a guerra em diversos pensionatos de Villard-de-Lans. (…) “Não tenho recordações da infância”: eu fazia essa afirmação com segurança, quase com uma espécie de desafio. Não precisavam me interrogar sobre essa questão. Ela não estava inscrita no meu programa. Estava dispensado dela: uma outra história, a Grande, a História com H maiúsculo, havia respondido em meu lugar: a guerra, os campos de concentração.

A literatura de testemunho vem sendo estudada com o objetivo de registrar e estudar acontecimentos extremos: “qualquer fato histórico mais intenso permite — e exige! — o registro testemunhal tanto no sentido jurídico como também no sentido de ‘sobrevivente’” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.9). Os escritos e a literatura dos sobreviventes são permeados por diversas características presentes no testemunho primário: literalização, fragmentação, busca pelo “real”, historicidade e ficção. O discurso secundário, que se refere aos filhos dos sobreviventes que nasceram depois da guerra, mas que foram profundamente marcados por esse acontecimento devido à sua criação, possui ainda outras características: dificuldade de entendimento e relação com o sobrevivente, experimentação do silêncio em relação ao passado e carência afetiva.

Já Perec, por não se enquadrar diretamente em nenhuma dessas duas classes, mas com características similares, é descrito por Susan Suleiman, em seu livro Crises of memory and the Second World War, como testemunho da geração “1,5”, sobretudo ao se estudar o W ou a memória da infância. Quais seriam, portanto, as propriedades desse testemunho especial? Como isso reflete em sua literatura? Qual a importância que a Shoah tem em sua infância e em sua obra? Como relacionar as memórias da infância com as memórias de um testemunho? Como entender essa tentativa de “controle da literatura” que seria o motivo do uso exagerado de regras e restrições matemáticas? Como compreender a matemática como forma de testemunho?

Georges Perec por Osvalter

Perec gosta de ludibriar e brincar constantemente com seus leitores. Propõe jogos, cria enigmas, brinca com a língua e com a linguagem em busca de esgotar todas as possibilidades literárias.

A matemática
No artigo Georges Perec et les mathématiques, Bernard Magné (1999) apresenta Perec como um jovem que não gostava muito de matemática, mas que era bastante interessado e intrigado pelos diversos problemas da matemática. Em sua obra, Perec constrói uma aritmética original, com seus próprios valores e seus próprios símbolos, sem referência à numerologia clássica desenvolvendo uma geometria fantasmatique que repousa sobre algumas figuras, pouco numerosas, mas muitas vezes recorrentes, que determinam as estruturas formais de seu texto (MAGNÉ, 1999). Essas figuras recorrentes são, essencialmente, o carré e as “simetrias bilaterais”, usados juntos às três estruturas citadas. O carré pode ser visto como um tabuleiro clássico de xadrez (8 x 8), um outro tabuleiro presente em A vida modo de usar (de tamanho 10 x 10), ou ainda um de 9 x 9 presente no Deux cent quarente-trois cartes postales (PEREC, 1999). Já a simetria bilateral pode ser vista por meio do jogo de palíndromos, da utilização das letras W e X e de suas devidas representações geométricas e da combinatória, presentes, por exemplo, em Alphabets e em A vida modo de usar. E essas seriam formas de dar seu testemunho especial.

Ao criar o grande livro da escrita restritiva — A vida modo de usar —, Perec sutilmente atribui características matemáticas e traumáticas a alguns personagens. Mortimer Smautf, Carel Van Loorens, Abel Speiss são, como quase todos os personagens do livro, obsessivos, lógicos e controladores. Smautf passa sua vida calculando exaustivamente fatoriais em busca do infinito; Loorens exerce várias atividades, de cirurgião a geômetra, ensinando também matemática em Halle e astronomia em Barcelona; Speiss preenche seus dias resolvendo problemas diversos da lógica e da matemática com grande facilidade.

Perec tinha também uma obsessão pelos números, sendo considerado, além de um manipulador de palavras e letras, um manipulador também de números e cifras. Em Je me souviens escreve: “Eu me recordo da teoria matemática da transitividade. Eu me recordo que todos os números cuja soma de seus elementos dão um total de nove são divisíveis por nove (às vezes, eu passava as tardes a verificar)”. E também em suas palavras, em 53 jours: “As nove maneiras onde o número 53 faz parte de uma sequência de Fibonacci. Os Holandeses dizem que todo número pode ser a soma de seus K primos (Conjectura de Goldbach)”.

