Justino e o passado

Ele pensava que a felicidade resulta das conquistas e que só a desgraceira é capaz de aniquilar e jogar o sujeito no lamaçal
Ilustração: Amanda Cestaro
02/08/2023

Tudo o que promete liberdade vem com travas e fivelas, resmungou na saída da sala com a mão na maçaneta e os olhos fulminando a pilha de processos que o esperava para o dia seguinte. Pensava em mandar o trabalho pro inferno, recomeçar do zero depois de alguns meses de descanso, quem sabe num lugar sem conexão, longe dos ruídos que o afastavam de si mesmo.

Justino sabia que milhões de pessoas dariam tudo para conquistar sua condição de vida, sua rotina e posição social. Mas um emprego bom e estável, casa, família, uma esposa dedicada e a vivacidade de um filho em movimento de conhecer o mundo não estavam funcionando para preencher seus vazios existenciais. O angustiante pacote de desgostos da vida difícil do passado era pesado, e Justino não suspeitava que estava no estágio anterior ao declínio que leva a um extenso e persistente luto sem morte, popularmente conhecido como depressão.

De alguma forma que escapava ao seu poder de compreensão, os prazeres eram agora carregados de uma tristeza de fundo, aparentando um tinhoso de barro mal moldado em vestes de querubim. Justino não sabia de nada, ainda pensava ingenuamente que a felicidade resulta das conquistas e que só a desgraceira é capaz de aniquilar e jogar o sujeito no lamaçal de provações que afoga e mata a pessoa por dentro a mantendo minimamente funcional para experimentar a sensação plena de que a vida é um obstáculo a ser superado.

Nesse tempo, Justino começava a entender que as emoções não acompanham a desenvoltura da razão, que pouco importa o quanto o indivíduo consegue acumular de conhecimento se ao mergulhar em si mesmo encontra um lactente aos prantos, ainda sentindo o desamparo e a frieza de um mundo desconhecido e hostil. Conhecer as raízes e os fundamentos das suas dores não tinha o poder de eliminá-las de imediato ou de evitar que emoções primitivas brotassem num contexto de presente muito diverso daquele da vida de criança no semiárido. Nascera numa família pobre e vivera o desfortúnio da carência.

Perdeu o pai cedo e experimentou o sofrimento da mãe na labuta diária para manter a família. Até que, na adolescência, resolveu que não perderia mais tempo, que a dedicação ao estudo e ao trabalho era o único caminho capaz de conduzi-lo a uma vida melhor. E assim o fez, com privações e a tenacidade própria dos obstinados.

A recompensa ganhou forma quando fez graduação em Direito numa universidade respeitável e em seguida um estágio num conceituado escritório advocatício, que o levou a um emprego bem remunerado com todas as vantagens reservadas aos que construíram uma carreira com seriedade e comprometimento.

Para adiantar um pouco e poupar o precioso tempo do leitor, depois de alguns anos de um fardo de amarguras que não podemos imaginar, Justino sucumbiu e tirou a própria vida. “Era bom pai, bom marido”, “se enforcou, o egoísta”, “descansou”, “a gente não é nada neste mundo”, “perdeu a fé em Deus” e outros eufemismos gastos davam o tom nos diálogos que, independente da qualidade do defunto, frequentam velórios de todas as classes sociais.

Vindo de onde ninguém soube explicar, com chapéu de couro e gibão, um vaqueiro nordestino se aproximou do esquife, fechou os olhos, a mão direita sobre o peito do defunto, e pediu a atenção dos presentes:

— Venho aqui a pedido de Honorato. O homem quer que eu fale umas leituras — disse enquanto sacava do bolsilho do colete um papel pardo dobrado. Olhos e ouvidos curiosos se voltaram para o excêntrico sujeito em vestes sertanejas, que prosseguiu: — As palavras que aqui escrevo ecoam as lágrimas de um pai sofrido. Uma dor que se expande no escuro…

Houve quem quisesse interromper o matuto, mas a viúva interveio e pediu para que o sujeito prosseguisse:

— … a distância, a saudade e o vazio. Os abraços perdidos e as falas que não foram ditas. Alcança, meu filho, alcança sem o peso do corpo as luzes que te faltaram na vida. O juízo do que fizeste fica para o entendimento dos santos.

Nesse momento, a chegada do padre prendeu a atenção de todos por um segundo, e o sujeito evaporou sem ninguém se dar conta. O padre fez o ofício dos mortos, o esquife foi fechado e baixado à terra.

Na lápide, a mensagem gravada em pedra lembra o inusitado laço paternal que subverteu a morte e o tempo.

Antonio Cestaro

É empresário do setor editorial e diretor do selo de literatura Tordesilhas. Estreou como escritor em 2012, com o livro de crônicas Uma porta para um quarto escuro. Em 2017, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura com o romance Arco de virar réu.

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