Não há mais tempo ou paciência para passeios em livrarias quando se trabalha em uma. A descoberta de livros novos deixou de depender apenas do que prendia aleatoriamente a minha atenção e passou a se dar, por exemplo, enquanto ajudo a escoar os livros da recepção — aquela olhadinha no título ou na ficha catalográfica para descobrir a qual seção pertencem — ou quando seleciono o que os clientes deixaram no balcão após o cafezinho.
Foi ao carregar uma pilha generosa (para não dizer monstruosa) de livros para a “literatura brasileira” que deixei cair o desta resenha. Quando voltei para buscar que soube da saída de mais um gaúcho de uma editora pequena — Livros do Mal, Não Editora — para uma grande casa editorial. Como já tinha acompanhado carreiras com movimentos semelhantes — Galera, Pellizzari e Bensimon na Companhia das Letras, Xerxenesky e (em breve) Machado de Machado na Rocco —, decidi dar uma chance ao Reginaldo Pujol Filho.
Outros motivos para a decisão: o sentimento de culpa por ter comprado (e nunca aberto) os livros anteriores dele, Azar do personagem e Quero ser Reginaldo Pujol Filho; o garboso bigode do autor na orelha do livro (respeito um bom bigode); e a epígrafe “Os personagens e os fatos desta obra são reais apenas no universo da ficção. (Como pode ser lido na folha de créditos da Companhia das Letras)”.
Um problema com a decisão: a preguiça crescente de ler personagens e/ou narradores escritores. Sim, já tive a minha fase Vila-Matas, passei pela bolañomania, mas, no mesmo ano em que me empolguei com Cordilheira (Daniel Galera) — segundo muitos, um erro que perceberei na releitura —, já fiquei com um pé atrás com Jaboc (Otto Leopoldo Winck): enquanto alguns colegas de oficina literária — éramos alunos do escritor — se empolgaram com as semelhanças dos personagens com pessoas reais e com o livro cuja escrita acompanharam, eu me perguntava se aquilo era tudo o que a metaliteratura tinha a me oferecer.
E isso só piorou de 2010 para cá.
O diferencial de Pujol seria aquilo que ele chamou em sua dissertação em Escrita Criativa de “Escritor Encaixotado”: aquele cara à margem, que almeja ser escritor, e não consegue sair da autopublicação e do anonimato. Tudo que quer é ser um escritor: essa é a trama do livro. Caixas e caixas de Heranças dos mortos, primeira obra de Edmundo Dornelles, cuja edição ele pagou, se acumulam na casa do protagonista de Só faltou o título. Se acompanhamos alguns exemplares serem distribuídos durante a história, não é por interesse dos leitores, mas por necessidade financeira: cinco deles são trocados por um vade-mécum, por exemplo.
A estrutura do romance se alterna entre memórias e um inquérito judicial — destacado pelo uso de fonte tipográfica semelhante às de máquinas de escrever — ambas sufocantemente verborrágicas. Se a falta de espaçamento entre as falas do inquérito não chega a ser um problema grave (muito papel foi salvo por essa escolha da diagramação), as frases intermináveis, com uso extensivo de vírgulas, o são. Principalmente por serem utilizadas para dar voz a uma das coisas que mais incomodam no livro, o fenômeno que Anica Bittencourt tão belamente classificou como SPM: síndrome do protagonista mala. Ainda que geralmente destinada a romances YAs, a sigla identifica personagens e narradores detestáveis em qualquer gênero literário.
Machista e homofóbico
Pujol não mede esforços nesse sentido: o narrador é machista (“o poder da edição seria outorgado a uma mulher com todas as suas inerentes suscetibilidades, sensibilidades, burrice mesmo”; “a feministaloide da juíza ovulando para punir um macho deflorador de virgenzinhas”) e homofóbico (“esta bicha, com sua echarpe, não é capaz de apertar a mão como um homem”; “vejo o lento arquear e desarquear de sobrancelhas, como um falso susto em câmera lenta ou uma decepção de leitores de Oscar Wilde, solta um suspirinho enojante, e diz, como se fizesse-me um favor, mostrando a palma da mão de pano, munheca de borracha, como se fosse segurar uma bandeja de cristais”). Por muito menos deixei um romance brasileiro premiado e muito elogiado na pilha de papéis destinados a reciclagem. “Mas, Arthur…”: não sou obrigado.
O que me fez continuar foi a “coragem” (mais sobre isso adiante) do escritor ao citar nomes conhecidos do mercado editorial (de Luiz Schwarcz à própria editora Record) e falar de procedimentos internos das editoras — chega a lembrar o protagonista de Ser feliz (Will Ferguson), ainda que bem menos divertido. Admito que isso do personagem — poder opinar sem ser vago — foi uma das coisas que me fez gostar tanto de Liberdade (Jonathan Franzen), algo que praticamente não via na literatura daqui.
ah, não sabes, Tati, como eu gostaria que o trabalho de editor fosse deveras exigente e exigisse que tu cortasses os pulsos ou ao menos a língua fora, macaquinha treinada para fazer livros da moda.
É interessante, no meio da amargura toda, identificar opiniões parecidas com as nossas, mais ou menos como ocorre em Reprodução (Bernardo Carvalho), outro livro com SPM. Às vezes, o personagem detestável fala algo com o que concordamos. Mais interessante ainda é descobrir, nos agradecimentos finais, os nomes de alguns dos escritores xingados pelo narrador — e pensar no autor se divertindo ao fazê-lo. Sobra até para o primeiro lugar do prêmio Oceanos, dado a um romance que, quando não foi abandonado, foi classificado como “ostensivamente chato”, unanimemente, por todos que o terminaram (e comentaram comigo):
se estes ignóbeis [entre eles, Silviano Santiago] e seu séquito de leitores-zumbis contentam-se com a masturbação em frente ao espelho que é reproduzir a própria vida no papel, tenho de dar-lhes o braço a torcer.
Dito isso: isso não deveria ser considerado coragem, não é? Um autor deveria muito bem poder criar um personagem que ama ou detesta determinada pessoa/marca/instituição da vida real sem receio de ser processado pelas opiniões de um personagem ficcional. Mas não é assim que a banda toca: ainda tem “cursos de inglês tipo (insira aqui a marca)” sendo substituídos por “cursos falcatruas de inglês” (suposta diferença entre as duas edições de Até o dia em que o cão morreu, Daniel Galera).
No final, minha questão com o livro foi parecida com a de alguns “novos clássicos da literatura contemporânea brasileira”: não saber quando parar. É bonito um livro grossinho nas estantes das livrarias (ou de casa), mas, se alguém não chega e diz “para, que tá feio”, a coisa descamba para o que se tornou a segunda metade de O livro dos mandarins (Ricardo Lísias): enfadonha e desnecessária — em suma, carente de edição.
Em algum momento escrevi “que o final não seja o que previ na p. 162” — o livro tem 320 páginas. E era. Basicamente um Suicidas (Raphael Montes) às avessas — sim, Pujol cuida melhor da linguagem, mas a comparação se sustenta até o final do romance. Tudo em favor da verossimilhança. Em outro pedaço, anotei: “que pelo menos acabe com uma piadinha à la Complexo de Portnoy”. Acabou. Mas, claro, a piadinha não foi o suficiente.
Torço para que da próxima vez que esbarrar no Pujol, seu livro venha desprovido da SPM. Porque de homem médio branco conservador machistinha e homofóbico, o mundo tá cheio. E eles não param de escrever. E é o direito deles: “tá na Constituição”. Já gente com talento para a escrita e coragem de deixar o personagem dizer o que pensa… não vejo muita, não.