Em Perec, lipogramas, palíndromos e as regras de xadrez podem ser representados como de natureza matemática. Segundo Christelle Reggiani, “estamos então face a uma concepção instrumental da relação entre matemática e invenção literária: a matemática será retida pela atitude oulipiana em razão do seu caráter formal, evidentemente interessante para uma literatura que se escreve essencialmente em torno de estruturas”.

Estrutura rígida, rigor absoluto, controle total são temas preciosos na literatura de Perec, porém o próprio autor discute suas limitações diante desses aspectos matemáticos e controversos da própria vida.

Em 26 de outubro de 1976 morre Raymond Queneau. Nesse mesmo dia, Georges Perec começa a escrever A vida modo de usar, dedicado a seu grande amigo, então falecido. De grande complexidade e construído sob regras, o livro trata de histórias inter-relacionadas de habitantes de um mesmo prédio situado à 11 Rue Simon-Crubellier.

Assim Claude Burgelin descreve A vida modo de usar:

Construir a torre de Babel, escrever um romance que contenha todos os tipos de romances; colocar em cena dezenas de vidas simultaneamente; evocar modos de usar da existência tão diversa quanto possível; deixar seguir múltiplos tempos a partir desse espaço fechado; obrigar a evocação de milhares de objetos, emblemas, imagens e dar vida a esse propósito; juntar o prazer da infância (jogos, encaixes, listas, quebra-cabeças, livros de aventuras, trocadilhos, adivinhas, cadeias ao infinito) e combinatórias mais sofisticadas; abolir, subverter, ultrapassar fronteiras entre texto e imagem, narrativa e ícones, transformar a literatura em uma cópia miniaturizada do mundo e da literatura; aprender a olhar e ler errando sem parar; metamorfosear o enciclopedismo em material romanesco; estruturar claramente um romance labiríntico, tornar móvel um romance-imóvel, dirigir um romance-jogo de xadrez (em todos os sentidos da palavra). Estas são algumas das proezas do acrobata Perec.

O enredo gira em torno de três personagens principais, o excêntrico e rico Percy Bartlebooth, o artista Gaspard Winckler e o pintor Serge Valène:

Durante dez anos, de 1925 a 1935, Bartlebooth se iniciaria na arte da aquarela.

Durante vinte anos, de 1935 a 1955, percorreria o mundo, pintando, à razão de uma aquarela a cada quinze dias, quinhentas marinhas do mesmo tamanho, as quais representariam portos marítimos. Ao terminar cada uma dessas marinhas, ela seria enviada a um artista especializado (Gaspard Winckler), que a colaria sobre finíssima placa de madeira e a recortaria num puzzle de setecentas e cinquenta peças.

Durante vinte anos, de 1955 a 1975, Bartlebooth, de volta à França, reconstituiria, na mesma ordem, os puzzles assim preparados, à razão, novamente, de um a cada quinze dias. À medida que os puzzles fossem reorganizados, as marinhas seriam “retexturadas”, de modo que se pudesse descolá-las de seus suportes, transportá-las para os próprios locais onde — vinte anos antes — haviam sido pintadas e ali mergulhá-las numa solução detergente da qual saísse apenas uma folha de papel Whatman, intacta e virgem.

O nome dado a um dos principais personagens do livro, Bartlebooth, alude a dois outros personagens literários: Bartleby, de Herman Melville, o homem da imobilidade que não deseja nada, que prefere não fazer; e Barnabooth, de Valèry Larbaud, o homem da viagem, que tem desejos errantes. Esse é o paradoxo vivido por Bartlebooth, homem de tamanha riqueza e de indiferença face ao mundo, que se propõe um projeto de perfeição circular, de muito viajar, muito registrar e destruir todos os traços dessa grande e inútil jornada. Nas palavras de Perec:

Então Bartlebooth é Bartleby porque ele é completamente desesperado que está além do desespero. Ele é também Barnabooth, o bilionário, que quer organizar sua vida como uma obra de arte. A conjunção dos dois compõe um personagem que utilizaria toda sua vida, toda sua energia e toda sua fortuna para alcançar um resultado nulo. O projeto de Bartlebooth: aprender a pintar aquarelas, pintar as aquarelas, tê-las cortadas em puzzles por um artesão e, enfim, reconstruí-las. É perfeitamente louco e inútil. E é para mim a mesma imagem de escrever. Um esforço gigantesco por uma coisa que, uma vez terminado o livro, se evade completamente.

