A leitura simultânea dos Diários de 1930-32 e 1936-7, de Ludwig Wittgenstein (Martins Fontes, 2010), e da sua biografia, escrita por Christiane Chauviré e publicada pela coleção Les Contemporains (Éditions du Seuil, 1989), fez com que eu mergulhasse — como há muito desejava — no universo deste autor tão apaixonante para os que se interessam por questões de pensamento e linguagem.
Acompanhei os lances de sua vida familiar, numa mansão vienense com sete pianos, destruída por um bombardeio na segunda guerra mundial. Segui o filósofo trabalhando “à beira da loucura” no Tractatus, sob fortes crises de angústia e depressão. Wittgenstein teve a singularidade de considerar a filosofia como uma “doença do entendimento”, a se curar através de uma longa “análise”, uma obsessão da qual era preciso se livrar por um trabalho de clarificação do idioma. Ele considerava as grandes doutrinas filosóficas como “superstições nascidas de um uso perverso da língua” e chegou a afirmar que a filosofia só poderia ser escrita por meio de poemas (“A estranha semelhança de uma investigação filosófica com uma busca estética.”).
Evidente: Wittgenstein se distancia de pensadores como Kant e Hegel, que abordaram a estética sem ter contato pessoal com a arte ou com artistas; ele, ao contrário, conhecia Brahms, Mahler, Klimt e Loos, e sonhou seriamente em se tornar chefe de orquestra. A música, de fato, seria sua grande paixão: conta-se que, tanto em Viena quanto em Cambridge, ele espantava os amigos pela capacidade de assobiar com perfeição concertos inteiros. Inclusive, há quem diga que a estrutura do Tractatus, redigido em aforismos, seria motivada pela música de Schönberg. Essa sua obra, que busca “delimitar o que pode ser dito e o que não pode”, autentica o Místico como inacessível às palavras — mas próximo a outros modos de expressão, como a arte. Assim, Wittgenstein afirma: “os limites da minha linguagem significam os limites de meu mundo” — e o Tractatus termina não com uma condenação positivista do metafísico, mas com uma reivindicação do direito ao silêncio em filosofia. O direito de se calar sobre as questões que são as mais importantes para nossa vida.
Dificilmente se poderia crer que, menos de dez anos depois, Wittgenstein elaboraria uma “segunda filosofia”, constituída em grande parte por uma autocrítica do Tractatus. Chauviré escreve: “Sem complacência exibicionista nem pathos, Wittgenstein nos deixa não somente suas opiniões sobre os Lebensprobleme [os problemas da vida], seu pessimismo à Spengler no que diz respeito aos valores, à civilização, à modernidade, à cultura e ao progresso, mas também sua personalidade atormentada, sua obsessão pela loucura e pelo suicídio”. Tais assuntos fizeram parte de sua família de um modo quase inacreditável.
Apesar disso, transparece nos Diários o desejo de estar sempre em busca de um divertimento:
Pão & circo, mas também circo no sentido em que a matemática assim como a física é um circo. É sempre circo o que seu espírito está buscando, nas artes, no laboratório, bem como no campo de futebol.
Wittgenstein compreende que a filosofia não interessa a ninguém que já não esteja predisposto a filosofar (daí o seu pessimismo em relação à impotência do que escreve e, sobretudo, em relação à incapacidade de seus escritos inspirarem uma ação ética em alguém, convencerem alguém nesse sentido). Essa ideia ressoa nos Diários, quando ele observa:
O milagre tem de ser compreendido como gesto, como expressão, se quiser nos dizer alguma coisa. Eu também poderia dizer: Somente quando aquele que faz isso o faz em um espírito miraculoso é um milagre. Sem esse espírito ele é apenas um fato extraordinariamente estranho. Tenho de alguma maneira de já conhecer o homem para poder dizer que se trata de um milagre. Tenho de ler o todo já no espírito certo para sentir aí o milagre. (grifos do autor).
Nas notas da edição, aprendemos que Wittgenstein, em sua Conferência sobre ética, teceu um paralelo entre milagre e espanto, assim:
(…) há uma diferença entre a consideração científica de um fato e sua consideração como milagre, ou seja, sobre o espanto em um sentido relativo e em um absoluto: nosso espanto em sentido relativo seria o espanto acerca de algo que nunca existiu, sendo semelhante ao fato da transformação da água em vinho. Nosso espanto em um sentido ético significa, entretanto, um espanto de outra natureza — como o espanto sobre a existência do mundo, o qual, apesar de nos ser diariamente presente, deveria ser considerado um milagre, sobre o qual qualquer expressão linguística iria, contudo, desembocar no absurdo.
A partir de todas essas reflexões, emerge a consciência de que só se pode fazer algo por si mesmo, pois a humanidade é afetada apenas na medida de sua própria permissividade:
Quem tem de lutar contra nuvens de mosquitos acha uma coisa importante ter afugentado alguns deles. Mas isso é totalmente insignificante para aquele que nada tem a ver com mosquitos. Quando resolvo questões filosóficas tenho a sensação de haver feito algo extremamente importante para toda a humanidade & não penso que as coisas me parecem tremendamente importantes (ou devo dizer: me são tão importantes) porque sou atormentado por elas. (Diários)
Wittgenstein exibe grande severidade para consigo mesmo: “Sou, por exemplo, um pobre diabo mentiroso & mesmo assim posso falar sobre as maiores coisas. E, enquanto faço isso, parece que estou completamente desvinculado de minha pequenez. Mas não estou”. E, nos Diários, também confessa suas vaidades: “Estou um tanto apaixonado pela minha maneira de movimentar os pensamentos enquanto filósofo. (E talvez devesse deixar de lado a expressão ‘um tanto’). Talvez, da mesma maneira que alguns gostam de se ouvir falar, eu goste de ouvir escrever?”.
A importância do fenomenológico é ressaltada num trecho radical:
Mutile completamente uma pessoa & corte fora seus braços & pernas, nariz & orelhas & então o que resta do seu respeito por si próprio & de sua dignidade & em que medida seus conceitos sobre tais coisas ainda são os mesmos. Nem sequer suspeitamos como esses conceitos dependem do estado habitual, normal de nosso corpo. O que aconteceria com eles se fôssemos conduzidos por uma corda amarrada a um anel atravessado em nossa língua? Quanto sobra de uma pessoa nessas condições? Em que estado uma pessoa assim sucumbe? Não sabemos que estamos sobre um rochedo estreito e alto & que há em volta de nós abismos, em que tudo aparece de uma maneira totalmente distinta. (Diários)
Nestas páginas confessionais, há muitos outros momentos que gostaria de ressaltar — porque o próprio autor reconhecer que é preciso primeiro viver, e então se pode também filosofar (“primum vivere deinde philosophari”): daí a importância dos Diários para além da curiosidade íntima. Destaco, porém, somente mais estas aspas onde minha identificação se tornou integral. Sobre o seu processo de escrita, Wittgenstein revela: “Creio que minhas frases são, na maior parte das vezes, descrições de imagens que me ocorrem”. Ou seja, ele também diria que a literatura é uma arte visual…