Nélida Piñon se formou em jornalismo, mas logo descobriu que a literatura era o melhor suporte para sua escrita densa. “O jornalista busca o visível, o escritor, o invisível”, teria dito, há mais de 30 anos. A brasileira não precisava de muita conversa para mostrar de que lado estava. A república dos sonhos, seu romance publicado na época e que recentemente foi relançado em uma edição comemorativa, era a maior prova de que a autora sabia como poucos extrair as mais precisas definições do que sequer tinha nome.
Em mais de 700 páginas, Nélida consegue delinear a história do Brasil que se esconde em silêncio nas sombras dos livros teóricos. Na ambição de Madruga, um imigrante galego, que deixou seu país aos 13 anos para construir seu próprio império na América, borbulhava a promessa brasileira de uma terra próspera. Na audácia de Breta, sua neta militante de esquerda que se opunha ao Regime Militar nos anos 1960, explodia um ceticismo lúcido quanto aos rumos incertos que tomava o país com o qual seu avô tanto sonhara.
Avô e neta intercalam suas vozes em uma narrativa profunda para contar a saga de uma família que vivenciou as mais importantes transformações da república brasileira ao longo do século 20.
Em meio à crise econômica em sua terra natal, Madruga, ainda garoto, pede dinheiro emprestado ao tio Justo para atravessar o Atlântico e fazer fortuna em um novo país. Decidido e com o empréstimo em mãos, foge da casa dos pais, Urcesina e Ceferino, e promete voltar para pagar o que deve. Ao ter o sucesso esperado, cumpre o compromisso e volta à Galícia para se casar com Eulália, uma galega, e depois retorna com ela grávida para ter um filho nascido em seu país.
Madruga é valente, sagaz nos negócios e quase inabalável. Mas tamanha rigidez de espírito é contraposta à sensibilidade de Venâncio, um velho amigo que o conhece ainda menino durante a primeira viagem dos dois ao Brasil. Enquanto fica cada vez mais distante da costa ibérica, Madruga sente sua alma murchar por inteiro, mas evita chorar. Então Venâncio lhe aparece como um espelho interior. “Por que não chora também?”. Assim nasce uma bela amizade e um elo perfeito entre a subjetividade do adeus e da perda da objetividade da vida prática.
Durante todo o livro, os amigos permanecem como dois polos opostos e complementares. Madruga é o lado forte que não se permite errar, não se dá ao luxo de analisar a fundo as mazelas sociais e justifica suas vitórias com o suor de seu esforço. Venâncio é a parte analítica: sofre com a Guerra Civil Espanhola, não se conforma com o cenário político e econômico brasileiro e se dói com a incoerência de uma realidade que, de tão pesada, o ancora ao chão e à inércia.
Memória
O livro menciona o forte apreço de Madruga pelo seu avô Xan, que se dedica a passar adiante tradições galegas por meio da oralidade. Mais do que registrar o que já aconteceu, seus relatos pretendem legitimar a existência de um povo em movimento. E qualquer complemento inventado que se some a eles não se trata de mentira ou invenção perversa, mas de um indício de que uma história popular ainda respira.
A Breta cabe o papel de ajudar o avô a manter pulsando a narrativa familiar. É por isso que, junto dele, ela conta a vida de sua família enquanto traça o perfil psicológico e social de cada membro. Sua mãe, Esperança, por exemplo, é retratada como uma jovem ousada que busca, desde a infância, romper com o modelo machista que fomenta as bases de sua casa.
Mas a crítica ao machismo não aparece apenas no enfrentamento que personagens femininas fortes fazem à velha estrutura patriarcal. Ela também surge na forma de variados contrastes entre as figuras retratadas. Eulália, a esposa de Madruga, por exemplo, é aprisionada aos moldes tradicionais de esposa e mãe fiel, enquanto Madruga visita bordéis e trai a companheira trivialmente, como se alternar as mulheres na cama fosse uma necessidade vital do homem – pensamento extremamente comum naquele tempo. Esse tipo de situação salta aos olhos do leitor, que tem a oportunidade de refletir sobre a posição da mulher na sociedade.
Outra personagem interessante (como, afinal, todas são) é Odete, a empregada e dama de companhia de Eulália, que escancara as portas para um rico debate sobre a questão negra. Diferentemente da família de imigrantes, ela não tem registros que possam resguardar sua memória. Assim, se vê atrelada aos desejos da patroa, vivendo e agindo como extensão da mulher branca. Sem referências e sacrificando a própria identidade ainda sob os ecos de uma escravidão recém-abolida, Odete é induzida a se negar e a ignorar o próprio cabelo, a própria pele e a própria história.
Ao visitar a casa vazia da doméstica, Breta se depara com esse contexto e se afasta correndo após uma conversa com a mulher. Tal trecho pode ser visto como uma oposição a discursos hipócritas que ignoram, entre outras coisas, as particularidades da cultura negra. Para a jovem branca, seria mais fácil não ter conhecido as contradições históricas que desaguavam em incongruências sociais encharcando de miséria e solidão a pobre casa de Odete. Definitivamente, o que o Brasil não tinha era uma cara só.
História
A edição comemorativa publicada pela Record apresenta alguns roteiros manuscritos de Nélida para a elaboração do livro. Em uma delas, a autora elenca os principais eventos históricos que afetaram o Brasil entre 1929 e 1968. Esses tópicos se encaixam harmoniosamente na vida de uma família que atravessa o século costurando o percurso de três gerações nas bordas do percurso de uma república em desenvolvimento.
Cada personagem reage de uma forma aos impactos da história de um Brasil plural, sobretudo no sentido político, cultural, ideológico e social: Odete é pessoalmente impactada pela morte de Vargas; Breta se opõe com todas as forças ao regime militar; Madruga se mantém cético em relação à ideologia da neta; e tantos debates e divergências ajudam a definir o norte daquela família, que se revela uma alegoria bem-feita do Brasil do século 20.
Em sua famosa canção El tempo em las bastillas, o chileno Fernando Ubiergo diz que o tempo oculta o que ninguém escreveu e o que história nunca sentiu. Ao mostrar a perspectiva de uma família de imigrantes sobre eventos como a Revolução de 1932, a Era Vargas e a ditadura militar, A república dos sonhos consegue trazer à tona não só a verdadeira roupagem do tempo, mas também os detalhes que ele esconde em suas bainhas.
Escrita
Além de ultrapassar os limites da linearidade, construindo camadas narrativas que permeiam o fluxo da nossa curiosidade, A república dos sonhos ajuda a consolidar em nós a definição daqueles sentimentos universais que ainda não têm lugar nos dicionários. Para conseguir esse feito, Nélida Piñon não desperdiça palavras: extrai do verbo todo o sentido possível e necessário para nos emocionar. Nélida dá cor, sabor e nome a esse cheiro e nos embala majestosamente na melodia de uma obra-prima enquanto suas frases dançam ao redor de um sentido oculto.