A escrita, em Perec, é necessária e fundamental para enfrentar seus fantasmas e, assim, compõe uma obra distinta e peculiar que trabalha e discute diversos problemas relacionados à literatura e também ao testemunho.

O projeto de A vida modo de usar é rigoroso e bem estruturado. A composição do livro explora suas três principais estruturas matemáticas: Bicarré latin orthogonal[1] d’ordre 10, la polygraphie du cavalier[2] e la pseudo-quenine[3] d’ordre 10. A construção lógica e definida sob regras nos remete ao teor axiomático da matemática. A demonstração de um teorema segue a mesma estrutura lógica traçada no projeto sensacional de um dos personagens do livro. Entretanto, o objetivo proposto não é concretizado, como descrito abaixo:

É o dia 23 de junho de 1975, e vão dar oito horas da noite. Sentado diante do puzzle, Bartlebooth acaba de morrer. Sobre a toalha da mesa, nalgum lugar do céu crepuscular do quadringentésimo trigésimo nono puzzle, o vazio negro da única peça ainda não encaixada desenha a silhueta quase perfeita de um X. Mas a peça que o morto segura entre os dedos, já de há muito prevista em sua própria ironia, tem a forma de um W.

Então, como entender essa obra na mão do leitor? Como compreender, e controlar, a recepção desses textos? Assim como a História, contingente, a Literatura, por mais restritiva e controladora que seja, não será nunca capaz de finalizar esse puzzle. A vida modo de usar, assim como toda escrita “falha” de Perec, seria uma forma de narrar o inenarrável, controlar o que não pode ser controlado, testemunhar a dor, a falta de sentido e de razão para as perdas vividas pela jovem criança.

Testemunho
Georges Perec representa uma geração de crianças, que se tornaram escritores, que perderam seus pais durante a Shoah. Ao escrever anos depois dos fatos, Perec descreve o trauma coletivo do qual foi membro importante. Ao se utilizar de restrições matemáticas e estruturais, Perec está discutindo necessariamente os limites da linguagem e da “tradução” de eventos traumáticos. Limitação, falhas, lapsos e erros tentam traduzir, através das restrições, a impossibilidade (e necessidade) de testemunhar.

De acordo com Jacques Derrida e Gilles Deleuze, o Evento é o sentido que desperta a escrita, apesar de interpretações diversas serem possíveis para representar o mesmo acontecimento. Marcado pela Shoah e membro da geração 1.5, Perec cria o seu testemunho recheado de estruturas restritivas e referências escondidas. Segundo Derrida, a literatura seria o espaço da diferença que move e distingue os significados dos momentos, característica que pode ser encontrada na escrita inventiva de Perec.

Para explicar o conceito de Event, Alan Badiou cita alguns dos axiomas de Deleuze que podem ser incorporados à estrutura restritiva de Perec:

Axioma 3: O evento é de ordem diferente se comparado com as ações e paixões do corpo, mesmo que resulte deles.

Axioma 4: A vida é composta de um único e similar Evento, deficiente de toda variedade que decorre dele.

Para Badiou, portanto, os efeitos do evento podem variar de acordo com o indivíduo. O Evento é o diferenciador das ações, memórias e das paixões. Assim, em Perec, o Evento desencadeador da sua literatura restritiva, sobretudo em W ou a memória da infância é a Shoah. Shoah para Perec não é o que aconteceu em sua vida, “mas o que é no que aconteceu, ou o que acontece no que acontece, de forma que só pode haver um Evento único” (BADIOU, 2006). A essência do Evento aparece nos escritos de Perec de forma única e potencialmente testemunhal.

Ao criar um país único e singular chamado W, Perec está recriando a estrutura alemã e nazista que permitiu a Shoah. Seu pano de fundo é a extrema crueldade e as implicações que o nazismo provocou em sua vida, e que está além de toda sua compreensão. Ao não se lembrar de todos os acontecimentos de sua infância, ao repetir a todo o momento a imagem de sua mãe se despedindo dele na estação de trem, ao tentar simbolizar essa memória e esse “real” a partir da escrita, Perec está diante de seu trauma de infância: o desaparecimento precoce de seus pais.

