Uma leitura hermética

Um resenha obcecada por sentidos subterrâneos nos 56 sonetos de “Engenheiro fantasma”, de Fabrício Corsaletti
Fabrício Corsaletti, autor de “Engenheiro fantasma”
30/12/2023

Em 2009, meio desajeitada e ausente das boemias literárias, li Golpe de ar, de Fabrício Corsaletti. Logo no primeiro capítulo, o narrador conta por que foi a Buenos Aires em via de escape:

Em São Paulo eu tinha duas vidas inconciliáveis: uma de funcionário pontual, outra de bêbado exemplar. Eu trabalhava de dia pra ser feliz à noite, e isso estava me deixando exausto. […] E no Brasil ninguém mais achava nada excepcional. A gente se acostumava com tudo, e o fato é que o pessoal sentava nos bares e fazia pose e ninguém mais tinha histórias pra contar.

Essas linhas me trouxeram paz. Talvez eu não perdesse muita coisa, por não frequentar os bares de jornalistas e escritores.

De Corsaletti, li mais a prosa que a poesia. Porque, por anos, acreditei que a prosa me traria mais lições para criar romances (o que era, desconfio, uma crença equivocada). Até que leio no jornal sobre Engenheiro fantasma, seu livro de poemas mais recente. E sinto vontade de revisitar aquelas leituras de 2009 — talvez para elogiar, finalmente, os recursos de estilo que eu admirava: a atenção ao cotidiano, o afeto, a linguagem desarmada.

Encomendo Engenheiro fantasma numa loja online, pra que chegue rápido. A entrega demora alguns dias. Isso me faz pensar que o livro não estava no estoque. Lançado dezoito meses atrás, agora, com a premiação divulgada nos jornais [recebeu o prêmio Jabuti de Livro do Ano], a loja online foi correr atrás dos exemplares.

Finalmente o pacote chega. É sábado, está quente lá fora, um bom dia para ler. Cinquenta e seis sonetos — não era meu plano ler todos na sequência, mas algo me hipnotiza. Leio o livro do começo ao fim, duas vezes, mal levantando do assento.

Narro aqui o que me tocou, e talvez soe estranho uma resenha tão obcecada por sentidos subterrâneos. Porém tomo essa licença, inspirada na própria obra. Engenheiro fantasma é escrito em “camadas superpostas” [soneto 53]. “Meu verso é sempre firme e sempre liso”, diz o mesmo soneto. Tentarei, assim, ser firme e lisa.

O livro nasceu de um sonho com data registrada — a noite de 7 para 8 de setembro de 2020. Nessa noite, o poeta sonha que está em Buenos Aires com sua família e encontra, no hotel, outra família “comum de classe média alta” — Bob Dylan e sua esposa, e dois filhos. Ao acordar, angustiado, sabendo que “devia fazer alguma coisa”, em dez dias nascem 56 sonetos, até o poeta parar por exaustão. A quarta capa de Engenheiro fantasma fala da “mescla da voz dos dois poetas” (Dylan e Corsaletti).

O conjunto de sonetos se amarra com versos que remetem ao tempo: “o futuro é uma espécie de passado” [2] e “o passado tem peso de granito” [56]. As ações também sugerem uma linha do tempo: a chegada — “tive problemas logo na aduana” [1] — e a partida — “não posso mais ficar nessa cidade” [56]. Uma viagem se desenha: chegamos, partimos. A chegada tem ânsia de aventura: skatistas, cerveja em jarra, cigarro na varanda, a liberdade na esquina. Lá pelo soneto 14, “a noite cai”: o poeta hesita diante da aventura (“ainda não comprei o meu caixão” [16]). Os problemas aparecem, “problemas limpos, problemas sangrentos” [21]. O espírito reage: “quem foi que declarou que a vida é oca?” [38]. A conclusão da viagem traz um tom místico: “sou poeta, não quero ser vidente/ quem é cego não morre atropelado” [49].

Guto Leite escreveu uma resenha sensível de Engenheiro fantasma, explorando a dinâmica de forças entre o transe e o trabalho. Aproveito sua análise para fazer um desvio, e cutucar outros sentidos.

A noite entre 7 e 8 de setembro de 2020: ao se abrir com uma data, o livro nos convida a situá-lo na história. Procuro os acontecimentos daquele dia, no acervo de um jornal paulista. Sete de setembro: carreatas a favor da Lava Jato, feriado de sol na praia, confrontos violentos em protestos antirracistas nos EUA, desemprego, pandemia. “Racismo no esporte é tema de curso no Sesc Bom Retiro”, dizia o jornal, entre nove notícias que abordam a questão racial; “Influenciadores e militantes negros lançam vídeo contra o racismo”. Nessa noite, o poeta sonha com Bob Dylan em Buenos Aires. Na literatura brasileira, 2020 foi o ano de Torto arado, de Itamar Vieira Junior.