W, que começou a ser escrito em 1969, somente é finalizado após seis anos de trabalho e só foi possível graças às sessões de psicanálise que Perec teve com J. B. Pontalis. O relato de W, à medida que a história se passa, é repleto de lacunas, fragmentos e invenções. Perec quer se lembrar, mas não é capaz: por isso reconstrói um país e uma história tentando encaixar as peças faltantes de seu puzzle memorialístico fadado, infelizmente, ao fracasso. Ao trabalhar com restrições, jogos e enigmas, Perec discute a possibilidade de controlar a própria literatura, de dominar a estética da recepção, de conduzir o leitor ao caminho restritivo desejado, o que nunca é alcançado. Esse também é o seu próprio fracasso enquanto testemunho: repleto de historicidade, ficção e memórias falsas, seus escritos conduzem a uma peça faltante de um enorme quebra-cabeça. Mas, mesmo diante da impossibilidade de dizer, há a necessidade de dizer.

Assim, a partir de sua escrita experimental e restritiva, Perec aborda temas importantes e pessoais como infância, trauma, separação e memórias. Escrever, silenciar, expressar o indizível e buscar constantemente a possibilidade de alcançar o “real” traumático são preocupações dos escritos de testemunho.

Estrutura rígida, rigor absoluto, controle total são temas preciosos na literatura de Perec, porém o próprio autor discute suas limitações diante desses aspectos matemáticos e controversos da própria vida.

W ou a memória da infância tem duas partes — a primeira onde Perec relembra e recria suas memórias de infância e a segunda onde descreve um mundo fantástico chamado W, que é uma metáfora ao regime Nazista. Na primeira parte, Perec lembra da sua separação traumática de seus pais, sobretudo de sua mãe, e a partir desse momento tenta recriar o tempo que viveu junto a essas pessoas mais importantes de sua vida. Já na segunda parte, apesar de trabalhar com a fantasia de um mundo W, repensa a estrutura ridícula e abominável do Nazismo. Essas duas partes são recriações ficcionais de sua memória e de seu conhecimento da História Concentracional.

W ou a memória da infância alterna a apresentação das partes. É importante notar que ambas as narrativas usam o “Eu” para descrever a “montagem” desses mundos memoriais, ficcionais e históricos. De acordo com Philippe Lejeune, essa montagem era totalmente desconhecida antes da criação de Perec. Lejeune enfatiza que Perec “não estava buscando pelo ineditismo — mas, ele “achou impossível fazer de outra forma”. Essa obrigação domina as restrições de Perec tentando entender ou criando uma forma testemunhal restritiva para compreender o que se passou com os judeus, e com crianças como ele, durante a Shoah. Vemos, portanto, um escritor inventivo à procura de uma forma de expor o Evento e narrar seu trauma particular e coletivo.

Dessa forma, apesar de tentar esconder o seu testemunho e de falar o indizível, Perec nunca deixa de se exprimir, seja através das restrições, seja através de seus silêncios e eliminações (como é o caso do La disparition, livro escrito inteiramente sem a letra “e”, a mais frequente do idioma francês. Essa regra é conhecida como lipograma).

Porém, além das dificuldades inerentes a qualquer pessoa que passa por uma situação traumática, há em Perec a questão da infância. Os principais acontecimentos de sua vida ocorreram em sua tenra juventude existindo, portanto, limitações memorialísticas em relação a essa idade. Quando Perec tinha somente quatro anos, seu pai morreu no front e um ano e meio após, com cinco anos, sua mãe despediu-se dele na Gare de Lyon: Perec foi enviado num comboio da Cruz Vermelha aos Alpes, perto de Grenoble, para viver com seus tios e nunca mais viu sua mãe. Esses acontecimentos são descritos em W, embaçados pela bruma insensata das sombras e das lembranças. Assim Perec segue escrevendo, fantasiando e criando essa sua infância traumática:

Minha infância faz parte daquelas coisas das quais sei que não sei grande coisa. Ela está atrás de mim, no entanto, é o solo sobre o qual cresci, ela me pertenceu, seja qual for minha tenacidade em afirmar que não me pertence mais. Por muito tempo procurei afastar ou mascarar essas evidências, encerrando-me na condição inofensiva do órfão, do não gerado, do filho de ninguém. Mas a infância não é nostalgia, nem terror, nem paraíso perdido, nem Tosão de Ouro, mas talvez horizonte, ponto de partida, coordenadas a partir das quais os eixos de minha vida poderão encontrar seu sentido.

Em seu artigo Robert Antelme ou la vérité de la littérature, publicado em 1963, Perec discute as limitações da literatura testemunhal. Segundo ele, a literatura seria limitada e fraca para se trabalhar com Eventos traumáticos como a Shoah. É necessário dispor de novas ferramentas para descrever o fenômeno “concentrationnaire”. Assim escreve: “A literatura só poderá nos fornecer uma expressão inautêntica e impotente”. Testemunhar é um ato e um esforço com o intuito de entender, apesar de que “dos testemunhos serem ineficazes (…) de se tratarem de narrar o inenarrável”. Perec, portanto, inventa uma nova forma (e novas ferramentas matemáticas) para testemunhar e escrever, aumentando as possibilidades literárias, memorialísticas e históricas.

Em W ou a memória das coisas, Perec diz não ter memórias de infância. Ao dizer isso já no início do livro, Perec, a sua maneira inventiva e restritiva, já questiona o status ficcional da autobiografia e da questão memorialística. Sua recoleção de objetos memorialísticos é limitada (e, talvez, envenenada) por eventos históricos e traumáticos. Acessar a memória, dar o testemunho é, portanto, restritivo. Essa crítica autobiográfica, de acordo com Lejeune, permite a Perec criticar também a questão da memória e da História. A importância do testemunho em Perec é a crítica radical à experiência, de acordo com Lejeune. Assim seus escritos são “oblíquos, múltiplos, escondidos e, ao mesmo tempo, infinitamente retornando ao inenarrável”.

Apesar da palavra “inenarrável” ser uma constante nos testemunhos, principalmente primários, os sobreviventes continuaram a escrever e a contar seus traumas. De acordo com Suleiman o problema de Perec em W ou memória das coisas é inventar a sua própria forma de escrever o que aconteceu. “O problema, como sabia muito bem Perec, não era que ‘isso’ poderia ser escrito, mas ‘como’ isso poderia ser escrito”.

Perec busca, portanto, reunir as limitações das memórias infantis com as memórias traumáticas da Shoah. Através de sua literatura e de suas limitações, ele procura incessantemente relacionar e controlar seu testemunho e toda possibilidade literária.

Ao se utilizar de restrições matemáticas e estruturais, Perec está discutindo necessariamente os limites da linguagem e da “tradução” de eventos traumáticos.

Infância
Definir infância e a capacidade de lembrar/entender determinados e específicos acontecimentos é bastante complicado. Porém, é de comum acordo entre os psicanalistas e psicólogos cognitivos, que a idade de onze anos seria uma primeira fronteira entre o desenvolvimento infantil e sua capacidade de ter memória pessoal. Antes dessa idade, estaríamos em um período de “latência”: uma adolescência primitiva que não é capaz de reter e entender muitas informações. Logo depois dessa primeira fase, já teríamos então uma capacidade de abstrair e um vocabulário específico para nomear a própria experiência, habilidades que faltam em crianças mais novas. Além disso, antes desse limiar de onze anos, a criança não teria consciência de todas suas memórias e muito pouco vocabulário para expressar o trauma vivido.

Em W, Perec trabalha com a infância, os traumas e os limites da linguagem ao se lembrar de quando era uma criança da Cruz Vermelha. Esses recursos utilizados por Perec podem ser relacionados ao discurso da infância apresentado por Giorgio Agamben:

Se a condição própria de cada pensamento é avaliada segundo o seu modo de articular o problema dos limites da linguagem, o conceito de infância é, então, uma tentativa de pensar estes limites em uma direção que não é aquela, trivial, do inefável. O inefável, o “inconexo” [irrelato] são de fato categorias que pertencem unicamente à linguagem humana: longe de assinalar um limite da linguagem, estes exprimem seu invencível poder pressuponente de maneira que o indizível é precisamente aquilo que a linguagem deve pressupor para poder significar. Ao contrário, o conceito de infância é acessível somente a um pensamento que tenha efetuado aquela “puríssima eliminação do indizível na linguagem” que Benjamin menciona em sua carta a Buber. A singularidade que a linguagem deve significar não é um inefável, mas é o supremamente dizível, a coisa da linguagem.