O debate sobre questões identitárias é uma ferida aberta na crítica literária. Também entre autores, muitos deles. Engenheiro fantasma faz alusão a isso? O soneto 55 traz uma pista (talvez) cifrada: “rótulos podem te deixar doente/ o silêncio da aranha é parte dela”.

Temo ser uma forçação de barra, quando essa ideia me ocorre. Que sentido faria, ao interpretar um livro de poemas, recorrer aos protestos antirracistas? Mas a ferida está aberta; alguns brancos se calam, outros levantam bandeiras. Uns se queimam, outros se assustam. Engenheiro fantasma tem muitas referências que não pertencem à branquitude: samba, jazz, música cubana, Violeta Parra. Meu instinto de justiça me impele a buscar, no livro, mais pistas dessa questão apenas aludida.

Leio novamente o penúltimo soneto do livro, onde está plena a “mescla da voz dos dois poetas” (notem, na segunda quadra, a “tela” — Bob Dylan pinta quadros, Corsaletti também):

nuvens correm por trilhos transparentes
existe um ímã entre mim e elas
sento no parapeito da janela
e deslizamos juntos, sempre em frente

rótulos podem te deixar doente
o silêncio da aranha é parte dela
trabalhei cinco meses numa tela
não falei com amigos nem parentes

minha vizinha conversa com plantas
meu barbeiro só diz o preço e a hora
Hermes levava os mortos para o Hades

eu pego a frigideira e faço a janta
de sobremesa chupo umas amoras
a chuva cai de pé feito uma grade

A primeira quadra me traz à lembrança uma imagem do conto História sem cavalos, de King Kong e cervejas, do mesmo autor: “eu tinha um só pensamento elástico em direção ao sol”. Um pensamento elástico em direção ao sol; um ímã entre o poeta e as nuvens. Apesar do aspecto fragmentário, se acompanhamos os verbos, o soneto se amarra numa narrativa (“sento no parapeito”/ “pego a frigideira e faço a janta”). O ponto de vista corpóreo, localizado no espaço (parapeito, janela, frigideira) é emoldurado pelo céu: “nuvens correm”/ “a chuva cai”. Nesse cenário, o que está no alto é como o que está embaixo — a vizinha, o barbeiro, Hermes e Hades. É uma visão constante no livro. É a “minha tese”, que aparece no soneto 35: “nem toda ideia passa pela ascese/ às vezes ela sai como quem vaza”.

Faço uma pausa, aqui. Para quem nunca ouviu Hermes Trismegisto e a sua celeste Tábua de Esmeralda, explico: “o que está no alto é como o que está embaixo” é um verso que Ben Jor canta, musicando um antigo texto da tradição hermética. “Ele ascende da terra e descende do céu/ E recebe a força das coisas superiores/ E das coisas inferiores”, continua a canção.

Receio de ser hermética demais, e ao mesmo tempo hesito diante do didatismo. Não sou crítica literária, nem acadêmica. Sou apenas uma fã de Jorge Ben Jor, que sabe de memória A tábua de esmeraldas. Por causa desse disco, passei semanas lendo artigos de egiptologia e história das religiões, para entender o contexto histórico de Hermes Trismegisto. A figura sincrética entre um deus grego e um egípcio; surgida em Alexandria, dos textos de sabedoria do Egito Antigo, em fusão com a cultura grega e romana. Europa e África, invasões e sincretismo. Foi o que nos trouxeram os primeiros séculos da era cristã — até 1974, ano que nasci, e Jorge Ben gravou Errare humanum est.

É no encontro entre alquimistas, janelas e cozinhas, que encerro minha leitura. Repito minha pergunta: O que sonha um poeta, atraído pelo magnetismo das nuvens, no anoitecer de sete de setembro de 2020, no Brasil? O trovador saído do paraíso, depois de um temporal de bosta [53]? Respondem os versos: “só três coisas continuam: Vida/ Morte e os alquimistas estão chegando” [28].

Pois eu, que buscava no livro a nostalgia de outra década (cotidiano, afeto, simplicidade), encontro uma beleza mística:

saio ao terraço, o que é que nos detém?
estrelas não são loucas nem sensatas
brilham seguindo alguma força inata

Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

Rascunho