Perec se encontra no limite e na singularidade da linguagem: busca na memória da infância a sua “puríssima eliminação do indizível na linguagem” e testemunha a inefável Shoah da mesma forma que “os poetas — as testemunhas — que fundam a língua como o que resta, o que sobrevive em ato à possibilidade — ou impossibilidade — de falar. […] Não enunciável, não arquivável é a língua na qual o autor consegue dar testemunho de sua incapacidade de falar” (HEIDEGGER apud GAGNEBIN, 2008b, p.11). Seja na busca pela infância não arquivável ou em seu testemunho não enunciável, há sempre em Perec a ficção, como escreveu Jacques Derrida: “O testemunho ‘jura dizer a verdade’, promete a sua veracidade ficcional. Mas aqui mesmo onde ela não cede ao perjúrio, a atestação não pode não manter uma agitada cumplicidade com a possibilidade, ao menos, da ficção”.

Em relação às crianças sobreviventes da Shoah, podemos enumerar três diferentes grupos: crianças muito novas para se lembrarem (em torno de três anos); crianças velhas o suficiente para se lembrarem, mas muito novas para entenderem (entre quatro e dez anos) e crianças velhas o suficiente para se lembrarem, mas muito novas para serem responsáveis (entre onze e quatorze anos). Entender e ser responsável são termos relativos e subjetivos, mas que podem ser indícios para uma primeira abordagem da infância.

Ao estudarmos os relatos, escritos e testemunhos dos sobreviventes primários, quando eram crianças nos Campos de Concentração, percebemos a tentativa de mostrar como se sentiam desamparados nesses lugares terríveis. O testemunho, portanto, seria a busca de expressar, através da linguagem, esse desamparo e carência. Instabilidade de identidade, silêncio, sentimento sempre presente de perda e solidão, falta de lembranças, lacunas em relação à própria juventude e questionamento constante no que se concerne ao ser judeu, dominam os discursos dos testemunhos primários (SULEIMAN, 2006). Assim escreve Perec sobre essa busca pela fala ausente e sobre seu sentimento de desamparo e carência:

Sempre irei encontrar, em minha própria repetição, apenas o último reflexo de uma fala ausente na escrita, o escândalo do silêncio deles e do meu silêncio: não escrevo para dizer que não direi nada, não escrevo para dizer que não tenho nada a dizer. Escrevo: escrevo porque vivemos juntos, porque fui um no meio deles, sombra no meio de suas sombras, corpo junto de seus corpos; escrevo porque eles deixaram em mim sua marca indelével e o vestígio disso é a escrita: a lembrança deles está morta na escrita; a escrita é a lembrança de sua morte e a afirmação de minha vida.

Georges Perec por Osvalter

W é a busca da infância, das lacunas e de seus traumas e, por isso, está relacionado também aos testemunhos primários.

Walter Benjamin, assim como Perec, acreditava na infância como possibilidade de resgatar uma história que nos é íntima. O seu “jogo das letras”, como escreve Benjamim, trata da concepção de infância como sendo um jogo que não significa retorno ao início da vida, mas retorno ao sentimento e às vivências de outrora, ao desejo de resgatar os acontecimentos vividos:

[…] nada desperta em mim mais saudades que o jogo das letras. Continha em pequenas plaquinhas as letras do alfabeto gótico, no qual pareciam mais joviais e femininas que os caracteres gráficos. Acomodavam-se elegantes no atril inclinado, cada qual perfeita, e ficavam ligadas umas às outras segundo a regra de sua ordem, ou seja, a palavra da qual faziam parte como irmãs. Admirava-me como tanta modéstia podia existir com tanta magnificência. Era um estado de graça. E minha mão direita que, obedientemente, se esforçava por obtê-lo, não conseguia. Tinha de permanecer do lado de fora tal como o porteiro que deve deixar passar os eleitos. Portanto, sua relação com as letras era cheia de renúncia. A saudade que em mim desperta o jogo das letras prova como foi parte integrante de minha infância. O que busco nele na verdade, é ela mesma: a infância por inteiro, tal qual a sabia manipular a mão que empurrava as letras no filete, onde se ordenavam como uma palavra. A mão pode ainda sonhar com essa manipulação, mas nunca mais poderá despertar para realizá-la de fato. Assim, posso sonhar como no passado aprendi a andar. Mas isso de nada adianta. Hoje sei andar; porém, nunca mais poderei tornar a aprendê-lo (BENJAMIN, 1995, p.105).

Perec quer resgatar as vivências que não teve. Seus jogos de letras, suas restrições e invenções, são tentativas de rememorar e reviver experiências (inventadas) de outrora. Em W, há um trecho que mostra essa possível relação entre os jogos e buscas de Benjamin e o esforço de lembrar em Perec:

Minhas duas primeiras lembranças não são de todo inverossímeis, mesmo se é evidente que as numerosas variantes e pseudoprecisões que introduzi mais tarde nos relatos — falados e escritos — que fiz delas as alteraram profundamente, quando não as desnaturaram por completo. A primeira lembrança teria por cenário o fundo da loja da minha avó. Tenho três anos. Estou sentado no centro da peça, no meio de jornais iídiches espalhados. O círculo da família me rodeia completamente: essa sensação de ceco não se acompanha para mim de nenhum sentimento de esmagamento ou ameaça; ao contrário, é proteção calorosa, amor: toda a família, a totalidade, a integralidade da família está ali, reunida em torno da criança que acaba de nascer (mas eu não disse há pouco que tinha três anos?), como uma muralha intransponível. Todos se extasiam diante do fato de eu ter desenhado uma letra hebraica, identificando-a: o signo teria a forma de um quadrado aberto em ângulo inferior esquerdo, algo como ([4]) e seu nome teria sido gammeth, ou gammel. A cena inteira, por seu tema, sua doçura, sua luz, assemelha-se para mim a um quadro, talvez de Rembrandt ou talvez inventado, que se chamaria Jesus diante dos doutores.

Nessa passagem, Perec cria uma letra e uma história. A letra inventada é a busca pelo carinho, pelo conforto e pela proteção da família perdida. Ele busca, assim como Benjamin, a infância (perdida) por inteiro, revive reinventado um passado subtraído pela Shoah.

A infância e a lembrança são muralhas intransponíveis e seu testemunho é limitado e repleto de lacunas. Características desse testemunho podem ser encontradas, também, nos filhos dos sobreviventes (segunda geração). Assim, como escreveu Eli Wiesel sobre a recriação de Auschwitz “sim, alguém pode viver milhas distantes do Templo e mesmo assim vê-lo queimando. Alguém pode morrer em Auschwitz mesmo depois de Auschwitz”, Perec revive constantemente os seus traumas, mesmo estando a muitas milhas de distância de Auschwitz e de suas lembranças. A constante repetição, como sugere Paul Valéry, está relacionada a não compreensão: “a nossa memória nos repete o discurso que nós não havíamos compreendido. A repetição responde à incompreensão” (VALERY apud SELIGMANN-SILVA, 2005, p.78). Mesmo não estando mais na Gare de Lyon, Perec retoma sempre que pode essa despedida para tentar entender e narrar o incompreensível e o inefável, o próprio silêncio das crianças da segunda geração.

Considerações finais
Em O que resta de Auschwitz, Agamben escreve: “Se voltarmos agora ao testemunho, podemos dizer que dar testemunho significa pôr-se na própria língua na posição dos que a perderam, situar-se em uma língua viva como se fosse morta, ou em uma língua morta como se fosse viva — em todo caso, tanto fora do arquivo, quanto fora do corpus do já-dito”. Assim, ao trabalhar com infância, memória, invenção, matemática e testemunho, Perec confessa perda, falta, falha, incompletude, mesmo trabalhando com um sistema fechado e lógico, e ainda funda uma literatura singular e inédita com o que “resta, o que sobrevive em ato à possibilidade — ou à impossibilidade — de falar” (AGAMBEN, 2008b, p.160).

notas

[1] Bicarré latin orthogonal de ordem n é a figura com n x n quadrados preenchidos com n diferentes letras e n diferentes números, cada quadrado contendo uma letra e um número. Cada letra aparece somente uma vez em cada linha e em cada coluna, assim como cada número.

[2] Consiste em mover as peças do xadrez da forma como o “cavalo” se move. Há várias formas de se fazer isso, “varrendo” todo o tabuleiro, e por isso utiliza-se o estudo combinatório.

[3] A ação de trocar a ordem de um determinado conjunto de coisas linearmente arranjadas.

[4] Perec inventa uma letra hebraica que seria uma mistura entre outras duas: o gimmel e men.

Jacques Fux

Venceu o Prêmio São Paulo de Literatura de 2013 com o livro Antiterapias. É doutor e pós-doutor em Literatura Comparada e um matemático apaixonado. Autor de Literatura e matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o Oulipo (Prêmio Capes de Melhor Tese do Brasil de Letras/Linguística), Brochadas: confissões sexuais de um jovem escritor e Meshugá: um romance sobre a loucura. Foi pesquisador-visitante na Universidade de Harvard e escritor residente na Ledig House, em Nova York.

Rascunho